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2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: GABRIEL MALHEIROS — CATEGORIA CRÔNICA

  • Foto do escritor: Casa Brasileira de Livros
    Casa Brasileira de Livros
  • 14 de jul.
  • 5 min de leitura
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SOBRE O AUTOR


Gabriel Malheiros é brasiliense, formado em Letras e mestre em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é servidor público no Ministério Público da União (MPU). Desde a adolescência, dedica-se ao estudo de línguas e tem interesse especial por literatura, especialmente as obras de Rubem Braga e Dostoiévski. Aos 16 anos, inspirado pelo livro Ai de ti, Copacabana, de Braga, começou a escrever crônicas, mas só recentemente teve coragem de submeter seus textos a concursos.



A CRÔNICA SEMIFINALISTA


Dia de domingo


O domingo amanhece preguiçoso, como se o mundo se estivesse esticando, tentando encontrar uma posição confortável no sofá. São nove e meia de uma manhã típica, como qualquer outra de domingo. As manhãs de domingo são bem ordinárias, em todas as acepções do termo. O sol, como de praxe, se faz presente, mas sem grandes pretensões. É como se ele já soubesse que nada ali precisa ser urgente. O calor começa a invadir as ruas, uma das promessas de domingo, anunciando que o descanso vai ser quente e moroso.

Contra a resistência da cidade, que insiste em não acordar, pessoas começam a surgir. Encontram-se, trocam relances furtivos; parecem figurantes de um filme que já sabemos de cor. Os mais corajosos desafiam o calor e se aventuram nos parques, acompanhados de suas bicicletas, smartphones e a certeza ou esperança de que algum exercício fará bem à alma. Ali, um ou outro corredor emerge da bruma cálida do asfalto, a camisa molhada de suor, enquanto tenta furtar-se às obrigações semanais vindouras.

Na esquina, uma mulher ergue diligentemente sua barranca de churrasquinho, com a impertubável calma de quem já sabe que todo domingo é a mesma coisa. Seu par, como que para dissimular as passadas indolentes, profere algumas queixas, enquanto carrega uma caixa de isopor cheia de potes com farofa, temperada com açafrão e bastante alho. Em frente, a padaria já está tomada por filas e olhares que se perdem nas prateleiras. Pessoas vem e vão, de bermuda e chinelo, para escapar do calor que os atormenta tanto quanto os frangos que giram na assadeira, quase que pedindo por socorro. As pessoas conversam distraídas, com a sensação de prazer sem culpa. Ao fundo, o som de um pagode ecoa de algum bar vizinho, interrompido apenas pelo barulho de uma caixa empoleirada no teto de uma Kombi, que anuncia a incrível variedade de sabores de pamonha. 

As crianças, eufóricas, se preparam para encontrar-se com os primos. Hoje, as famílias se agrupam para almoçar, coisa que não acontece durante a semana, por falta de pretexto. Durante a semana, elas comem, mas não almoçam. Apenas ingerem alimentos como qualquer ser biologicamente vivo, tão somente para sua sobrevivência instintiva e solitária. Mas domingo é diferente. A mesa está cheia, e as conversas não deixam sequer espaço para respirar. Tem refrigerante. Tem sobremesa. Tem almoço. Tem até briga.

Na casa da vó, a mocinha, já com suas manias de adolescente, tenta parecer adulta e se exaspera com a pergunta da tia: “E os namoradinhos, minha filha?”. Ela responde, sem graça, afetando indiferença, mas já arquitetando um comentário mental: “Aff! Tia Dulce...que mulher chata!”. Cry me a river!, como diriam os americanos ou brasileiros de internet. Ela que se dê por satisfeita, porque, a alguns quarteirões, um primo já começa a se encolher diante da pergunta fatídica, tão inevitável quanto o futebol ou o tédio no domingo. “E aí, já viu que abriu o concurso do Banco do Brasil?”

Os adultos, conhecedores das agruras da vida, falam com o gosto amargo de quem viveu o suficiente para entender que o futuro é uma ilusão disfarçada de promessa. Entre um gole de cerveja e outro, as discussões sobre futebol tomam conta. O time está em crise; a nova contratação não é boa o suficiente; o dirigente é um incompetente. A solução está bem na frente deles: “Se eu fosse o técnico, o time tava ganhando fácil!”.

No meio tempo, um sujeito que se formara em direito, mais por acaso do que por vocação, explica, com a devida vênia, que “se eu tivesse pegado aquele caso, era ganho de causa certo”. Não passava de um disfarce. Todos sabiam que ele terminara o curso às pressas, porque o pai, também advogado, o havia pressionado. Nada disso vinha ao caso;  o importante era que a carne já estava sendo assada, e logo tudo se resolveria com uma única unanimidade: "No Brasil, temos impostos demais!”.

O futebol volta à pauta. Agora as conversas giram em torno das conjecturas pretensiosas. Alguns ousam dizer que “este ano, o Flamengo vai ser campeão. Já posso até comprar a camiseta”. Não era, claro, uma opinião fundamentada em algo real, mas um voto de confiança no que ainda parecia passível de ser controlado: o futuro do campeonato, que, como o resto da vida, não promete resultados seguros.

Enquanto isso, alguma outra família prepara os últimos detalhes para a festa do fim da tarde. Alguma criança fará aniversário e ela estará em radiante júbilo, como se fosse o primeiro, o único e o último aniversário da história. Mal saberá ela que, em outra casa, outra família, de outros convidados, ainda não havia decidido se irá à festa, pois os pais estão desanimados e acham que domingo é dia de descanso.

Nos recantos mais silenciosos da cidade, os solitários se retiram para seus próprios mundos. Não há muito que fazer. Já sucumbiram ao ócio dominical. Logo irão contentar-se com as sobras de sábado ou, tratando-se dos mais abastados, o conforto imediatista do Ifood. Assistirão alguma série, lerão algum livro, entregar-se-ão ao sofá, entretidos pela luz dos seus celulares ou pelo som do Domingão do Faustão — não o programa, não o apresentador, mas a ideia, que resiste, tal qual aquele velho hábito que a gente não tem coragem de abandonar. Depois tomarão banho e coarão um café, forte e sem açúcar, para tentar acordar do torpor daquela rotina que se repetia; não todos os dias, mas apenas aos domingos. E assim o domingo se arrasta sem pressa de terminar, porque o domingo é uma crônica da banalidade. Ele sempre chega, faz barulho, apraz alguns, aborrece outros e vai embora sem deixar nada de novo.

Quando a tarde começasse a morrer, as famílias se dispersariam, deixando a casa vazia de gente e abarrotada de copos sujos e vestígios de carnes queimadas. A festa da criança seria um sucesso, e todos os pais, arrastados pelos filhos, se veriam obrigados a manter a compostura enquanto mastigavam pipoca, bebiam guaraná e simulavam sorrisos amarelos. Logo iriam embora, acompanhados das sacolinhas de doces e alguns comentários sobre pessoas que não viam há tempo — e não sentiam urgência em rever. 

E assim aquele domingo se despediria, sem alarde, dando passagem à segunda-feira, que, em meio à ressaca do fim de semana, nem nos daria tempo de odiá-la. A rodada do campeonato traria alegria a uns e tristeza a outros. Nenhum juiz escaparia dos xingamentos corriqueiros e previsíveis. À noite, o Fantástico falaria dos jogos, da política e de coisas importantes. Algumas pessoas resmungariam que o fim de semana passou rápido demais, que amanhã já é dia de trabalho. E a vida continuaria. Afinal, tudo muda, menos o domingo.


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