2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: HAYTON ROCHA — CATEGORIA CRÔNICA
- Casa Brasileira de Livros
- 11 de jul.
- 3 min de leitura

SOBRE O AUTOR
Paraibano de Itabaiana, nasceu em 1958 e migrou aos 10 anos de idade para Alagoas. Economista com pós-graduação em Marketing, trabalhou por mais de 40 anos no Banco do Brasil, ocupando cargos como diretor de RH e diretor de Marketing. É também cronista e blogueiro (www.blogdohayton.com), autor de seis livros, entre eles Só eu sei (2019), Uma estrada e a lua branca (2023) e Até aqui deu certo (2024).
A CRÔNICA SEMIFINALISTA
Vai um pastel aí?
Era sábado. Cochilei um pouco depois do almoço e, quando acordei, saí de casa de fininho e fui em busca de um dos maiores prazeres que o ser humano, a partir de certa idade – se você me entende! –, pode experimentar: pastel de carne moída e azeitonas.Já na primeira mordida deveria ter desconfiado do gosto um tanto esquisito, mas a gulodice não me deixou perceber que estava em curso violento atentado à flora intestinal do cristão aqui.
Passei o resto do fim de semana xingando uma certa padaria da Asa Norte, com enjoos, cólicas, perda de apetite, mas nem sinal de diarreia ou vômitos. Havia a esperança da eliminação espontânea do miserável agente causador daquilo.Quando apareceram alguns calafrios na manhã de segunda-feira, o pânico veio junto. Febre é febre! Apavorado, chamei um táxi às pressas e fui bater na emergência de um dos maiores hospitais de Brasília. O antiespasmódico colocado no soro para atenuar minhas dores abdominais desencadeou quadro clínico que na mesma hora me fez refletir sobre o breve sopro que é a vida. Não nos manda aviso-prévio do seu fim nem nos prepara para quem iremos deixar por aqui.Praticamente reduziu a zero o chamado peristaltismo intestinal – movimentos involuntários que ajudam o trânsito do bolo alimentar durante a digestão – e em minutos instalou-se o que os médicos chamam de Geca (Gastroenterocolite aguda).Mesmo sonolento, ainda deu para ouvir rápido cochicho entre dois deles, ambos com semblantes carregados:– O que achou da Geca? Será que foi salmonella?– indagou o primeiro.– Não estou ouvindo sinais de luta... – respondeu o outro...Como ainda me restavam traços de humor, quis perguntar mas faltou coragem: haveria algum conflito ideológico entre meus órgãos internos? Ou entre cantoras de uma dupla sertaneja de quem nunca ouvira falar? Geca fazia a primeira ou a segunda voz? Nada disso! Apenas um jeito, no dialeto deles, de dizer que não havia “nó nas tripas”.Endoscopia, ultrassonografia e tomografia foram realizadas para afastar a hipótese de problema mais grave, como tumor ou coisa parecida. Mas a barriga não parava de distender, a cara amarelava, as mãos e os pés gelavam...– Vamos ter que transferir o senhor pra UTI. Lá é melhor do que aqui no ambulatório – disse alguém.O silêncio e a penumbra gelada dos corredores até a UTI meteram em minha cabeça um punhado de interrogações. O que me restava de lucidez alertava que a vida, esse "jogo de culpa que faz tanto mal" – como diria Gonzaguinha – , estava perto do fim. Nunca havia deitado numa maca nem para deixar campo de futebol e a primeira vez, poderia ser a última. Era meu corpo carente admitindo que sim – claro, poderia acontecer! –, mas minha alma, inconformada, gritando que não.Deu para perceber que alguns familiares e amigos chegavam para ver com os próprios olhos o que um pastel de carne moída e azeitonas era capaz de fazer com um cidadão em plena forma, no esplendor de seus 50 anos. Ouvi gemidos, gritos e lamentos de outros pacientes enquanto me instalavam monitores, até chegar um moleque com 20 e poucos anos, barba por fazer e jaleco amassado – intensivista estagiário, creio – e me enfiou goela abaixo um catéter que achei que fosse vazar na outra extremidade. Santo remédio! Um jorro de vômito escuro inundou a cama. Em poucos minutos, já me sentia bem melhor, levantei e fui ao banheiro tomar um banho restaurador.Enquanto isso, um porta-voz do hospital foi até a sala de espera e, para desanuviar o recinto, disse em tom de pilhéria, óbvio:– O pior aconteceu... Ele vai sobreviver! Passei ainda a noite inteira com uma sonda nasogástrica no pré-sal de minhas vísceras, sugando tudo o que o desgraçado do agente causador havia feito para impedir que eu testemunhasse o crescimento de meus netos.De alta hospitalar 72 horas depois, passava em frente a uma lanchonete quando a balconista, quem sabe comovida com minha cara de fome, mas sem saber de meus antecedentes intestinais, quis ser gentil:- Vai um pastel de queijo ou carne moída aí, moço?Devo confessar que recusei a contragosto. Minha família me internaria – noutro tipo de hospital, certamente! – se soubesse que ainda cogitei provar a iguaria. Mas era só uma mordidinha de leve, na casca. Nem atrapalharia o almoço.Há mais de 10 anos ninguém me tira da cabeça que foi o enfeite com salsinha mal lavada que me estragou aquele fim de semana. Pastel é do bem! Não faria uma crueldade dessas com um velho admirador.
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