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2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: ELAINE NORBERTO — CATEGORIA CRÔNICA


SOBRE A AUTORA


Elaine Norberto nasceu em Vitória da Conquista - Ba. Ensinou economia, comunicação e marketing na UFBA e na UFRB. Foi professor visitante nas universidades Paris-Nanterre e Montesquieu Bordeaux – IV, com vários artigos publicados no Brasil e na França. Atualmente dedica-se à literatura. Sob o pseudônimo de Bella Valentin, escreveu um primeiro romance, intitulado Tonhão da picape (e-book na Amazon), que circulou essencialmente entre amigos numa impressão em gráfica rápida. Ficou entre as 20 finalistas no Prêmio Ruth Guimarães de Crônicas 2024.



A CRÔNICA SEMIFINALISTA


A Hora e a Vez


Meu pai não se colocou a clássica questão que Maquiavel endereçou aos governantes: é melhor ser amado ou ser temido? Nunca teve esse dilema. Terceirizou a parte chata da nossa educação de forma que, lá em casa, o sistema de regras e o não eram administrados por minha mãe. Ele intervinha apenas para dizer sim, em momentos críticos, resolvendo litígios. De vez em quando, para mostrar que estava de olho em nós e para nos chamar a atenção, falava: “Vocês podem enganar a sua mãe; a mim, não”. A partir dessa chamada – e do respeito ao livre arbítrio – deixava-nos sob o radar da esposa. Como fruto, colheu uma verdadeira adoração por parte dos filhos.

A última vez que minha mãe me bateu, chegou a ser ridículo; eu já usava sutiã 42. Não digo que fosse uma moça porque, desde pequena, eu sabia que saltaria essa etapa, passando diretamente de menina a mulher. Soube disso quando minhas primas, um pouco mais velhas do que eu, chegaram do Rio e foram logo fazer as unhas, munidas de frasqueiras e com bob no cabelo. Percebi que eu não tinha jeito para a coisa; ou melhor, que estava fora de cogitação que eu vivesse essa fase. 

A surra foi por causa do chamego com um homem com o qual minha mãe implicou, alegando que ele não queria nada comigo. A bem da verdade, era mais velho e, na vista de todo mundo, olhava para mim com cara de macho e fêmea os criou. Dei uma mão, depois a outra. Eu ainda não estava preparada para enfrentá-la. Ela me bateu e ficou com a consciência tranquila: se eu me perdesse, não seria por falta de pancada.

Quem nunca teve raiva da mãe? Ainda hoje agradeço à irmã Dayse, mulher do pastor, por ter dito essa frase numa palestra para os adolescentes. Nem era porque ela me batia que eu tinha raiva; era quando passava dias com a testa franzida, olhando para mim como se estivesse vendo um problema

Minha mãe tinha uma autoridade extraordinária, e a exercia com uma ousadia surpreendente. 

Certa vez, houve um crime que deixou a cidade estarrecida: um rapaz, de uma família honrada, matou o pai e a mãe. Foi notícia de primeira página, e o jornal “A Tarde” deu voz aos psicanalistas. Eles disseram que o jovem não oferecia nenhum perigo à sociedade, pois quem mata pai e mãe não mata mais ninguém. Seria um crime mais da alçada deles do que da polícia.

Na nossa cidade havia apenas um psiquiatra, o Dr. Djalma, que era doido de pedra. Podia falar o que quisesse, que ninguém daria ouvidos. Tomaram o que saiu no jornal como sendo coisa do Dr. Djalma e trancafiaram o rapaz com segurança máxima. Minha mãe foi visitá-lo, para levar-lhe a palavra de Cristo. Os seguranças acorreram para revistá-la, como era de praxe. Ela respondeu com um Alto lá! Sou uma pessoa de moral ilibada na cidade, ninguém vai me revistar. E entrou.

Até hoje fico impressionada. Quem não teria orgulho de uma mãe assim?

Sua reputação devia-se a ser conhecida como uma mulher consagrada à pregação do Evangelho. Visitava pobres e necessitados e era solicitada para dar palavras de conforto e esperança quando não sobrava mais nada.  Sobretudo, era conhecida porque, durante anos, mobiliara o vazio da vida de centenas de pessoas com uma palavra poderosa num programa de rádio chamado A Hora e a Vez. 

Às cinco da tarde, enquanto eu estava saindo do colégio, minha mãe se recolhia, para preparar a mensagem que seria entregue às seis. A última coisa que lhe passaria pela cabeça seria se indagar sobre o meu paradeiro. O programa durava meia hora. Até que ela juntasse suas notas e saísse da cabine, desse uma última palavra aos radialistas pelos corredores, pegasse o carro e chegasse em casa, eu teria tempo de voltar, andando ou correndo segundo o ponto da cidade onde me encontrasse. Assim, eu tinha uma hora e meia para botar as asas de fora, ou mais, se filasse aula.

Diferentemente do francês e do inglês, a nossa língua contempla o sujeito oculto, e a cidade era cheia de substantivos – tais quais muros, carros, moitas e bosques – e de advérbios de lugar – atrás, dentro, embaixo, além – que acolhiam quem buscasse privacidade. 

Nessa época, meus pais tinham subido de vida, e, pela primeira vez, tinham comprado um automóvel novinho em folha, uma Vemaguet. Naquele horário, quem usava o carro era minha mãe. Mais tarde, soube que a Vemaguet foi o primeiro carro popular do Brasil. Produzido entre 58 e 67, bateu recordes de venda. Ainda bem que a cidade não soube; por lá, só tinha duas peruas dessa marca, e apenas uma, no bairro onde eu morava. 

Era diferente de todos os outros veículos; equipada com um motor em dois tempos, emitia um barulho singular que fazia pô, pô, pô, pô. Assim, trinta anos antes que se começasse a falar em automóvel inteligente, com o uso da eletrônica, a Vemaguet me avisava, em tempo real, por onde minha mãe estava passando, num raio de dois quilômetros. 

Eu conhecia A Hora e a Vez como a palma da mão – abertura, louvor, versículo, pregação, apelo e oração –, bem como o tom que minha mãe empregava em cada uma dessas partes. Assim como os galos de João Cabral, os rádios de cada rua iam tecendo o fim da tarde e me deixando a par. 

A certa altura, dependendo de onde eu estivesse, um algoritmo acionava o alarme e engatava a marcha para voltar. A partir de então, era uma corrida contra o tempo em sintonia com a Vemaguet. Enquanto ela singrava as avenidas e ruas principais, eu, no pernas para que te quero, pegava travessas, becos e atalhos. Às vezes por um triz, botando a alma pela boca, mas o importante era já estar em casa.  

Até que um dia (sim, chegou o dia): eu me atrasei porque quis, porque estava na hora. Onde você estava? No jardim, namorando. Ela me olhou incrédula, confusa porque não inventei uma mentira. Eu a olhei com ar de riso, enfrentando-a. Por que você está me olhando assim? Me ocorreu uma informação – surpreendente – que havia recebido na aula de física. Respondi, encarando-a: no Polo Norte, a trajetória das estrelas é paralela à linha do horizonte. Ela ficou com um ar de quem deu nó na cabeça, o mesmo que eu fico quando me lembro dessa resposta.

Minha mãe viveu o suficiente para ter esgarçado o tecido da memória. Vi caírem máscaras, fachadas, sentido de conveniência. Contou-me, rindo, quem dava em cima de quem na igreja, chamando de feiosa a que dava em cima de meu pai. Chegou a se confidenciar, a dizer o quanto tinha medo, do que se arrependia. Deixou de ser um monumento à virtude e se fez mulher. Ela, que tanto me perseguiu para me conter, lamentava não ter sido um pouco mais como eu. Enquanto acolhia a confidência, senti despertar um sentimento de superioridade por vê-la, implicitamente, me dar razão, mas me contive a tempo. Exibi-lo seria covardia. Minha mãe, sempre tão corajosa, por que não conseguiu pautar um pouco mais a sua vida pelo prazer?

Estou longe de me opor a ser revistada em porta de prisão. Sempre fui guiada pela sede de viver, mas não deixo de constatar que a vida dela foi útil a muito mais gente. Flashs do seu percurso iluminaram minhas escolhas. Poderia ter sido diferente? Hem? O sol escolhe a sua órbita? 

O telefone tocou. Era engano, mas me salvou de embarcar num redemoinho de questões sem resposta. Dispersei-me, tomei uma água e fui dormir pensando num poema de Olavo Bilac. Ora pois.     


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