2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: EDUARDO GALDURÓZ — CATEGORIA CRÔNICA

SOBRE O AUTOR

Eduardo Galduróz escreve crônicas frescas todas as quintas, no Insta (@aquelegaldurozz) e no Face, exceto quando falha. É pós-graduado em Criação Literária pela Universidade de Fortaleza. Mora com esposa e filho em Ibiúna/SP. Odeia uva passa, chama o garçom de poeta e exige que lhe cumprimentem o cachorro ao entrar em casa.

A CRÔNICA SEMIFINALISTA

MMARTAN

Dia frio em São Paulo, livro que nada: bom mesmo é ir na MMartan renovar o estoque de edredão. A dos Jardins, que tem mais artigos, e serve Nespresso Ristretto de cortesia.

Sinal fechado logo antes da loja, surge, entre os carros, a menina com desajeitadas trancinhas e ray-ban de plástico. Uma boneca. Começa a distribuir saquinhos de balas nos retrovisores, dois real. Não sabe ainda calcular o tempo necessário; o sinal abre e restam ainda vários pacotinhos pendurados. Os motoristas aguardam, pacienciosos – nenhuma buzina! - a menininha terminar. Entreolham-se, orgulhosos do gesto coletivo de tolerância. Um tio se anima, estende uma nota de dez, não exige troco. A menininha nem tchum, sem contato visual, sem sorriso, sem obrigada, recolhe a grana, recolhe os pacotes, sai vazada.

Estacionamento à margem da calçada rebaixada, não há necessidade de procurar vagas; o vallet, voluntarioso, se prontifica a parar os carros. Precisa desviar-se dos dois policiais que revistam minuciosamente o jovem de moletão e boné que passava de moto justo por ali. Extremamente educados, os policiais. Pedem licença pra abrir a mochila, vão depositando os itens no chão, um a um. Nenhum flagrante, nos bolsos também não, tira a jaqueta, tudo ok. Uma cliente se compadece da situação do jovem, mas fazer o que, precisa pra garantir a segurança de todos, do menino inclusive. O vallet faz que concorda, olha para o menino, pensa que ele lembra seu moleque; o policial repete o discurso da senhora: “ô, meu irmão, obrigado por colaborar, é pra sua segurança”. O rapaz não se comove, não agradece, “beleza, só não me chama de irmão”, sai vazado.

Interior da loja, um senhor bonachão, bochechas rosadas e calças de agasalho, esponja-se no colchão do mostruário. “Vou tirar um cochilinho”, diz, e as mocinhas riem como se ouvissem a piada pela primeira vez. Sua esposa, de uma simpatia espalhafatosa, chama a vendedora de “querida”. Lindíssima a vendedora, faz questão de pontuar. “Que beleza exótica, que cabelo maravilhoso! Posso tocar?”. Muito gente ela, nem parece madame. A mulher não agradece. Finge ouvir alguém lhe chamar, desconversa, ri amarelo, sai vazada.

Fila do caixa, o senhor bonachão chora desconto. “Parcelado no cartão é impossível, senhor, à vista eu tiro 5%”. “5% não me paga nem o café, pode parcelar, dá pra fazer em dez?”, “Até em doze”, “Em doze, então, mas me dá um brinde, né? Uma compra nesse valor, sem brinde?”, “Infelizmente não podemos, senhor”, “Mas você é dura, hein? Olha, Lourdes, como ela é dura, deve estar rica com as comissões”. O senhor fala alto, a mulher sibila. “Não, senhor, tirei tudo que eu podia”. “Sei, sei. Vou falar uma coisa pra você, viu?” – eleva o tom, busca a concordância dos demais clientes, vê que tem a atenção de todos, continua: “Ser consumidor no Brasil é foda!”. As pessoas balançam a cabeça, em aprovação.

(...)

Na rua, uma menininha, um jovem de moto, um vallet, uma vendedora, um policial, cada semblante crestado por um sol de séculos; um sol de segundos apenas ruboriza as bochechas do senhor bonachão, flanando apressado entre a climatização da loja e a climatização do carro.

É foda ser consumidor no Brasil.

Experimenta não ser.