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2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: GISELE OLIVEIRA — CATEGORIA CONTO

  • Foto do escritor: Casa Brasileira de Livros
    Casa Brasileira de Livros
  • 11 de jul.
  • 9 min de leitura
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SOBRE A AUTORA


Paulista de Diadema, nascida em 1973, vive em Curitiba desde 2010. Filósofa por formação e escritora por pulsação, publica contos — em especial com inspiração no realismo fantástico — e poemas em coletâneas de diversas editoras desde 2023. Escreve para expurgar o que a aflige e divertir-se com o que a amedronta.



O CONTO SEMIFINALISTA


Fluxo


Maria contemplava a nódoa, imóvel, intrigada por ela não exibir o vermelho intenso que lhe era familiar. Já havia visto sangue antes, muitas vezes. Sempre que se expunha tempo demais ao sol,  ele vertia de seu narizinho. Quando se atrapalhou com a faca, ao ajudar a irmã mais velha no preparo da salada de frutas com a qual surpreenderam a mãe no aniversário, cortou o dedinho, e ele escorreu. Durante as brincadeiras de correr, andar de skate ou pedalar pelo bairro com outras crianças, era comum se machucar e vê-lo brotar do joelho, dos cotovelos ou do dedão do pé. Mas aquela pequena mancha exibia um vermelho claro e aros alaranjados que se desvaneciam em um degradê suave ao seu redor. Acreditava que era sangue porque sua irmã passava por isso todos os meses. 

“Será que estou mesmo? Ainda tenho nove anos... A Carol ficou bem mais velha, com treze...” – divagava ali sentada no vaso, enquanto deixava a calcinha, antes descansando sobre seus joelhos, escorregar até o chão. Com os pés, afastou-a de si. Rasgou um pedaço de papel higiênico para se secar e, antes de jogá-lo na lixeira, percebeu que havia mais urina do que sangue – o que a deixou ainda mais confusa. Pegou a calcinha do chão, enrolou-a e colocou-a no fundo do cesto de roupas sujas para que não ficasse exposta. Escovou os dentes de forma automática, enquanto observava a água corrente desaparecer pelo ralo – “Talvez, seja só um machucadinho. Mamãe sempre diz que se não lavar a pepeca direito no banho, pode dar assadura, coceira. Talvez eu tenha me coçado à noite.” Cuspiu rápido quando foi interrompida pela irmã dando pancadas na porta: 

— Fala sério, Maria! Pra que trancar? Que saco!  

— Já vai! 

Pensou por um instante e pegou um absorvente na gaveta do móvel para se trocar no quarto, enquanto a irmã usava o banheiro. Antes de abrir a porta, no entanto, lembrou que precisaria de um extra para levar para a escola. Sabia que menstruação era algo que durava alguns dias, baseando-se na quantidade de absorventes usados que via na lixeira de casa, ora da mãe, ora da irmã. Então, pegou mais um e escondeu ambos debaixo da camisola. 

Neste horário, as duas sempre estavam sozinhas em casa, pois a mãe trabalhava como enfermeira à noite e costumava retornar do plantão depois que já estavam na escola. Do pai, Maria nunca soube muita coisa. Sua mãe se separou dele quando ela ainda era bebê, mas tanto ela quanto sua irmã evitavam falar sobre o assunto. Em uma ocasião, Maria ouviu uma tia chamá-lo de 'covarde' em uma conversa entre adultos à qual ela escutou de passagem. Sabia do esforço da mãe para criá-las sozinha, desde então, e admirava como ela conseguia resolver tantas coisas sem ajuda. Queria ser como ela quando adulta: independente e corajosa.

Revirou a gaveta procurando uma calcinha de cor escura, mas não tinha nenhuma. Mesmo as estampadas – com flores, nuvens ou personagens – eram em tons pastéis. Chegou a ficar triste ao pensar que o sangue poderia manchá-las. “Ah, já sei!” Lembrou-se de uma que a tia lhe deu e ela nunca havia usado porque não gostou. Era vermelha, com o símbolo da Mulher-Maravilha atrás – ela gostava mesmo era da Moana. Vestiu-a até a altura das coxas, posicionou o absorvente no fundo e subiu-a com cuidado até encostá-lo na vulva, que contraía para manter fechada. O item era desproporcional ao tamanho da calcinha, mas ela ajeitou os elásticos nas virilhas e no quadril para acomodá-lo, como fazia em suas bonecas após colocar a fralda. Depois, com a mão meio aberta, em concha, fez uma leve pressão pelo lado de fora da calcinha para se certificar de que o absorvente estava firme no lugar. “Acho que assim não vai vazar”. 

— Por que você está andando deste jeito? – perguntou sua irmã ao vê-la entrar na cozinha.

— Que jeito? Jeito nenhum! Estou andando normal. – contestou com a mesma naturalidade com que pegou o sanduíche e a garrafinha de suco que Carol deixou preparados sobre a mesa, colocando-os na lancheira.

— Toma logo seu leite porque eu tenho prova e não quero me atrasar.

Maria obedeceu e tomou-o numa virada, sem sequer se sentar. 

Mal atravessavam o quintal, o absorvente já começou a incomodá-la, deixando-a em descompasso com a irmã.

— Vai na frente, Carol. Prefiro ir sozinha, sem você me apressando. 

— Por mim... – a irmã deu de ombros e seguiu acelerando.

A escola ficava a uns quinhentos metros de sua casa. Perto o bastante para sentir-se segura de ir sozinha, o que não era incomum, mas longe o suficiente para sentir-se torturada por aquele volume incômodo entre as pernas. “Que porcaria isso!”

À medida que se aproximava do portão do colégio, cada vez mais irritada com o estranho ‘acessório’, torcia para não ser abordada por nenhuma das colegas antes de chegar ao banheiro. 

Ao atravessar o pátio, observou o alvoroço dos alunos, interagindo como um enxame de abelhas, e imaginou que faria parte dele se não fosse pelo seu estado. Percebeu que as meninas mais velhas estavam distribuídas em pequenos e comportados grupos pelos cantos, sugerindo que já estivessem na mesma fase que ela. Já os meninos, pensava, nunca passariam por isso. Poderiam continuar crianças por muito mais tempo. “Não é justo.” 

Sua irritação aumentou, fazendo-a apertar os lábios e o passo em direção ao banheiro. Na cabine, baixou a calça do agasalho junto com a calcinha e constatou que ainda estava limpa. “Ainda bem.” 

O que não estava nada bem era o absorvente, todo retorcido, cuja cola puxava seus finos e escassos pelos pubianos. Começou a desgrudá-lo devagar, mas a dor dos pelos sendo puxados era insuportável. Assim, decidiu seguir o conselho da mãe quando a instruiu na retirada de um esparadrapo que a irmã colou em seu braço por maldade – e puxou-o de uma vez, conseguindo conter o grito que teve vontade de soltar. Enxugou uma lágrima que escapou pelo canto do olho, pegou o outro absorvente na mochila e repetiu o procedimento que fez mais cedo. Desta vez, para garantir que ele estava bem colocado, ergueu a calcinha acima da cintura o máximo que pôde, apertando-a contra o corpo com firmeza. 

“Que adesivo mal feito! Por isso não fica no lugar quando a gente anda. Gente burra!”. Em sua inexperiência, deduziu que o adesivo deveria ser colado na vulva para estancar o sangramento, como um curativo. Por isso, achava que seria mais coerente que cobrisse toda a área de contato.

Última a entrar na sala de aula, sentou-se logo antes da professora adentrar o recinto. Abriu seu caderno, pegou uma caneta e ficou esperando o início da aula. O ruído dos alunos organizando-se nas carteiras era abafado pelos seus diálogos interiores, que continuavam a toda: “Tomara tenha sido só aquele pouquinho. Tomara eu não fique menstruada ainda.” Instintivamente, lutava para preservar algo que lhe era precioso, mas que só agora, com uma nova perspectiva, era capaz de enxergar: a própria infância. Para tanto, estava disposta a barganhar, embora não soubesse com quem ou com o quê.

“Se tudo voltar ao normal, juro que não vou mais brigar com a Carol quando ela estiver nesses dias e implicar comigo, como sempre faz.”

— Maria.

“Ela implica com tudo quando está assim, mas de hoje em diante eu nem vou ligar. Vou fingir que não é comigo e...”

— Maria!

— Presente! 

“Não vou mais brigar com a Carol, prometo!”

Enquanto a professora explicava a matéria, sua atenção se concentrava em lidar com o desconforto abdominal e os esparsos calafrios que se manifestavam. “Ai... que dor de barriga...” 

De repente, sentiu um fluxo molhado sair de sua vagina e ficou tensa. Ficou praticamente imóvel durante toda a aula, antes do intervalo, contando os minutos para poder correr novamente ao banheiro e verificar o estrago. 

Quando o sinal estava prestes a tocar, um novo fluxo, muito mais abundante, escorreu-lhe pelas virilhas e a deixou apreensiva. “Toca logo sinal, toca logo...” Diante da iminência de um vexame, não viu outra saída senão pedir ajuda para a colega da frente, que não era uma amiga íntima, mas com quem poderia cochichar sem chamar a atenção da professora.

— Sofia, preciso de um favor. 

— Fala. – respondeu a menina, olhando disfarçadamente por cima dos ombros.

— Quando o sinal tocar, eu vou precisar correr para o banheiro. Você acha a minha irmã e pede pra ela ir até lá me encontrar. Diz que estou com cólera.

— Cólera? Como assim?

— Depois eu explico. Faz isso pra mim?

A colega concordou com a cabeça e, conforme combinado, ao ouvirem o sinal, ambas seguiram o plano. Maria ultrapassou os colegas sem olhar para trás e correu para o banheiro. 

Devido à maneira como havia colocado o absorvente, o sangue se espalhou pela roupa dando a impressão de um volume muito maior do que o que realmente era. Mesmo assim, ficou receosa de ter molhado a cadeira e de ter que enfrentar bullying dos meninos por causa disso. Sentiu uma ligeira queda de pressão e seu corpo amolecer. 

Àquela altura, sua atitude prática sucumbiu à vulnerabilidade típica de uma criança assustada. Não que não soubesse que se tornaria adolescente e adulta um dia, apenas não esperava que esse ‘um dia’ chegasse tão rápido, pegando-a desprevenida. Ao contrário do que viria a compreender mais tarde, acreditava que enfrentar uma mudança tão drástica seria mais fácil se estivesse preparada. Enquanto aguardava a irmã, fechada naquele cubículo, frases soltas sobre a condição de ser mulher – captadas aleatoriamente, como uma antena, e até então sem importância – como ‘quem menstrua pode engravidar’, ‘já é mocinha’, ‘menstruação é castigo de Eva’, ecoavam em sua cabeça.  Olhava para a calcinha, e o vermelho vivo intensificou ainda mais sua vertigem.

— Maria, o que você tem? – perguntou sua irmã, preocupada ao vê-la tão pálida.

— Minha barriga está doendo, estou um pouco enjoada. Acho que é cólera, eu menstruei. – respondeu, a voz embargando de choro.

— Cólica, Ma. O nome certo é cólica. É normal quando a gente está assim, mas vai passar. Sofia, fica aqui com ela que eu vou na enfermaria pedir um absorvente. Já volto!

— Tá doendo muito, Maria? – perguntou a amiga entre compadecida e curiosa. 

— Um pouco... às vezes para, depois volta.

— Dá pra sentir o sangue saindo? Como é, igual a fazer xixi?

— Mais ou menos... é um pouco diferente. Sai sem você querer.

— Acho que do quarto ano você é a primeira que fica assim. As meninas do sétimo quase todas já estão. Se acham...

Embora contrariada, Maria ouviu a amiga tagarelar em silêncio, esforçando-se para não parecer ingrata. Felizmente, Carol não demorou. Entregou-lhe o absorvente e a orientou sobre como usá-lo corretamente.

— Viu? Assim, a parte fofa absorve o sangue, e o adesivo segura ele no lugar. Toma, amarra meu blusão na cintura e me espera na secretaria enquanto pego nossas coisas na sala. Vou te levar pra casa.

— E sua prova?

— Já fiz, não se preocupe. 

Carol voltou com o material e a notícia de que a cadeira não havia ficado manchada de sangue, o que acalmou Maria.

— Por que você não me contou em casa, antes da gente sair, Ma?

— Você contou pra mamãe quando ficou? 

— Claro.

— Ah... eu já sabia o que era. E também podia não ser, né? Então, não vi necessidade de falar. Mas agora entendo porque você fica tão chata quando está menstruada. Dói pra caramba! Parece que as tripas estão se revirando lá dentro. E dá vontade de mandar à merda quem fica fazendo pergunta besta, igual a Sofia. Grrr!

A irmã soltou uma gargalhada. 

As duas entraram em casa com cautela, para não acordar a mãe, que ainda dormia, e foram direto para o quarto, onde continuaram conversando.

Quando a mãe despertou, perto do meio-dia, Maria estava deitada, descansando, enquanto Carol aguardava na sala, ansiosa para compartilhar a novidade.

— Colou o adesivo nela, mãe, como band-aid! – disse, intercalando risadinhas – Que ideia!

— Não tire sarro dela, Carol, ela deve estar constrangida o bastante.

— Eu sei, não vou tirar. Mas que é engraçado, é.

A mãe cedeu, achando graça também.

— Ela é durona... Vai, coloca a mesa e pergunta se ela quer vir comer com a gente ou se prefere que eu leve pra ela na cama. – sempre as mimava quando não se sentiam bem.

Maria passou o restante do dia em casa, sem sair para brincar pois estava indisposta. À noite, antes de sair para o plantão, a mãe entrou no quarto das filhas para verificar se Maria estava melhor.

— Sim... – respondeu sonolenta.

— Se precisar de qualquer coisa, não deixe de avisar à Carol, está bem? – beijou-a no rosto, dizendo quase em seu ouvido – Minha menina corajosa.

No dia seguinte, a rotina da casa seguiu normalmente, sem alterações, exceto pela lancheira, que Maria guardou no alto do armário, onde ficavam os utensílios menos usados ou prestes a serem substituídos ou descartados. Quanto ao sanduíche para o lanche, ela o guardou na mochila, como fazia sua irmã. Ah, e junto com um saquinho contendo dois absorventes.


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