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2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS FINALISTAS: MARTE WIRTHMANN — CATEGORIA CONTO

  • Foto do escritor: Casa Brasileira de Livros
    Casa Brasileira de Livros
  • 14 de jul.
  • 9 min de leitura
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SOBRE O AUTOR


Marte Wirthmann é uma pessoa transmasculina e bissexual, nascida em Goiânia. Além disso, é escritor, historiador e mestrando pelo PPGH/UFG. Em 2021, publicou o livro de contos Neuroses de Bolso, pela Editora Urutau. Atualmente, é bolsista CAPES e está desenvolvendo sua pesquisa de mestrado intitulada Ativistas transmasculinos no Brasil: História, memórias e identidades. Marte também participou do Arquivo Lésbico Brasileiro e foi cofundador do Coletivo de Estudantes Trans e Travestis da UFG, Xica Manicongo.  




O CONTO FINALISTA


Agora que você morreu, o que irá fazer da vida? 


Você deu três voltas no quarteirão tentando encontrar a casa de Gabriel, sem sucesso. Era uma casa amarela com portão cinza, sem número. Todas as casas da rua eram amarelas, todos os portões acinzentados, pincelados por ferrugem alaranjada. Interfonar casa por casa? Frio na espinha, dor de pescoço, garganta seca, rosto vermelho. Aparentemente não.


Uma flor de lótus suspensa no céu esturricado. Passarelas desertas de concreto. Os carros extintos, as pessoas desaparecidas. Latidos fantasmas. Emaranhados de ramos secos voando em círculos sem direção, germinando nas rachaduras do solo. A aspereza dos ramos escoriando a pele, um convite ao movimento. Um garoto enraizado no meio da rua.


Chega de drama. Mande uma mensagem para ele. Pessoas fazem isso, logo você também pode. Pessoas mal-amadas, desnorteadas, descerebradas e cronicamente desinteressantes. Sabe que Gabriel nunca vai querer te contar segredos, te pedir favores e te sorrir ao raiar do dia com olhos cansados, emoldurados por olheiras, emaranhado em sua pele, costurando seus abismos. Apenas pessoas interessantes têm esse direito. Mas não fique com essa cara lamuriada, você foi convidado, e agora terá algo para pensar quando estiver insone, mortificado e sozinho. De novo.


Gabriel, Gabriel me mandou uma mensagem. A flor de lótus se transforma em uma horda de urubus com lanças cortando o céu de fumaça.


— Oi, Arthur! Já tá chegando? Vou ficar aqui na porta pra ficar mais fácil, tá bom? 


As esferas de ramos secos dançam forró com cavalinhos de platiplanto, os urubus jogam balinhas de café do céu. O sangue jorra em direção ao rosto. Ele não pode saber que estive plantado aqui esse tempo todo. Hora de correr para a esquina. Deu tempo. Sinto a vermelhidão espalhar-se pelo pescoço, com uma erosão de bolinhas brancas, droga. Pera, posso dizer que é alergia. Sim. Isso. É um motivo plausível. Mas alergia de quê? Do vento?


Você ouviu isso? Sim, alguém destrancando a porta. Ele. Okay, está na hora.


— Oi, Arthur, que bom te ver — Gabriel me abraça com o corpo inteiro por alguns segundos. Vários segundos. Segundos demais? Ele tem cheiro de café, palheiro e amaciante. Se afasta e logo acena para que eu entre em sua casa.


Gabriel mora com três pessoas, elas não parecem estar lá agora. Uma colcha azul-escuro, repleta de sóis, cobre a cama. Uma coleção de quadrinhos: Frida Kahlo, Abaporu, A Grande Onda. Camisas de algodão penduradas em um cabideiro de metal, envolto por um fio de luzinhas suaves. No canto, uma cartola de veludo preta repousa sobre uma poltrona de pano florido. Cinco pequeninas xícaras de café azuis, algumas com restos secos no fundo, espalham-se pela mesa e pelo parapeito de madeira, entre velas, mini cactos e um cinzeiro cheio de bitucas. Samambaias crescem para baixo, quase tocando o chão, como cortinas vivas. É o lugar mais lindo que já vi. 


— Pode sentar ali se quiser, fica à vontade — ele aponta para a cadeira em frente à mesa de empilhar livros.


— Tá bom — me sento e apoio os pés na base da cadeira.


— Só não repara a bagunça. Socorro, que tanto de xícara — resmunga para si e começa a recolher uma por uma.


— Tudo bem.


— Não, que isso. Vou deixar elas na cozinha e passo um café pra gente, pode ser?


— Pode sim… Sabe, eu gostei das xícaras.


— Você gostou das xícaras? — Ele para por um momento e deixa escapar uma risadinha contida.


— Oxi, que foi?


— Nada, elas só estão um pouco surradas.


— Mas elas têm personalidade — replico. Gabriel levanta as sobrancelhas e olha para o alto como se estivesse filosofando sobre o que disse.


— Pensando bem, elas têm mania de ficar analisando tudo, são quase psicanalistas… Foi mal, essa foi péssima, né? — Ele diz sorrindo, olhando meio para mim, meio para baixo.


— Terrível… Eu gostei.


— Bom, já volto.


Levanto da ponta da cama e sigo rumo à poltrona florida, retiro a cartola de cima dela e a contemplo por um momento. A luz entra pela janela atrás de mim, iluminando a velhice da cartola: fissuras e remendos. Provavelmente deveria ter ajudado a levar as xícaras, mas ele foi mais rápido do que meu pensamento. Por que estou tão calmo agora? Ele deve ter percebido que sou pateticamente atraído por ele. Somos amigos, conversamos nos corredores da faculdade todos os dias. Mas tenho medo de olhá-lo por tempo demais quando estamos perto um do outro.


Um gatinho mia para dentro do quarto, desfilando com seu rabinho para um lado e para o outro. Deixo a cartola de lado. Ele sobe em cima da mesa, desmarcando páginas de livro com suas patinhas, salta para a cama, arranha suas garrinhas na colcha azul, espreguiça-se, senta-se na beirada como se já esperasse a minha presença e me fita com seus olhos que tudo vêem. Finjo admirar os cactos e as samambaias, sinto seus olhinhos brilhantes em minha nuca, com toda a sabedoria de suas vidas passadas, piscando lentamente. Volto meu olhar para seu rostinho imponente e estendo a mão para que ele me conheça. Ele dá uma cheiradinha e senta-se novamente. Decifra-me ou devoro-te, ele diz. Gabriel retorna com os cafés.


— Vejo que conheceu Salém — ele senta-se ao lado do gatinho e me oferece a xícara de café.


— Que nome legal, combina com a estética do seu quarto, meio bruxa da floresta.


— Você me pegou, realmente gosto de um estilo místico, tarot, oráculo, incenso, chá de ervas… Inclusive, qual é o seu signo? — Salém demanda carinho de Gabriel, esfrega a cabeça em seu braço e ronrona.


— Vixi, tenho medo de responder.


— Por que? Não me diga que você é de Gêmeos.


— Nossa, não. Eu passo essa impressão?


— Quer dizer, você é uma pessoa curiosa e inquieta, te vejo observando tudo e mil pensamentos se articulando na sua cabeça. Você está fazendo isso agora, inclusive.


— Com seus poderes de bruxo?


— Muito engraçado, mas não, reservo eles para emergências. Suas expressões faciais… elas são muito… comunicativas. Gosto disso. Durante as aulas chatas, olho para você, suas reações sempre representam o que a turma está pensando quando o professor fala alguma atrocidade.


— Não sei se gosto disso, preferia ser misterioso, mas sim, você está certo, é mais forte que eu. Você parece ser de Peixes.


— Me encaixo direitinho no estereótipo, não é mesmo? Sim, sou de Peixes, 28 de fevereiro, último dia do mês, fora os anos bissextos, né? Quase nasci bi, mas aí vim gay mesmo.


— Isso explica o seu senso de humor. Então, sou de Escorpião, 9 de novembro. Não sou ciumento, mas me lembro do que alguém faz por bastante tempo.


— Isso explica seu hábito de ler pessoas. É um alívio que você não consiga esconder suas opiniões, não seria justo ter dois poderes infalíveis — ele brinca com a xícara de café na mão.


— Não sei se consigo ler as pessoas ou se dou voz às minhas neuroses e as associo aos comportamentos das pessoas.


— Droga, esse é um questionamento legítimo — Gabriel deixa as canecas no parapeito da janela e ocupa suas mãos girando seu anel de um lado para o outro. Salém desiste de protestar e resolve tirar um cochilo.


Não gosto de signos, mas acaba sendo uma ferramenta de comunicação imprescindível em certos contextos. É útil para comunicar o que você pensa, sem precisar admitir a autoria das suas opiniões e sentimentos. É revigorante poder colocar a responsabilidade em algo fora do nosso controle. Só espero que não me pergunte meu Marte, meu Vênus, minhas casas… não faço ideia. Caso ele pergunte, digo que não sei o horário em que nasci, assim evito desgastes. A cartola volta a chamar a minha atenção, por algum motivo sinto que não é apenas um item decorativo.


— Ei, Arthur, para onde você foi?


— Estou aqui… Ei, por que você tem uma cartola?


— Pois o mundo é um moinho, me disseram.


— Sério? — digo em um tom amigável, talvez um pouco passivo-agressivo. Gostaria que não fugisse das minhas perguntas.


— Sim — ele olha para mim percebendo minha irritação e acha graça.


— Tá bom, eu te conto. É constrangedor. Eu costumava participar de um grupo de escritores que se apresentavam fantasiados dos personagens ou eus líricos que criavam para os textos. Tenho sorte de você ter entrado na faculdade um ano depois do fim do nosso grupo. Enfim, virou uma relíquia de um passado não tão distante.


— Por que vocês desmancharam o grupo?


— Ah, sabe como é… fica difícil fazer coisas criativas que não têm a ver com o curso. No nosso caso, acabamos tendo que escolher entre ler centenas de páginas por semana, frequentar as aulas, pesquisar, fazer estágio, monitoria, disputar bolsa e todo o resto. É estranho pensar nessas outras coisas como resto… mas se pensarmos demais ficamos tristes, é melhor esquecer. Esquecer é necessário para que o amanhã ainda esteja lá, às vezes…


— Entendo, mas não podemos esquecer da gente no meio de tudo isso. Depois o curso acaba, a maior parte de nós não terá nenhum artigo publicado ainda, a única coisa para a qual estaremos qualificados depois que isso acabar é nos inscrever para o mestrado e possivelmente dar aula de História por um salário ínfimo, o que acaba interferindo com as horas de estudo necessárias para se sair bem no processo seletivo do mestrado. Não sei se devemos sacrificar nossa alma para tentar cumprir com as exigências impossíveis desses velhos pedantes, que gozam em se autorreferenciar e ignorar tudo o que é produzido de conhecimento para além deles. Estou um tanto pessimista com a academia.


— E que outra escolha nós temos?


— Aí é que está, tem que sobrar sonho e energia para a gente sequer conseguir pensar nisso, né?


— É…


— De qualquer forma, estamos aqui agora, e preciso que você performe um texto para mim.


— Precisa?


— Sim, é vital.


— Tenho uns poemas de gaveta, mas sabe, ao abrir aquela gaveta você me conhecerá mais do que alguns bons amigos e familiares. É bastante pessoal. Estarei quase me despindo da minha pele na sua frente.


— Eu gostaria disso.


— Ou não. Como a gente fica se você me achar um escritor de merda?


— A vida é feita de dúvidas, riscos e erros de comunicação. Creio que estamos prontos para isso.


— Tá legal, mas prefiro que você me julgue. É cansativo se expor assim e só receber de volta um “amei, amigo!” em sorrisos amarelados.


— Eu prometo.


Gabriel levanta-se e coloca a cartola. Salém acorda para fazer parte da plateia.


A morte nas horas vagas


Meu corpo não me pertence 

e não posso me despir dele.  


O coração tenta partir em fuga  

rasgar a pele  

libertar-se do peso ofegante do peito.  

Não consegue.  

É esmagado.  


Os quadris se contorcem

quebram a si mesmos

e no estalar dos ossos  

traçam um caminho pela carne  

para o lado de fora.  


Os pulmões desejam a metamorfose em carvão  

agonizam em fracasso.  

A cada sopro de ar 

gritam o silêncio

e sufocam sem pressa.


Os neuróticos se lançam em cólera

contra as paredes do crânio

apodrecido

elástico

macio.  


Os neuróticos temem a boca.

Nadam para longe das palavras 

estas que conduzem a travessia

cujo início é fim

cujo fim é nevoeiro.


Os neuróticos transcorrem margens abissais 

e profundezas áridas.

Entre águas turbulentas e rancorosas

não há naufrágio.


Lábios antropofágicos

descamados e manchados de letras 

mastigam a si mesmos.  

Enquanto a voz costura as vísceras  

que insistem em arrebentar os pontos.  


Um corpo estremecido pelo reflexo da água  

enraizado na terra.  

A memória

único conforto  

diante da fragilidade da carne 

que sabe nunca ter sido lembrada.  


Na carne esconde-se um sussurro.  

A morte chega à toa

nas horas vagas.  

Sem aplausos

sem rezas.  

Os vivos se esquecem.  

É preciso esquecer para que o amanhã ainda exista.


Gabriel senta-se na cama e retira a cartola. Como ele pôde descrever tão bem o que me atravessa todos os dias? Gabriel também se sentia assim, esse tempo todo. Compartilhamos do mesmo corpo. Seus olhos aguardam uma resposta. Levanto-me da poltrona e sento-me ao seu lado. Ele permanece quieto. Sinto os traços de seu rosto com as pontas dos dedos, como se o visse pela primeira vez, como se o tivesse conhecido em um sonho de infância. Gabriel apoia a cabeça em minha mão; eu o conduzo para mais perto, guiando-o suavemente até meu peito, e o abraço como sempre deveria ter abraçado. Seus braços envolvem minha cintura, meus dedos transitam entre seus cabelos e suas costas. Ele levanta o rosto e me observa em calmaria. Aproximo meu rosto, e mergulhamos nos silêncios um do outro. As mãos e os lábios percorrem toda a extensão da pele. Podemos sentir os gostos e cheiros que há muito tempo tentávamos materializar em pensamento. Evaporamos em sopro, nos tecemos em despalavras. Desaguamos e nos tornamos rio. Agora que havíamos esquecido, agora que havíamos morrido em pleno dia, podíamos decidir o que fazer de nossas vidas.




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