2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: GIUSEPPE MEMOLI — CATEGORIA CONTO
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- 14 de jul.
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SOBRE O AUTOR
Giuseppe Memoli nasceu em Uruguaiana-RS, em 1995, e mudou-se para a Ilha de Desterro (Florianópolis-SC) em 2016. Graduado em antropologia e mestre em antropologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente cursa letras pela mesma universidade. É autor do livro de poemas Quimera (ed. Multifoco, 2017) e do livro de contos Sapucay (ed. Urutau, 2024).
O CONTO SEMIFINALISTA
deste hostil quinhão
I
Adão foi acordar Pitaca. Encostou o pé na canela do guri, sem força o suficiente para ser um chute, mas com gravidade o suficiente para que ele despertasse em alerta. Entregou-lhe uma caneca com café fumegante. Café preto e forte, amargo e encorpado, um café bom.
O sol subia pela planície em um abraço cáustico. A geada escorria pelo pasto e umedecia os pés descalços. Os quero-queros berravam não muito longe dali, cortando o céu em rasantes longos e sumiam no alto capim que cobria o horizonte ao leste. Uma rocha larga despontava do chão como se estivesse se impelindo pouco a pouco para espiar o mundo pacato que havia sobre a superfície do solo negro e verde.
“Vamos. Já passou da hora de tocarmos”, disse Yamandú, o velho.
Mateava ao lado dos restos de um pequeno fogareiro. Enfiava displicentemente uma chaleira velha de ferro dentro da bolsa de couro e terminava de guardar o resto das tralhas no alforje de Batista, seu tordilho. Era o único que tinha um cavalo próprio — ninguém ali sabia como ele o conseguiu. Despejou a erva usada da cuia no chão, batendo e puxando os restos com a bomba.
“Guri, vai dar água pros bichos. Tem muito chão até o rio”, ordenou Adão.
Pitaca, que era acanhado e não falava muito, foi obedientemente até o declive que ocultava os cinco cavalos. Levou-os pelas rédeas até a sanga que, quase invisível, cortava os prados. A mais novinha das potras não queria beber de jeito nenhum. Tocou-os de volta. Eram cinco andaluzes garbosos de pelo lustroso cor de canela. Adão e Pitaca, que não tinham cavalos próprios, revezavam-se entre os cinco. Pitaca secretamente nutria maior carinho por um deles que, em pensamento, chamava de Pingo. Sabia que jamais poderia ficar com qualquer um dos potros, eram valiosos demais e havia prioridades na vida. Mas até então não podiam lhe cobrar nada pelo desejo e pela imaginação.
Seguiram em uma formação de coluna. O velho ia à frente, pois era quem tinha mais ideia de onde deviam estar e para onde deveriam ir. O menino ia montado no meio, levando em mãos as rédeas dos outros cavalos que acompanhavam diligentemente pouco atrás. Ainda mais recuado, Adão deixava que a coluna seguisse para poder observar os arredores. De quando em quando, ele trotava até alguma rara elevação e forçava os olhos em todas as direções, em busca de qualquer movimento que tentasse interromper aquela paisagem estática e perpétua que eram os Pampas.
II
Para quem possa importar, cabe agora contar um pouco sobre a história desse trio, do que fizeram e de como acabaram nessa situação. De modo a ordenar esta narrativa, compete dar forma a uma prosaica linha do tempo, trazendo os personagens um por um até que estejam os três juntos, culminando na marcha deste alcaide coluna.
Pitaca era filho de mestiço. Tinha a pele parda e feições indígenas. Era, todavia, bastante mirrado para a idade. Apesar de quieto, quando se permitia falar, conseguia se articular de forma aceitável e a despeito de uma educação parca e tosca, conseguia pôr os pensamentos em ordem e raciocinar minimamente. Tinha aquela comum constituição magra e de aparência fraca — mesmo com a labuta diária, era como se o corpo se recusasse a cultivar as marcas de seus esforços.
A vila em que viviam era um reduto exemplar do que só podemos chamar de barbárie civilizada. Neste quinhão amargo de terra, onde a pastagem cobria o horizonte inteiro e não se via refúgio algum da natureza plana constante, havia certamente uma condição civilizatória incomum, uma que tendia para enfermidades morais e, pior, para um sadismo sistemático. O trabalho árduo e perpétuo era uma realidade sisifesca de marasmo e estagnação social. De que adiantava se a terra era fértil, dado que a mão soberana era, acima de tudo, mesquinha e malévola. Naquela existência limiar absurda, nem mesmo o divino continha capacidade e intenções edificantes. Os padrecos eram nada mais do que fiadores espirituais da maldade que ali havia.
Numa data que jaz esquecida — não foi dia de comemoração, tampouco dia de santo — Pitaca levava seu irmãozinho até a casa de Dona Léia, uma boa mulher que não só se dispunha a cuidar das crianças da vila enquanto os pais labutavam, mas que também dedicava zeloso tempo para educá-los nos fundamentos básicos das letras e dos números, da melhor maneira que podia.
A casa ficava um pouco afastada, perto dos contornos da pedreira, uma ampla área murada nas cercanias da cidade. Enquanto caminhavam, brincavam de faz de conta, imaginando-se soldados e bandoleiros, correndo, abaixando-se, fazendo mira com armas imaginárias.
“Morra como um herói!”, gritava Pitaca.
“Viva como um covarde…”, respondia o irmão.
Enquanto chegavam na estrada que contornava o muro, ouviram o som de cavalos e vozes graves se aproximando. Foram para o canto para abrir caminho, até que viram de súbito dois cavaleiros em pleno estardalhaço, avançando afoitamente sem controle algum. Não houve o menor aviso. Um dos cavalos avançou sobre os meninos, derrubando Pitaca no meio da estrada. Conseguiu ver, antes de cair no chão, o irmãozinho sendo tragado pela violência daquelas patas brutas. Nem se ouviu nada, nenhum osso esmagando, gemido ou grito de angústia. O som dos trotes engoliu tudo. Antes de desmaiar, Pitaca viu o rosto do algoz, Tomás Filho, que olhava pouco impressionado para a cena. Percebeu que ele discutia com o outro homem, seu capanga, mas não conseguiu distinguir nenhuma palavra.
Acordou um dia depois em uma casa completamente escura. Era sua casa, mas estava diferente. Não havia luz, não havia fogo e nem janelas abertas. De algum canto se ouvia gemidos angustiantes de uma mulher e um coro de vozes doces em resposta. Levou alguns dias assim. Mantinha-se pouco tempo desperto, entre delírios e um sono sem sonhos. Mal sabia ele que, dentro de si, em algum órgão que ele não sabia o nome, secretava uma substância azeda, insípida, mas que lhe enchia os estômago e os pulmões com um mal-estar indefinido. Uma substância que lhe roubaria o sono pelas semanas seguintes, meses e anos seguintes e, no ápice de suas aflições, a substância gritaria no âmago: “Maldito seja Tomás Filho! Maldito seja Deus e seu mundo de merda!”.
Os anos se passaram. Primeiramente Pitaca havia até jurado vingança, em segredo, contra Tomás Filho. Mas a mãe o havia feito prometer que não faria nada. Não se podia fazer nada contra o filho do coronel e apenas Deus poderia dar amparo e justiça para pobres como eles. Naquele quinhão de terra, a lei, o governo e o carrasco eram o coronel. Mas a promessa de Pitaca não fez com que a amarga substância se dissolvesse. Antes, ela fermentava em seu corpo. Não podia mais ver o homem, nem o coronel, o pai ou qualquer um que fosse da fazenda daquele facínora. Amargava ver a mãe perdida em nervos, os parentes docilmente resignados.
Um ano depois, a mãe morreu de desgosto, em meio a delírios e tosses constantes, deixando para Pitaca a cabana e poucos pertences. No mesmo ano, Pitaca se rendeu. A substância já lhe havia tomado o corpo inteiro e não havia parte deo corpo que não pulsasse com ela. Já não se sentia vivo.
***
Adão trabalhava como peão na estância do coronel Tomás. Era neto de alforriados, mas vivia da mesma forma como viveram os pais e estes da mesma forma como viveram os pais deles. Após vinte anos de trabalho para o coronel, havia negociado com o homem um acordo, segundo o qual passados cinco anos trabalhando apenas pela comida e abrigo, ganharia um quinhão de terra para construir uma casa que fosse sua. Seria o primeiro de sua linhagem a ter algo. O coronel aceitou o acordo sem discutir muito, dizendo achar justo e, por isso, Adão trabalhou com vigor e dedicação por mais cinco anos e, para que não se passasse como desesperado, como a manter um orgulho particularmente específico, trabalhou ainda mais alguns meses para o coronel e o filho, esperando que eles mesmos se lembrassem do contrato.
Como não houve iniciativa da parte deles, sob muito custo, conseguiu abordar o coronel um certo dia, para que se lembrasse de honrar o acordo que haviam feito. Como podem imaginar, Adão não saiu satisfeito. O coronel explicou para Adão que não valeria a pena que pegasse uma terra, porque o salário que Adão ganharia não seria suficiente para bancar os impostos que o próprio coronel cobrava das terras na região. Disse ainda que o preço do imposto era maior do que o trabalho de Adão e seguiu contestando cada ponto e palavra que o peão trazia à tona. Adão, sem se resignar, disse que mesmo assim gostaria que o patrão honrasse os termos, o que, por sua vez, fez o coronel rir. Adão, enfurecido, não se controlou e acabou por insistir e por fim pediu então que o coronel pagasse os ordenados que foram trocados pela terra. Mostrando ares ofendidos, coronel Tomás disse que não devia nada e que havia pagado em comida e casa e que, se Adão não estivesse satisfeito, que buscasse outro lugar para trabalhar.
Um homem que tinha por destruído seus sonhos, Adão ficou semanas sem saber o que fazer. Trabalhava de forma automática, incapaz de reconstruir um plano de vida, incapaz de pensar em futuro ou em qualquer coisa que fosse. Pensar sempre lhe levava ao ódio, fazia a mente correr por caminhos fatídicos e amargos. Já não se sentia vivo.
***
Yamandú chegou à vila como quem não queria nada. Foi tratado como um velho viajante puído e pouco chamou atenção. Trazia pouca bagagem. Uns poucos itens nos alforjes. Uma bolsa de couro onde guardava coisas essenciais, como roupa e revólveres. Não parecia ter objetivos, vagou errante pela cidade, observando os arredores até encontrar um lugar para beber. Enquanto sorvia um liso na bodega da vila, tomou conhecimento de Pitaca, que agora trabalhava lá como ajudante, levando bebidas e pratos, esvaziando as escarradeiras e varrendo a poeira do chão de madeira. Combinou com o garoto de alugar um quarto em sua cabana por três dias e pagou adiantado.
Nunca conversaram muito. Quando se juntavam à mesa para tomar café, antes que Pitaca saísse para o trabalho, Yamandú tentou travar conversa, contar causos e vivências, mas se deparou com uma amarga indiferença e uma indisfarçada insipidez pela parte de seu anfitrião. Na noite do segundo dia, enquanto bebia na bodega, travou conversa com outros malfeitores. Isso porque eles se reconheciam entre si, como se tivesse um sinal disfarçado, que, apenas ao cruzar o limiar da ordem, se pode notar. Foi assim que Yamandú tomou conhecimento de Adão e por isso eles se encontraram.
O plano era esperar a próxima noite, na esperança de haver uma densa cerração, e invadir a estância do coronel, entrar no celeiro e roubar o máximo de cavalos que conseguissem tomar. Como Adão conhecia o terreno e, principalmente, os cavalos, poderia ser uma ação discreta e muito provavelmente eles já estariam longe quando o roubo fosse notado. Cavalgariam então até perto da usina, na beira do rio Uruguai, onde um conhecido de Yamandú os esperaria com uma balsa para que atravessassem até a Argentina. Lá, venderiam os cavalos por um bom preço. Estava combinado.
Na noite do crime, Adão já estava pronto e, terminado o trabalho de peão, em pensamento ele passou o plano em revista. Enquanto isso Yamandú, arrumava suas coisas. Não encontrou Pitaca em lugar algum, portanto partiria sem se despedir. Mas, ao arrumar a bolsa de couro, deu por falta de um de seus revólveres. Revirou, retirou tudo, recolocou e confirmou o sumiço.
“Aquele ladrãozinho safado!”, ele pensou com raiva. Sentiu-se tolo pelo acontecimento e, imerso na própria tolice, pensou que não haveria o que fazer, não se quisesse manter o plano do roubo. E, como o menino não havia roubado sua arma favorita, não era a pior coisa do mundo. Que o maldito fizesse bom proveito dos seus cem anos de perdão.
Evitando a estrada e qualquer transeunte, Yamandú chegou até o lugar de encontro. Adão relatou que estava cuidando do movimento na estância e disse que a maior parte dos peões já estava dormindo, o resto devia estar bêbado dentro das casas. Havia trancado os cachorros e, portanto, não haveriam de alertar ninguém quando Yamandú entrasse com ele. Era preciso fazer tudo rápido e de forma silenciosa. Não só os capatazes podiam estar de olho, mas qualquer peão que visse a cena faria alarde, já que o assalto recairia sobre todos os funcionários da estância que dividiam a função de cuidar das terras. Adão já não se importava mais com isso.
Chegaram calmamente até o celeiro. Entrariam pela porta lateral, já que o porteira principal certamente faria barulho ao abrir. Lá dentro, sairiam pelo portal traseiro, levando os cavalos por um caminho lateral que dava em um portão, deixado preventivamente aberto por Adão, onde Yamandú havia amarrado o cavalo de sua montaria esperando.
“Eu te emprestaria uma arma, mas só estou com uma”, disse Yamandu enquanto abriam a porta lateral.
“Tudo bem, aparentemente não vamos…”
As palavras de Adão foram interrompidas quando o velho colocou a mão na boca do comparsa. Fez um sinal de silêncio e então Adão ouviu. Havia alguém dentro do celeiro. Ambos se detiveram na entrada, sem saber o que fazer. Era exposição demais ficar ali, mas não sabiam o que havia lá dentro, apenas ouviam gemidos e sons abafados.
Yamandú sacou o revólver e entrou silenciosamente. À sua esquerda, um cavalo começou a se agitar e Adão não teve coragem de cochichar para acalmar o animal. Os sons abafados agora eram mais nítidos, assim como uma pequena luz no fundo do celeiro, próximo ao portão traseiro. Yamandú foi assim, de mansinho se aproximando, já arrependido de não ter abortado tudo, a coisa mais sensata a se fazer.
Engatilhou a arma, quebrando os sons abafados do ambiente com aquele estalo metálico. Avançou.
Tomás Filho estava amarrado na estrutura do celeiro, com uma mordaça na boca. O rosto, peito, braços e pernas estavam retalhados de cortes e a camisa e calça estavam empapadas de sangue. O lenço branco manchado estava caído ao seu lado, perto de uma bota. Um dos pés estava gravemente queimado, com uma crosta preta rodeada de uma pele branco leitosa, cheia de bolhas. Parecia restar apenas um olho naquele rosto retalhado e este mal se abria. Quando fitou os dois que entravam sorrateiramente, Tomás Filho começou a gritar, mas a mordaça abafava e ele parecia se afogar em baba e sangue.
Das sombras, de arma em riste, saiu Pitaca.
“Além de me roubar a arma, tem coragem de apontar pra mim, seu pedacinho de merda. O que tu achas que tá fazendo?”
“E-ee-e-le merece morrer, gaguejou o menino.”
“E precisava roubar minha arma pra isso? Por que não atirou logo nele? Olha só essa nojeira.”
“Ele merece sofrer pelo que fez.”
“Eu não me importo com nada disso. Agora devolve minha arma.”
Pitaca não se moveu
“Guri, tu nem sabes usar. Vamos! Devolve.”
“O que fazemos agora?, perguntou Adão.”
O velho apontou para Tomás Filho.
“Bem, aquele merda ali já nos viu. Seguimos com o plano.”
“Sim, mas o que fazemos com ele e com o menino?”
“Nada. Eles que se resolvam. O menino não quer matar ele? Que mate. Mas não com minha arma. Vai acabar acordando meio mundo se ele disparar essa porcaria.”
Todos continuaram parados. Ninguém resolvia o impasse, até que Yamandú falou:
“Assim, tu queres matar ele, não? Então, nós vamos levar uns cavalos, ir embora daqui para nunca mais voltar. Quando a gente sair, tu fazes o que quiseres com ele e depois fazes o que quiseres da tua vida caso saias daqui com ela.”
O menino não respondeu. Seguiram se olhando.
“Vamos. Dá minha arma aqui”. Avançou até ele, tomando a arma das mãos do garoto.
Yamandú virou as costas e foi com Adão até os cavalos, afastando os cochos e encilhando dois deles.
Enquanto terminavam de arrumar os cavalos, ouviu-se um grito de desespero que preencheu todo o ar do celeiro. O grito foi seguido de mais um e assim continuou. Tomás Filho havia se livrado da mordaça e usava todo resto de energia para gritar por socorro. Ao longe se ouviram os cachorros latirem ensandecidos. Adão foi até a janela da frente.
“Tem movimento. Eles ouviram. Logo vai encher de gente aqui”, ele disse com gravidade.
Yamandú já estava enfiando a mordaça novamente na boca de Tomás Filho.
“Seu porcaria, tu não ias matar ele? O que estás esperando?”, gritou para Pitaca.
O menino estava congelado no lugar. Como a se despertar, começou a procurar por uma arma, uma das facas de degola que usara para a tortura. Não encontrava nada naquela escuridão e imundície. Adão se precipitou em direção ao velho, tateou o chão ensanguentado e achou uma pequena faca. Olhou para o velho, que segura o corpo convulsivo de Tomás Filho. O velho apenas assente. Adão enterra a faca na garganta do homem, que cessa os gritos amordaçados, dando lugar a horríveis sons úmidos e cavernosos.
Lá fora, o barulho aumentava. Haviam soltado os cachorros, que latiam na porta da frente do celeiro. Um tiro soou próximo. Agora não havia jeito. Precisavam fugir. Yamandú montou no cavalo enquanto Adão abria a porta traseira. O velho escolheu mais dois dos melhores cavalos e saiu pela porta gritando para que Adão tivesse pressa em segui-lo. Adão montou e pegou mais dois cavalos. Já estava a ponto de sair em trote pelo portão quando se virou e viu o menino. Ele estava parado encarando o corpo desfalecido de Tomás Filho. Sem saber ao certo por que o fazia, largou a rédea de um dos cavalos e puxou o menino pelo pescoço.
“Vamos, suba!”, ele gritou enquanto colocava Pitaca sobre o cavalo. Disparou em trote.
Cavalgaram por mais de quatro horas até deixarem os cavalos sem fôlego. Tomaram caminhos erráticos com o objetivo de despistar os perseguidores. Cruzaram áreas de grama alta e baixa, córregos e caminhos repletos de pedra-pau que se impeliam do chão. Tudo para amainar qualquer linha de rastro que haviam deixado.
Agora que haviam deixado os perseguidores para trás, pelo menos por agora, dava pouca importância para a companhia de Pitaca. Para ele só importava que saíssem com vida e que mantivessem bem os poucos cavalos que conseguiram roubar. Tentava se convencer de que no fim valeria a pena.
III
Pitaca olhava apreensivo para a estepe que se estendia infinitamente no horizonte.
“E se a gente vir alguém?”, ele perguntou.
“Não tem ninguém por aqui”, Adão respondeu secamente
“Mas e se a gente vir?”
“Ver o quê? Quem? Só tem pasto, zorrilho e sorro por aqui.”
“Não sei. Índio ou algum bando de gaúchos…”
“Já olhaste pra tua própria cara?”
“Mas eu sou temente a Deus.”
“E que diferença isso faz?”, o velho disse, intrometendo-se na discussão.
Pitaca não sabia o que responder. A coluna cruzava o lusco-fusco que alaranjava o horizonte. Adão foi até um descampado mais alto que lhe rendia melhor visão da planície. Levou a mão até os olhos, para os proteger da luz, vasculhou cada lado em busca de algum movimento. Não havia nada.
“Eu só acho que prefiro ser preso a ser pego por um índio ou por um gaúcho, minha mãe disse que eles degolam e deixam o sujeito lá sangrando, ou colocam óleo quente pelo cu, só de ruindade”, Pitaca retomou.
“Tu achas realmente que vais ser preso? Cabe-te mais uma corda no pescoço e a merda escorrendo-te pelas pernas”, o velho retorquiu.
“Não sei o que é pior…”
“Se eu visse um gaúcho aqui, eu diria a ele que odeio branco tanto quanto ele”, atravessou-se Adão.
“Não sei bem se isso importaria tanto.”
“É o que eu diria a ele.”
“O mais provável é que nos deixassem sem os cavalos e sem as armas, miseráveis, para sermos encontrados pelo coronel. Um menino de armas virgens como tu não ia ter muito serventia para eles, quem sabe um escudeirinho. O negro talvez eles recrutassem…”
“Adão!”
“Quê?”
“Meu nome é Adão. Sou negro sim. Mas não sou guri. Sou homem e tenho nome. E meu nome é Adão.”
“Como quiser, companheiro.”
IV
Já estavam há um dia fugindo em direção à fronteira. Pararam para descansar no começo da noite, de modo a recuperar energias e prosseguir. Não viram nenhum sinal de acampamentos no horizonte e, por isso, decidiram dormir um pouco. Pitaca tinha um pesadelo recorrente. No pesadelo, ele se via montado garbosamente e trotava em velocidade, com o vento açoitando seu corpo, curvava-se no dorso do cavalo e se alimentava do movimento. O sonho se enveredava então para as trevas, quando ele se via dobrando uma imensa muralha feita de corpos nus apodrecidos, carrancas endiabradas, ervas daninhas nascendo entre as frestas. Ao fazer a curva que contornava o muro, ele via seu irmãozinho ali parado, como que esperando pela investida fatal do cavalo. No pesadelo, ele não tentava desviar, apenas aceitava o que aconteceria. Esmagava o irmão, que se esvaía sem gemer ou chorar e então ele apenas seguia caminho, em direção ao mundo desperto. O sonho podia variar. Algumas vezes se via cavalgando e arrastando o irmão por uma corda, sem nunca olhar para trás, ele apenas sabia que seu irmãozinho estava ali, desfazendo-se em pedaços na estrada.
E por ter esse pesadelo, Pitaca acordava se odiando.
Naquele dia, segundo Yamandú, deveriam cruzar a estrada que seguia em direção à fronteira. Seria uma das partes mais perigosas e esperavam fazer isso sobre a proteção do poente. Era perigoso cercar a estrada, quase à mesma medida em que cavalgar por ela. Deveriam escolher bem o ponto em que iriam cruzar e seguir sem parar. Teriam apenas mais um descanso, antes de atingirem o objetivo de chegar na beira do rio quando o sol estivesse nascendo novamente. O homem da balsa esperaria a manhã inteira por eles, mas apenas isso.
Não pararam senão para trocar a montaria. Yamandú também tirou a sela de seu cavalo Batista, para que ele descansasse e, caso precisassem fugir, o cavalo conseguisse manter o ritmo sem o peso do cavaleiro.
Tomaram um caminho pedregoso. Sobre o meridiano que ensanguentava o pasto e coruscava as pedras do caminho, eles enveredaram em direção à estrada, para finalmente cruzá-la e seguir campo aberto até o rio. Por conta das pedras, o trote era lento. Yamandú estava agoniado com isso. Ele o guiava. Mas aquelas planícies tão iguais não imprimiam mapas na mente de quem transitava ocasionalmente por ali. Apenas alguém que vivesse ali, capaz de domesticar cada pedra e cada detalhe redundante daquela paisagem poderia se localizar com perfeição. O que ele oferecia ao grupo, na verdade, era uma vaga ideia de onde estavam e de quanto tempo em geral levava para se chegar onde deveriam. Escolhia no olho os caminhos específicos. Mas estar ali é estar resignado a estar perdido onde se deveria estar.
Os três procuraram por qualquer tipo de movimento no horizonte, mas o breu que lhes refugiava era o mesmo que lhes turvava a visão. Com mais ansiedade do que certeza, apesar das comichões que sua cautela lhe lançava, Yamandú deu ordem para que a coluna arriscasse e cruzasse a estrada e naquela mesma altura em que estavam. Se eles não viam nada, nada os veria. Foi o que ele disse.
Lentamente eles enveredaram em direção à estrada e, cruzando a terra batida, passaram para o outro lado, assomando uma rara elevação que havia no terreno, mas imperceptível a distância no escuro. Já do outro lado, Adão chamou atenção de todos.
Olharam para trás e viram.
Vencendo a elevação e já descendo trepidante, um carreteiro conduzia um par de cavalos alcaides pela estrada. Pareceu não ter visto a estranha coluna que furtivamente evitava a estrada. Quando virou finalmente o rosto em direção a eles, foi possível perceber o nítido espanto de feições. Três homens maltrapilhos caminhando fora da estrada o encaravam com gravidade. Atrapalhado pela visão, apressou os cavalos, mas com gestos vacilantes, demonstrava arrependimento da decisão. Por fim, levou a mão ao chapéu em um patético cumprimento.
Ninguém respondeu ao cumprimento.
“Que fazemos?”, perguntou Adão.
“Ele provavelmente vai contar. Não tem por que não contar. Se cruzarem com ele, vão perguntar e ele vai dizer que nos viu aqui. Ele é nativo, deve saber exatamente onde a gente tá e pra onde a gente tá indo”, respondeu Yamandú.
Ele parecia pouco preocupado. Estava alisando a rédea e deslizando ela entre os dedos. A mente pareceu se distanciar.
“Que fazemos com ele?”, Adão insistiu.
“Se for pra fazer algo, só matando… Se a gente ameaçar, nada vai impedir ele de contar. Se deixarmos ele ir, é jogar com a sorte.”
“Você está com as armas.”
“Sim, mas eu não estou muito afim de matar um velho carreteiro. Com sorte, ele contando que nos viu ou não, vamos já estar na Argentina.”
“E se não tivermos sorte?”
“Bom, aí pouco importa. No momento, precisamos de sorte.”
“Me dá a arma.”
“Certo. Mas, dependendo de onde estiverem, eles podem ouvir o tiro. Ou alguém pode ouvir. Independente do que você resolver, precisamos de um pouco de sorte.”
“Você tem uma faca?”
“Estás pensando em fazer como o menino?”
“Eu não sou covarde. E já chegamos até aqui.”
“Então pouco importa.”
“Você parece não dar muita importância para nosso sucesso.”
“Ah, eu dou sim. Mas bem, o sucesso claramente está além do nosso controle.”
“Mas isso nós podemos controlar.”
“O menino também achou que podia controlar a vida alheia. Eu achei que podia controlar o esquema todo, o que iria acontecer…”
“Eu não sou um menino.”
“Olha para ele. Parece um menino? Se eu visse de longe, certamente o confundiria com uma fera. Mesmo depois de lavado, olhe só para todo o sangue”, o velho disse apontando para os trajes manchados de sangue de Pitaca.
O carreteiro já desaparecera na noite.
“Bem, agora ele já está longe”, disse Pitaca.
“Melhor assim, já basta um açougueiro na comitiva.”
Quem sabe, se os três pudessem prever o futuro ou as coisas que acontecem, eles teriam tomado outra decisão. Ou quiçá, mesmo sabendo, ainda teriam mantido as mãos limpas com relação ao carreteiro. O que é fato é que, horas depois, o carreteiro chegava a uma estância, onde deveria entregar o charque que carregava e, lá, encontrou uma gigantesca comitiva de perseguidores acampada e, entre eles, havia dois oficiais do Exército que os acompanhavam, cada um comandando uma companhia de soldados. O velho carreteiro contou para os perseguidores — antes mesmo que o perguntassem — que viu a estranha coluna. E assim descobriu que eram eles os procurados ladrões e assassinos. Engoliu em seco e rezou para Santa Maria, agradecendo a bênção de ter passado incólume pelos bandidos.
V
Quando o negror do céu deu lugar ao cinza, eles já sentiam o cheiro lodoso do rio. Encontraram um lugar para descansar enquanto Yamandú mapeava a área com os olhos. Estavam próximos do local de encontro. Na verdade, haviam passado um pouco. As provisões estavam no fim, mas não importava. O que decidiria o resto da vida deles agora era o êxito em cruzar o rio.
Chegaram ao lugar de encontro. Havia uma cabana abandonada que dava para um pequeno deque e adentrava poucos metros no rio. Era a antiga habitação de um jangadeiro que costumava trabalhar ali, fazendo o trajeto de margem a margem todos os dias. Como haviam construído uma cidade com mais balsas a cem quilômetros dali, o lugar ficara defasado e pouco utilizado. No fim, apenas contrabandistas o utilizavam, o que gerou problemas para o balseiro. Estava abandonado há anos. Ruínas de uma antiga usina abandonada depois de dezenas de ataques de bandoleiros gaúchos também compunha a paisagem.
“Onde está o teu companheiro?”, Perguntou Adão.
“Não faço ideia. Combinamos de ele vir pela manhã, ainda temos umas quatro horas.”
“Não gosto da ideia de esperar aqui.”
Esperaram.
Uma hora depois, Pitaca estava jogando pedras no rio, virou-se para Yamandú que mascava tabaco, aparentemente sereno. Perguntou:
“E se ele não vier?”
“Aí nós provavelmente morreremos”, respondeu o velho, rindo em seguida. Continuou: “Bem, ele nunca faltou comigo até hoje.”
“Vocês são velhos comparsas?”, perguntou Adão.
“Ele é mais moço, trabalha levando chibo. Tratei com ele uma dúzia de vezes. Sempre correto.”
“Não gosto de contar minha vida com gente que não conheço. Ele já devia estar aqui.”
“Bem, como eu disse, precisamos de um pouco de sorte. E você não pareceu desgostoso em contar comigo para roubar os cavalos.”
“Você vendeu como um bom plano.”
“Mas foi um bom plano!”
Duas horas se passaram.
“Agora eu também quero saber. E se ele não vier?”, perguntou Adão, que já há meia hora estava inquieto, caminhando ansioso pela margem do rio.
“Bem… Em último caso, alguns quilômetros a oeste tem uma área que foi aterrada anos atrás. Era para ser outra usina, como a que havia aqui. Podemos tentar cruzar. Não há garantias de que vamos conseguir com os cavalos, mas é possível. Sabem nadar?”
Adão fez que sim. Pitaca fez que sim.
“Bom. Eu não sei. Mas é o que dá pra fazer.”
VI
Uma hora mais se passou.
Adão estava de pé, já se propondo a arrumar as coisas para tentar a travessia que o velho havia dito. Lançou um último olhar para o rio, observando qualquer movimentação que pudesse haver pelas águas. A água escurecida seguia adiante para os dois lados. Na margem oposta, uma densa vegetação, duzentos metros separada apenas pelo rio. Ele encarava aqueles arbustos e árvores que quebravam a constância vertiginosa e horizontal dos pampas. Aquela vegetação era a Argentina. Se não houvesse o rio, estariam lá em poucos minutos. Mas havia o rio e o rio era uma constante. Independente deles haveria o rio e não havia nada que se pudesse fazer. Ou se cruzava, ou padeceriam ali.
“Merda”, ele ouviu o velho murmurar.
Yamandú estava de pé olhando na direção contrária. A noroeste, Adão pode ver claramente: cinco cavaleiros armados olhavam para eles, imóveis, como estátuas absurdas quebrando o ímpeto do meridiano. O pasto verde era quebrado por aquelas figuras que se estendiam impávidas e constantes. O céu azul, de um azul brutal, envolvia-os num caleidoscópio cósmico. O encanto da cena se quebrou quando dois dos cavaleiros ergueram seus rifles e atiraram para cima. Haviam encontrado os fugitivos.
“Vamos!”, gritou Yamandú.
Correram até os cavalos, que estiveram sempre preparados para uma fuga.
Yamandú entregou o seu segundo revólver para Adão.
“Não deixe que te peguem vivo. E se te pegarem, leve algum filha da puta contigo para ter companhia no Inferno.”
“Conseguimos chegar até a travessia?”, perguntou Adão enquanto tomava a rédea dos outros cavalos.
“Temos que conseguir”, disse o velho, atiçando e colocando o cavalo em trote rápido.
Mais tiros. Um dos cavalos conseguiu escapar, trotando desordenadamente, perdido.
Cavalgaram. O mais rápido que os cavalos conseguiam, porque suas vidas dependiam disso. Pitaca estava montado em Pingo. Ele esporeava o cavalo sem pena e se perguntava se Pingo sabia que a vida de Pitaca dependia dele. Ele trotava em desespero até ouvir os gritos de Adão. Percebeu então que estava se afastando, em direção ao interior. Enveredou o cavalo e foi se aproximando dos outros dois. Não tinha coragem de olhar para trás. Quando ouvia um disparo, apenas aguardava resignado que o corpo fosse violentamente jogado do cavalo pelo impacto. Mas o impacto nunca chegava e cada vez mais o corpo se inflamava. Rezava para que Pingo entendesse, para que seguisse veloz o caminho e o mantivesse com vida. Pela primeira vez na vida, Pitaca quis viver.
Yamandú seguia na frente e enfim emparelhou com Adão. Deviam cumprir alguns quilômetros até a travessia, mas sabia que as chances eram poucas. Se não fossem interceptados no caminho, a chance de morrerem na travessia era alta. Ainda que fizessem os cavalos passarem, fazer deveria ser devagar, para que os cavalos não escorregassem e quebrassem as patas. Levaria mais de vinte minutos para vencer o trajeto até o outro lado. Se estivessem com os perseguidores colados neles, seria impossível.
Os disparos cessaram. Mesmo assim, Pitaca não tinha coragem de olhar para trás. Rezava em pensamento para que os perseguidores os houvessem perdido.
“Mais um pouco”, gritou o velho.
Agora estavam todos próximos. Adiante, com o rio à direita, podiam ver que a correnteza ia mudando. Quando se aproximaram da suposta travessia, Pitaca pôde ver as pedras e elevações que quebravam o curso do rio. A água batia violentamente nas rochas e, apesar de o trecho inteiro dar pé, a água iria cobri-los até o peito.
“Está muito cheio, não sei se podemos passar com os cavalos”, disse Yamandú enquanto diminuíam a velocidade.
“Fodam-se os cavalos”, disse Adão.
“Valem uma fortuna.”
Antes que pudessem se decidir, ouviram tiros. A leste, mais de dez cabeças montadas surgiam. Alguns já traziam rifles em riste. As balas zuniam. Ouvia-se o ricochetear nas rochas a perfurar a pele do rio. Yamandú já não dizia nada, apenas entornou o cavalo em direção à travessia e começou a cruzá-la, mas o cavalo relutava e o chão era um ente desconhecido no âmago da água lodosa. Adão pulou do cavalo e disse para que Pitaca fizesse o mesmo. Os dois desceram e passaram à frente do velho, que maltratava o cavalo em vão para que ele desempacasse adiante.
“Deixa o cavalo!”, Adão gritou.
“Não vou deixar a porcaria do cavalo.”
Mas ele foi obrigado a deixar o cavalo. Um tiro acertou em cheio a anca do animal, fazendo-o inclinar violentamente, tentando manter o equilíbrio. O velho não estava preparado para o súbito movimento e acabou escorregando da cela e caindo, se cortando todo nas rochas. Com esforço, ele se levantou atirando. Não havia como fazer mira, mas como eram muitos, ele torcia para acertar alguém.
“Vai na frente! Não para!”, Adão gritou para o menino.
Os perseguidores já estavam na beira do rio e eles não haviam cruzado sequer um terço do trajeto. Adão parou e fez pontaria, mas, antes de escolher um alvo e mirar, o corpo foi propelido para trás. Um projétil lhe acertou o ombro. Trocou o revólver de mão, mas era inútil, não tinha experiência e os tiros iam a esmo até que lhe acabaram as balas.
Yamandú não sabia e já não se importava se havia acertado alguém. Continuou andando, escorregando e lutando contra a correnteza. Tiros quebravam a água em seus dois flancos. Finalmente o acertaram. Não houve nenhum estardalhaço. A bala lhe acertou a cabeça e ele findou, sumindo dentro da água, sendo carregado pela correnteza até aparecer flutuando mais à frente. Adão já havia abandonado a posição, sem munição ele lutava desesperado para vencer a travessia. Sem olhar para onde caminhava, o pé escorreu no limo e torceu. A correnteza estava forte onde ele estava e não havia como avançar com apenas um pé. Ele olhou para o menino, que continuava avançando, já havia passado da metade do trajeto.
Para não se afogar, Adão precisou voltar. Os perseguidores cercavam a beira do rio. Já quase não atiravam. Um dos oficiais organizava um grupo para atravessar. Adão levantou os braços sob a mira dos rifles.
Pitaca lutava contra a correnteza indiferente aos disparos. Parou para recuperar o fôlego e cuspir água. Olhou para trás. Não viu onde o velho estava. Na beira um cavalo jazia morto e em pensamento Pitaca rezou para que não fosse Pingo. Procurou com os olhos e não encontrou mais ninguém. A ideia de estar sozinho, sem Adão e sem Yamandú, lhe era mais desesperadora que as balas que cortavam em sua direção. Conseguiu ver, finalmente, o corpo bruto de Adão de joelhos na beira do rio, estava cercado de homens e por isso ele não o havia visto antes. Agora estavam espancando-o, com chutes, chicotadas e pedaços de pau. Ele se desesperou ainda mais e o corpo começou a fraquejar. Queria voltar e ajudar o companheiro, mas não tinha como, não tinha meios para isso. Os olhos aflitos só podiam enxergar e nada mais. Passivamente ver a violência que aqueles homens faziam, violência que ele percebeu, era projetada para ele, para intimidá-lo e para satisfazer às necessidades sádicas daquele bando.
Por fim, Adão estava deitado, convulsivo de barriga para baixo. Um homem sacou uma faca de degola e se posicionou atrás, colocando um dedo em cada narina de Adão, ele violentamente puxou a cabeça do homem para trás, revelando o pescoço. Sem pestanejar, sem últimas palavras ou qualquer remorso, Pitaca viu o homem brandir a faca e levá-la ao pescoço de Adão, separando a carne de seu corpo, abrindo-a e deixando verter uma gravata colorada.
Pitaca, em desespero, virou-se e continuou a travessia. Alcançou um lugar onde a terra e as rochas estavam mais firmes, foi vencendo a correnteza, mas o lugar onde estava já o deixava inteiro exposto. A água ia atéas coxas, ainda dificultando o caminho, mas com o revés de revelar seu corpo inteiro como alvo. Ele continuou. Os tiros cessaram. Ele não olhou para trás. Ele já alcançava a outra margem, quase invadindo a mata ciliar. Agarrou um galho que se propelia em sua direção e fez força, puxando-se para fora da água, que agora só batia nas canelas. Mais alguns passos e estaria na margem.
O último passo de Pitaca foi de esperança. Era um passo que, com o peso dos companheiros mortos, doloroso e pesado, mas ainda assim, um passo esperançoso e convicto. O último passo de Pitaca lhe deixou a pouco mais de cinco pernadas da margem. Por isso, quando a bala perfurou suas costas, rebentando o que lhe havia dentro do peito, Pitaca sentiu a dor misturada com a esperança e por isso ele confundiu os dois sentimentos. A correnteza levava seu corpo, que se esvaecia sem que ele percebesse. Na cabeça, aquele último movimento lhe deu a liberdade e ele havia vencido a correnteza e os perseguidores. Até o fim, ele não tomou conhecimento da ferida em seu corpo.
VII
A correnteza levou o corpo delirante de Pitaca e a margem o recolheu com amor e ternura. Os cabelos molhados se misturavam com a umidade férrea da terra e ele vomitava água em tremores tortuosos. As rochas polidas sob seu corpo lhe aconchegavam no paraíso que ele imaginava em delírio. Da treva incompreensível da mata, um jaguar surgiu, caminhando cautelosamente na direção dele. Cheirou o corpo e lambeu as feridas. Deitado, ele olhou com amor e docilidade para o jaguar, que o encarava curioso. Viu em seus olhos os do irmãozinho e por isso sentiu vontade de abraçar a fera. Os olhos coruscavam e refletiam o imenso azul do céu. A imagem da mãe enferma refletia naqueles olhos e, enquanto o jaguar limpava as feridas do corpo de Pitaca, este sentiu um amor materno que lhe pareceu fruto do divino. O corpo era acalentado e toda sensação que precipitava sobre si lhe parecia fogo. Sentiu o amor do fogo e como este amor era desconhecido e místico. O jaguar continuava lambendo as chagas, parando apenas para encarar aquele ser curioso que deixava de viver. O menino tentou chorar, mas não encontrou a tristeza necessária. Viu a imagem da mãe sumir daqueles olhos bestiais. A fera piscou e as imagens se retorceram. Nos olhos agora surgiam mantos e neblinas. Rapidamente ele distinguiu imagens constantes. A Virgem Maria abraçava seu corpo moribundo naqueles olhos. A beleza e o encanto da natureza lhe eram revelados naquela mirada. Enquanto o jaguar lambia os beiços, o menino viu naqueles dentes irascíveis toda uma verdade natural. Ali estava a vertigem do céu e o tambor da terra. Viu o próprio sangue na boca do animal e sorriu, sentiu-se afortunado pela visão. Para ele, ele terminaria, para todo o resto não.
O jaguar deitou-se ao lado de Pitaca e esperou até que a vida se esvaísse. Com destreza e cuidado, a fera carregou aquele corpo magro até sua cova, entregando-o com doçura e zelo para seus filhotes famintos.




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