2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: ISRAEL BRAGLIA — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros
- 15 de jul.
- 23 min de leitura

SOBRE O AUTOR
Israel Braglia é escritor, designer e professor na Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Engenharia e Gestão do Conhecimento, mestre em Design Gráfico e atualmente pós-doutorando. Une pesquisa, estética e espiritualidade em sua produção literária. Autor de obras como O grito impensado de um espírito aflito (2018), Por Deus e por Jerusalém (2017), Alcácer (2023) e Deus ainda está chorando (2023), publicou seu primeiro livro em 2003: Enxugando as lágrimas do Pai. Desde então, vem desenvolvendo uma escrita intensa e simbólica, marcada por temas como fé, dor, identidade e redenção. Em 2025, lança Design 5.0: o lugar dos criativos na indústria digital, em coautoria com Júlio Teixeira, pela Alta Books. A maioria de suas obras sai pelo selo O Verbo Editora. Israel é casado, pai de três filhos, e vive em Florianópolis (SC).
O CONTO SEMIFINALISTA
A NOITE ESCURA DA ALMA
Copacabana, 17 de janeiro de 2002.
21h37. A casa respirava um calor morno, embalado pelo som da televisão que preenchia a sala. Na tela, Cissa Guimarães aparecia em O Clone, enquanto, ao fundo, a voz de Zélia Duncan deslizava pelo ambiente com Alma, deixa eu ver sua alma, a epiderme da alma, superfície...
— Mãe! Ô, mãe! — chamou Jéssyka, a voz ansiosa cortando o ar. — Vem ver! Tá tocando a tua música.
Da cozinha, onde o cheiro de tempero e louça recém-lavada pairava no ar, Alma suspirou, enxugando as mãos no pano de prato.
— Tá amarrado, menina!
Mas Jéssyka insistia.
— Vem ver, mãe!
Alma balançou a cabeça, um meio sorriso escapando sem que ela percebesse.
— É só tocar essa música que tu me chama...
— Vem logo!
Na sala modesta, de móveis gastos pelo tempo, Jéssyka espichava-se preguiçosamente no sofá, os olhos grudados na novela que piscava na tela da televisão. Da cozinha, o ruído da água correndo na pia misturava-se ao tilintar dos pratos, enquanto sua mãe, de avental surrado, dava conta da louça do jantar. A noite de verão era espessa, quente, dessas que fazem o suor brotar na nuca sem esforço. O velho ventilador Arno, verde-musgo e cansado, girava suas pás com resignação, movendo o ar abafado sem grande efeito.
Na rua Guimarães Natal, no primeiro andar do miúdo Edifício Igaratá, vivia Alma, viúva de fala mansa e olhar de quem já vira muito. Criava os dois filhos sozinha, entre suspiros e pequenos desalentos. Jéssyka, sempre grudada à mãe, adorava cutucá-la, testando-lhe os limites com provocações meio infantis, meio marotas. Já Léo, o primogênito, era um enigma difícil de decifrar, um desses rapazes que carregam o mundo nas costas sem dizer uma palavra.
Naquela noite, mal a novela começara, Léo entrou em casa sem dirigir palavra a ninguém. Atirou a mochila num canto da sala e sumiu pelo corredor. Trancou-se no banheiro. O ruído do chuveiro se misturou ao som áspero que saía do velho Lenoxx, um CD arranhado do Rappa rodando em volume alto. Era o seu ritual: abrir a janelinha estreita, riscar o isqueiro, levar o cigarro aos lábios e desaparecer, por instantes, do mundo lá fora.
Na cozinha, Alma lavava a louça, os olhos baixos, as mãos mergulhadas na espuma. Sabia o que acontecia do outro lado da porta fechada. Olhou de soslaio para Jéssyka, largada no sofá, e entendeu que a filha também sabia. Um peso incômodo e insistente lhe apertou o peito. Sempre nesses momentos lhe vinha à lembrança Noca, o marido que a vida lhe roubara cedo demais.
Noberto Carlos, mais conhecido como Noca, conheceu Alma Francisca numa tarde abafada de 1979, logo depois do clássico entre Flamengo e Botafogo. O Maracanã fervia, transbordando gente pelas saídas. Alma, de braço dado com a amiga, resolveu comprar uns churros antes de pegar o caminho de casa. Foi então que as duas se depararam com um grupo encenando uma peça no meio da rua, aproveitando a maré de torcedores que saía do estádio. Ficaram ali por alguns minutos, rindo, observando, até que seguiram adiante.
Pegaram um ônibus lotado, espremidas entre trabalhadores, torcedores e um bando animado que transformara o fundão do coletivo num terreiro de samba. Tamborins improvisados batiam contra as laterais do banco, vozes gritavam refrões desafinados, e o cheiro de suor e cerveja misturava-se ao perfume adocicado dos churros. Quando o ônibus virou na altura do Viaduto dos Pracinhas, um solavanco sacudiu a carroceria e o motor engasgou. Motorista bufando, passageiro resmungando, mas não teve jeito: todo mundo teve que descer. Foi ali, no meio da confusão, que Alma cruzou os olhos com Noca pela primeira vez.
— Sorte no jogo, azar no amor — ou, no meu caso, sorte no amor, azar no jogo! — disse o rapaz moreno, descolado, com a camisa do Botafogo, olhando nos olhos de Alma com um sorriso travesso.
Alma e sua amiga riram da brincadeira, descontraídas, e no riso, no olhar que se cruzou, ali se deu o encontro.
O resultado da noite ficou marcado na memória: Flamengo 2, Botafogo 1, mas, para Alma, o placar mais importante foi outro — o do romance que começava a se desenhar no ar.
Alma era uma moça morena, daquelas de beleza que se impõe sem querer, criada no Méier, mas com o coração e os pés muitas vezes na Baixada Fluminense. Futebol? Ela não gostava nem de ouvir falar. O que a encantava eram as praias do Rio, o sol, o mar, a liberdade do vento no rosto. Seus domingos tinham o cheiro de sal e areia, e sua pele bronzeada, com a marca do biquíni e os cabelos escuros e ondulados, faziam os marmanjos tropeçarem nas palavras.
Cresceu sob os cuidados da avó, uma senhora crente pentecostal e de fé inabalável. Alma nunca foi lá muito chegada à igreja, mas, por amor à avó, aparecia aos domingos, sempre com um sorriso obediente. Ela acreditava em Deus, claro, mas à sua maneira, fazendo suas orações com a alma, sem a formalidade dos cultos, de um jeito único, pessoal, que a tornava mais próxima Dele do que qualquer rito.
Noca, filho único de um sargento rigoroso, vivia na área militar do Rio de Janeiro, onde as regras eram claras e a hierarquia, intransigente. O pai de Noca, homem de princípios inflexíveis, não via com bons olhos aquele relacionamento, acreditando que o filho merecia algo melhor, talvez a herdeira de um coronel ou de um militar de nome. Mas, como o destino tem seus próprios planos, Alma engravidou, e o que antes parecia um romance proibido se transformou em uma imposição. O sargento, com a dureza de quem sempre teve o controle de tudo, não titubeou: Noca teria que se casar com ela, e não havia espaço para mais discussões.
Noca nunca foi de se segurar. Desde cedo, quando começou a sair com os amigos para o centro da cidade, a bebida já se mostrou uma companhia traiçoeira. O que eram para ser passeios de diversão acabavam sempre da mesma forma: ele arrastado de volta para casa, com os olhos turvos e a fala enrolada, como se o álcool fosse uma fuga, um alívio de algo que ele não sabia bem o quê. O gosto pela bebida se intensificava à medida que ele afastava qualquer ideia de responsabilidade. Trabalhar de verdade? Nunca passou pela sua cabeça. Os estudos? Para ele, eram como um castigo a ser evitado, uma prisão de onde ele não queria escapar.
A vida militar, com sua disciplina rígida e rotineira, era a última coisa que ele imaginava para si. Aquelas regras, o futuro previsível, a pressão que o cercava... tudo aquilo era insuportável. Para Noca, só havia uma verdadeira religião: o Botafogo. O time era sua paixão, sua válvula de escape, o único universo onde se sentia livre.
Apesar de tudo, o pai de Noca, com sua determinação implacável, ainda encontrou uma maneira de tentar dar ao filho um mínimo de estabilidade. Comprou para Noca e Alma um pequeno apartamento, antigo, mas bem localizado, perto do Parque Estadual da Chacrinha. Era uma tentativa, talvez um último esforço, de oferecer ao filho uma nova chance, um novo começo. O apartamento era simples, sem luxo, mas o velho sargento não se cansava de repetir: “Aquela região só vai decolar com um mirante de vista pro mar.” O mar, porém, passava longe dali, e a vista, essa, nunca existiu.
E foi nesse apartamento, tão distante da promessa do mar, que Alma vive até hoje. Bem ao lado de uma pequena igreja presbiteriana, onde o silêncio parece ecoar o peso de uma vida marcada por escolhas e esperanças que nunca se concretizaram.
Quando o filho deles nasceu, Noca não hesitou nem por um instante: o nome seria Leônidas, uma homenagem ao seu próprio pai. “Melhor honrar meu velho do que um cantor!” dizia ele, com aquela confiança de quem não conhece dúvida, fazendo referência ao seu nome, escolhido pela mãe, que ele nunca chegou a conhecer, uma fanática por Roberto Carlos — era assim que o pai lhe contava.
Alma, por sua vez, não teve voz na decisão. O nome estava escolhido, e como tudo em sua vida com Noca, a escolha foi tomada sem que lhe fosse dada a menor oportunidade de opinar. Por causa desse relacionamento, ela deixou para trás sua vida no Méier, afastando-se da família, e nunca mais retornou. O peso da gravidez a fez se esconder da vergonha, como se, ao ter o filho, tivesse também abandonado a si mesma.
Noca sempre viveu às custas do pai, dependente do sustento dele, sem jamais precisar se preocupar com o futuro. Mas quando o velho morreu, algo que parecia impensável aconteceu: Noca entrou em colapso. Sem o apoio financeiro que sempre teve, a tristeza o tomou por completo, e ele se viu forçado a buscar um trabalho para sustentar a casa. Porém, Noca não era como o pai. Viciado em cachaça, seus dias se resumiam a falar incessantemente sobre futebol, especialmente sobre o Botafogo. O pouco dinheiro que conseguia, ele rapidamente dissipava em jogatina e bebida, vivendo como um típico boêmio de Copacabana, vagando pelas ruas sem rumo, entre um bar e outro, sem destino e sem esperanças.
Enquanto isso, Alma, sem muitas opções, começou a fazer costuras para fora, buscando uma forma de sustentar a casa e os filhos. Com o passar dos anos, e sem planejamento, Alma engravidou novamente, um descuido que a pegou de surpresa. Ela não queria mais uma filha, mas, ao escolher o nome para a menina, decidiu chamá-la de Jéssyka, com "y" e "k", como quem busca dar um toque de sofisticação a um destino que, no fundo, já sabia ser difícil.
Noca morreu de cirrose. Na verdade, ele caiu em coma alcoólico em um bar, e ninguém percebeu a gravidade de sua condição até que fosse tarde demais. A quantidade de álcool que ele consumiu o levou a um fim silencioso, daqueles que ninguém vê até que já tenha passado, como um suspiro que se perde no vento.
Agora, a vida de Alma se resumia a ela mesma, a Léo e a Jéssyka. Ela não tinha coragem de voltar para sua família no Méier. E, apesar de todo o sofrimento, sentia falta de Noca. Era um vazio estranho, uma saudade que a consumia de forma silenciosa. As lembranças dos momentos compartilhados surgiam, como fantasmas que não a deixavam em paz. Voltavam à tona trazendo não apenas saudade, mas uma tristeza profunda, aquelas velhas recordações que inundavam sua mente, quando a vida parecia, de algum modo, mais cheia, mais completa. Velhas lembranças…
Enquanto lavava as louças, Alma mergulhava nos pensamentos pesados do passado, sua mente vagando por entre as lembranças que teimavam em voltar, como fantasmas que nunca se afastam. Mas, de repente, um estalo súbito a tirou do transe. Um estrondo seco, um som tão agudo e rápido que não se podia identificar de imediato. Alma ouviu um ruído abafado, seguido de algo caindo no chão. Seu coração parou por um instante, gelado, antes que ela corresse até a sala, com o corpo se movendo como se já soubesse o que encontraria.
O choque a envolveu ao ver Jéssyka caída no velho chão de taco da sala, imóvel. Alma gritou, um grito que se partiu em mil pedaços ao ver o sangue se espalhando pelo piso. Havia um grande ferimento no peito da filha, e o ar pareceu escapar de seus pulmões. O desespero tomou conta dela, misturado com uma incredulidade brutal, uma dor que não se podia dimensionar. Ela agarrou Jéssyka com força, tentando estancar o sangue com as próprias mãos trêmulas, chamando seu nome, implorando em meio a lágrimas que ela permanecesse viva. Mas não havia nada que ela pudesse fazer. Uma bala perdida, disparada em uma briga distante, havia atravessado o ar e penetrado pela janela aberta, atingindo a única razão que ainda dava sentido à vida de Alma. A filha.
Ruídos na rua, buzinas distantes, vozes exaltadas se misturando ao som de tiros, gritaria na esquina... O caos lá fora refletindo o caos dentro do apartamento.
Léo, chapado, saindo do banho depois de um longo tempo imerso em seu próprio transe, ainda atordoado, não sabia bem o que estava acontecendo. Quando entrou na sala, a cena o paralisou. Seus olhos se arregalaram, o corpo ainda pesando, a mente confusa, até que ele finalmente conseguiu gritar, a voz tremendo.
— Que merda é essa? Mãe??!!
***
As sirenes ecoavam por toda a pequena rua do edifício Igaratá e se espalhavam pela rua Tonelero, cortando o ar com sua urgência. O tiroteio havia sido intenso, uma verdadeira troca de tiros que sacudiu a tranquilidade da noite. Um ônibus, parado na praça Cardeal Arcoverde, servia de escudo para os bandidos que, desesperados, fugiam em direção à mata do mirante do Morro São João. Dentro do ônibus, um rapaz com ferimentos leves tentava se recompor, enquanto um homem, alvejado, jazia desacordado na calçada.
No bolso daquele homem, que ainda não despertara da neblina da dor e do sangue, um telefone celular Nokia começou a tocar, cortando a quietude da cena como um eco distante, como se o som das sirenes não fosse suficiente para dar o tom de urgência que o momento pedia.
— Alô? Pai? — a voz no outro lado da linha estava trêmula, carregada de confusão e medo.
— Ele era seu pai? — a voz do desconhecido soou firme, sem espaço para mais perguntas. — Houve um tiroteio, e o senhor, dono deste celular, foi baleado. Venha para cá agora.
Antes que pudesse responder, o homem desligou, deixando o silêncio pesado na linha, como um peso irreparável sobre os ombros de quem ouvira aquelas palavras.
Naquele mesmo dia, Lídia foi deixada na rodoviária do centro do Rio pelo seu pai. Acabara de completar 18 anos e estava a caminho de uma missão de louvor e adoração no interior de Minas Gerais. Seu pai, um pastor pragmático e distante das grandes empolgações do ministério juvenil, estava ali, sem grandes palavras, mas presente, apoiando a filha no que fosse necessário. Lídia levava consigo um celular, mas sabia que na região para onde ia não haveria sinal. Antes de partir, resolveu ligar para o seu pai.
Depois de deixá-la, o pastor seguiu seu caminho para uma visita que já havia agendado, uma oração por uma pessoa doente. No entanto, enquanto estava a caminho, o ônibus em que ele viajava foi atacado por bandidos. A violência explodiu de repente. Tentou fugir, mas antes que pudesse dar qualquer passo, uma coronhada na cabeça o fez cair, sem forças para reagir. Desacordado no chão, ainda sofreu um tiro. O pastor foi levado para o hospital, gravemente ferido, correndo risco de vida. Seus pertences — carteira e celular — foram roubados, e o seu destino foi ultrajado com a incerteza do que o aguardava.
Lídia estava confusa, envolta numa nuvem de preocupações que não conseguia dissipar. Algo não se encaixava, ela sentia isso, mas não sabia exatamente o quê. Desconfiava que seu pai poderia ter sido assaltado, mas nada além disso parecia claro. Sem saber da gravidade da situação, ignorava que ele estava naquele momento à beira da morte, sendo levado para o hospital. Com o coração apertado, seguiu sua viagem para Minas Gerais, sem imaginar que o destino de sua vida mudaria em um instante.
Passou-se uma semana inteira, uma semana sem notícias, até que finalmente o orelhão, distante e solitário, que ficava próximo ao sítio onde ela estava hospedada, quebrou. O sinal simplesmente não existia, e com isso, Lídia ficou isolada do mundo, incapaz de comunicar-se com a família. Quando, finalmente, conseguiu um contato, o que a aguardava não eram palavras de alívio, mas a notícia amarga da morte de seu pai.
O peso da dor chegou como um soco no estômago. O arrependimento veio como um vulto, uma sombra que a envolvia, sem tempo para explicações, sem chance de se despedir. Desesperada, com o coração esmagado pela perda e pela impotência, Lídia não pensou duas vezes: decidiu retornar imediatamente, mas, no fundo, sabia que já era tarde demais.
***
“O Rio de Janeiro não é para amadores, meus amigos!” – as palavras de Gilson Ricardo, o radialista da Rádio Tupi, reverberavam na mente de Alma com uma crueldade desconcertante. Aquela frase, antes dita com um tom de brincadeira, parecia agora um retrato implacável daquilo que sua vida se tornara. O mundo de Alma havia desabado, e ela, como se estivesse fora de si, não conseguia mais encontrar lugar na confusão que se instalara.
Os dias seguintes se arrastaram como uma longa noite sem fim, repletos de uma tristeza densa e indomável. O apartamento, que antes era palco de risos, conversas e sonhos, agora se transformara numa prisão silenciosa, onde as paredes guardavam apenas ecos de memórias que, em vez de confortar, só faziam aumentar a dor. A perda de Jéssyka a deixara um luto profundo que lhe comprimia o peito.
O vazio que a menina deixara era tão vasto que Alma mal conseguia se levantar da cama. O dia a dia tornara-se um mar de desolação onde tudo parecia sem sentido. O trabalho como costureira, que antes lhe dava algum alicerce, agora fora abandonado. Os telefonemas dos clientes se tornaram um ruído distante, ignorado, como se não mais tivesse forças para atender à vida que batia à sua porta. O que antes a movia já não existia mais; tudo estava imerso em um silêncio opressor, onde a escuridão dominava sem promessas de a luz voltar.
Léo, perdido em si mesmo e incapaz de enfrentar a tragédia que consumia sua vida, tomou uma decisão impensada: afastou-se. Saiu da casa e da vida de Alma sem deixar rastros, sem uma palavra, sem uma explicação. Alma, envolta em sua angústia, não sabia onde ele estava, com quem andava ou o que fazia. A solidão se instalou como uma sombra interminável, e ela se viu perdida, consumida pela aflição e pela desesperança. O marido e a filha estavam mortos, e o que restava de mais precioso em sua vida, Léo, também havia desaparecido. Ele teria partido para nunca mais voltar?
O silêncio, que vinha tomando conta de cada canto daquele apartamento, tornou-se cada vez mais insuportável. Alma, desesperada, buscava uma resposta que nunca chegava. As horas, antes tão bem definidas, agora se confundiam em um emaranhado sem fim, e as noites e manhãs se tornavam uma única extensão de dor contínua. Deus, em quem sempre acreditou, que parecia sempre perto nos momentos de dificuldade com Noca, agora se tornava uma presença distante e inatingível, como se Ele, por algum motivo, também tivesse se afastado de sua vida.
No auge de seu sofrimento, Alma, perdida em suas dores, buscou abrigo na pequena capela oculta entre as árvores da sua rua. Não era um lugar grandioso, mas algo em sua quietude a atraía. Escolhia sempre os bancos de madeira nas últimas fileiras, como fazia quando ainda acompanhava sua avó, buscando no silêncio um consolo que não sabia encontrar em palavras. Ali, ela se perdia, o olhar fixo no altar, sem orar, sem chorar — apenas permanecendo imersa em seus próprios pensamentos, como quem espera que o tempo passe, esperando que a dor se dissipasse sozinha.
Foi em uma dessas visitas que Alma encontrou um livro esquecido em um canto da capela: “A Noite Escura da Alma”. O autor, San Juan de La Cruz, parecia falar uma língua que, de tão familiar, quase a assustava. Folheando as páginas com mãos trêmulas, seus olhos se detiveram em uma citação que a fez parar por um instante. "A alma que caminha nesta noite sente-se, às vezes, tão aniquilada que pensa que jamais há de sair dela." Aquela frase, lida no meio da tempestade interna que a consumia, soou como uma descrição do seu próprio sofrimento. Era como se o autor, com suas palavras, soubesse exatamente o que ela estava vivendo: um sofrimento que devorava toda a sua fé, toda a sua esperança.
Sem hesitar, Alma pegou o livro e o levou consigo para casa, sentindo que talvez ali estivesse algo capaz de lhe acalmar.
***
— Como assim? Como vocês deixaram isso acontecer? Como não conseguiram contato comigo? — A voz de Lídia explodiu no corredor do Hospital Federal de Ipanema, carregada de furor e uma dor que rasgava o peito. Seu pai, levado para ali naquela noite, estava agora fora de seu alcance. E ela, com os nervos à flor da pele, desesperada, não conseguia entender o que tinha acontecido. Cada segundo perdido parecia mais uma sentença cruel. Sentia que haviam deixado seu pai morrer, abandonado no momento mais necessário, e a raiva, misturada com uma profunda desolação, lhe consumia.
Com passos apressados, ela saiu do hospital, seu corpo se movendo automaticamente, sem direção definida. A rua Gomes Carneiro se estendia à sua frente, e, ao longe, um pequeno pedaço do oceano era visível, sereno e indiferente. A beleza do cenário parecia distante, como se estivesse em outro mundo, alheio à dor que dilacerava seu coração. Cada passo em direção à praia era uma jornada sem rumo, repleta de frustração e um desespero que não encontrava escape. O mar, ali na sua frente, parecia tão distante quanto qualquer esperança que ainda pudesse restar.
Deus, para Lídia, se tornara uma equação sem solução, um mistério impossível de resolver. Sua vida espiritual, antes tão cheia de sentido, parecia ter se dissipado como névoa ao amanhecer. Voltar à igreja onde seu pai ministrava? Não, isso não fazia mais sentido. Na verdade, qualquer igreja, qualquer lugar que representasse fé, agora parecia vazio para ela. Lídia sentia que precisava de uma pausa, uma distância, de tempo e de compreensão. Queria explorar outras possibilidades, viver novas experiências, seguir um caminho que fosse só seu, sem os laços que antes a prendiam a algo que agora já não parecia mais real.
Ela sempre fora exemplar. Uma menina que crescera temente a Deus, com um amor profundo pela Sua presença. Ministrar na igreja era uma alegria sincera, algo que fazia seu pai se orgulhar dela, e ela mesma se sentia completa nesse papel. Sua vida sempre foi de muita dedicação, com o desejo constante de ser um exemplo para os outros. Não havia motivo, em toda sua trajetória, que justificasse o peso daquilo que ela agora carregava.
E as perguntas, essas que explodiam em sua mente sem parar, ecoavam sem resposta. Onde estava Deus agora? Como Ele poderia permitir tudo aquilo? Por que isso aconteceu com ela, com seu pai, com sua família? Lídia se via perdida, vagando em um mar de incertezas.
***
Copacabana, 07 de julho de 2007.
09h37. O som do bipe dos códigos de barras passando pelo leitor ia se dissipando no ar, como se fosse engolido pelo murmúrio suave da rádio da farmácia, que tocava Zélia Duncan naquela manhã de sábado: “Alma, daqui do lado de fora, nenhuma forma de trauma sobrevive...”. Era impossível, em qualquer lugar, ouvir aquela música e não ser invadido pela lembrança de Jéssyka.
− Total de R$147,98. Algo mais para a senhora? – perguntou a atendente, com aquela calma que só quem está habituada à rotina das horas mortas de uma manhã de sábado possui.O silêncio se estendeu, longo, sem pressa de se desfazer.− Senhora?
− Desculpe, estava distraída – respondeu, finalmente, a mulher, como se tivesse sido arrancada de um pensamento distante.
− Tudo bem – disse a atendente, com a mesma voz monótona, quase como se fosse parte da mobília. – O valor, a senhora prefere à vista ou vai parcelar?
− Uma vez, no crédito.
− Ótimo.
Alma estava ali, com as mãos ligeiramente trêmulas, finalizando o pagamento. A música de Zélia havia silenciado, mas o peso que se instalara em seu peito parecia ainda ecoar, tão denso quanto o ar ao redor. Enquanto procurava algo na bolsa, seus olhos caíram sobre um livro ao lado do caixa, um título que parecia ser um sinal: "A noite escura da alma."
− Você está lendo este livro? – perguntou, a voz, ainda tensa, escapando quase sem querer.
A atendente, que parecia distante em seus próprios pensamentos, levantou o olhar, surpresa com a pergunta.
− O que a senhora falou? – respondeu, focada em outro ponto qualquer.
− Aquele livro ali... é seu?
− Ah, sim! – a atendente respondeu com um leve sorriso, como quem não entende bem a razão da pergunta. – Por quê?
− Me chamo Alma – disse ela, sorrindo com um leve tom de cumplicidade. – Este livro tem meu nome. A minha noite escura foi quando minha filha faleceu. Ele mexeu muito comigo. Parece que foi escrito para mim – completou, deixando escapar uma risada leve, como se tentando aliviar a intensidade das palavras.
− É mesmo? – respondeu Lídia, com um olhar que denunciava um passado dolorido. – Na verdade, esse livro era do meu pai. Estou lendo agora. Tenho lido vários livros que eram dele. Ele faleceu há cinco anos.
− Meus sentimentos – disse Alma, com a voz suave, tocada pela revelação. – Minha filha também... foi por uma bala perdida, aqui perto.
− Meus sentimentos por sua filha também – respondeu Lídia, com um suspiro profundo. – Aliás, me chamo Lídia, e meu pai também morreu baleado... Aqui perto, inclusive! E, por ironia do destino, acabei conseguindo um estágio aqui, bem perto de onde ele se foi.
− Que coincidência! – disse Alma, espantada. – Faltam muito para você se formar?− Um ano – respondeu Lídia, com um sorriso tênue, mas cheio de esperança. – Espero que sim! Hoje, na Apoteose, vai ter um grande show. Vou direto para lá, assim que sair daqui.− Que bom que você conseguiu.
− Consegui o quê? – perguntou Lídia, confusa, sem entender o tom da frase.− Tocar a vida em frente... – respondeu Alma, com um olhar sereno, como quem soubesse o peso que isso significava.
− Às vezes, a vida nos coloca diante de desafios tão severos que parece impossível encontrar um caminho à frente. Cada um de nós carrega uma história única. A capacidade de seguir, apesar das adversidades, é um dom que vem de Deus. Eu gostaria de ouvir sua história qualquer hora dessas – disse Alma, com uma serenidade que parecia ter sido forjada pelo tempo e pela dor.
− Concordo. Cada história é um testemunho de resiliência e fé...
− Muito obrigada, e bom show para você hoje – completou Alma, um sorriso leve nos lábios, mas o olhar distante.
− Você quer ir? Pode ir junto comigo e meu namorado – ofereceu Lídia, a voz um pouco mais animada, como se convidasse Alma para compartilhar um pedaço da vida dela.
− No show? – Alma perguntou, surpresa, quase desconfiada daquilo. − Não, obrigada. Já não tenho idade para isso. Vai lá, aproveite com seu namorado.
Lídia, sem hesitar, pegou um pedaço de papel e escreveu apressada, como se não quisesse perder a oportunidade de fazer uma conexão, por mais fugaz que fosse:
− Este é meu número. – Disse, estendendo o bilhete. – Me ligue ou me mande uma mensagem de texto quando puder.
Aquela atitude tomou Alma de surpresa. Algo havia mudado no ar, como se uma linha invisível tivesse sido lançada entre elas, conectando-as de um jeito inesperado. Lídia estava no meio de sua juventude, namorando, estudando, trabalhando, enquanto Alma, dia após dia, se via buscando forças para seguir. Ela havia retornado à costura, não por prazer, mas porque precisava se agarrar a algo que a mantivesse em movimento: disciplina, foco, vida. A dor da perda dos filhos e do marido nunca a abandonaria, mas havia algo no horizonte, uma luz tênue, distante, mas lá. Ela decidiu lutar por Léo, seu filho. Onde ele estaria?
***
O celular de Lídia vibrou. Na tela, uma notificação: "Olá Lídia. Por favor, ore por mim e pelo meu filho, bjs. Alma (de hoje, na farmácia)."
Lídia franziu a testa, tentando recordar. A mulher da farmácia, sim... A conversa tinha sido curta, mas o olhar de Alma ficara gravado em sua mente, como uma sombra de dor que parecia familiar, demasiadamente familiar.
− O que foi? − perguntou seu namorado, notando a expressão pensativa dela.
− A mulher que estava na farmácia hoje me mandou uma mensagem − respondeu Lídia. − Eu acho que a filha dela pode ter morrido no mesmo tiroteio que o meu pai. Não sei bem por quê, mas sinto que é isso. Agora ela está me pedindo oração.
A mudez se instalou entre os dois, pesada e densa. Lídia olhou para a tela do celular, sentindo um laço invisível se formar com aquela mulher que mal conhecia. Algo dentro dela dizia que os destinos de Alma e dela estavam entrelaçados de uma forma que ia além de simples coincidência.
Durante o show, enquanto as vozes da multidão se erguiam em uníssono na Apoteose, Lídia sentiu que as palavras da música eram como uma oração compartilhada, era um clamor coletivo que tocava o mais íntimo do ser: “Põe as cores que há em Teus olhos sobre mim...” Ela fechou os olhos, apertou a mão do namorado com força e começou a orar por Alma e seu filho, como se pudesse, de alguma maneira, suavizar a dor que as unia.
Depois daquele dia, a amizade entre Lídia e Alma floresceu, como uma planta que brota do solo árido em direção ao sol. O vínculo delas nasceu da perda, mas foi se fortalecendo com o tempo, como se, de alguma forma, o sofrimento tivesse criado raízes profundas. Alma encontrou em Lídia alguém que, com paciência, ajudaria a dividir o peso insuportável da dor. E Lídia, por sua vez, descobriu em Alma um rastro de seu próprio passado, alguém que também carregava cicatrizes, mas que, de alguma maneira, a fazia entender que, por mais amarga que fosse a vida, as aflições podem unir pessoas e propósitos para seguir em frente.
Depois de um tempo de luto pela perda do pai, Lídia voltou para Minas Gerais, onde se refugiara durante a missão. O lugar, que antes lhe parecia um abrigo, agora começava a se tornar um campo fértil para o alívio das feridas que carregava. Aos poucos, Lídia foi permitindo que o peso do passado se escoasse, aceitando que, embora não compreendesse completamente os desígnios de Deus, ainda havia um propósito para sua vida. Esse entendimento, que chegou de forma lenta e gradual, trouxe consigo uma nova identidade sobre seu futuro: era hora de seguir em frente. Lídia retornou ao Rio de Janeiro com uma nova determinação — cursar farmácia, recomeçar a vida na Zona Sul. Decidida a escrever um novo capítulo de sua história, ela estava preparada para o ‘novo’, pronta para redescobrir o que a vida ainda tinha a oferecer.
Alma, por sua vez, percebeu que a dor que sentia, por mais insuportável que fosse, não era uma dor exclusiva. Havia outras pessoas que carregavam pesos semelhantes. Inspirada por San Juan de La Cruz, encontrou consolo na fé que não se baseia em sentimentos efêmeros, mas em uma confiança e determinação que persistem apesar da dor. Alma continuou a frequentar a pequena capela, não em busca de respostas, mas apenas para estar ali, como quem espera, em silêncio, pela resposta que, embora distante, um dia viria.
***
Copacabana, 25 de agosto de 2007.
10h04. Uma carta deslizou silenciosamente por debaixo da porta, como uma mensagem trazida pelo vento, inesperada e discreta. Alma notou o envelope ali, mas não sabia dizer se já estava lá há algum tempo ou se chegara naquele exato momento. Havia algo de misterioso nisso. Hesitou por um instante, mas, movida pela curiosidade, se abaixou para pegá-lo.
Era um envelope simples, de cor laranja, sem maiores enfeites. Na frente, apenas uma inscrição em letras manuscritas: “Para Alma”. Não havia remetente. O vazio da identificação lhe deu um frio na espinha, como se o envelope carregasse algo que ela ainda não entendia.
Com cuidado, abriu o envelope. Dentro, encontrou um CD levemente arranhado, daquele que trazia as músicas de O Rappa, acompanhado de uma carta que parecia ter sido escrita com a mesma urgência com que o envelope lhe chegara. Alma, com as mãos ligeiramente trêmulas, retirou o pedaço de papel e começou a ler, como se soubesse que aquele simples gesto poderia ser o começo de algo importante.
Mãe,
Não consegui falar com você quando tudo aconteceu. Depois que a Jéssyka se foi, fiquei completamente perdido, sem saber como lidar com a situação. O tempo foi me mostrando, de uma maneira brutal, que os camaradas que me forneciam droga estavam envolvidos no tiroteio que matou a minha irmã. Eu não sabia o que fazer, mãe. A dívida que eu tinha com eles parecia uma bola de neve prestes a me engolir, e, ao mesmo tempo, eu só pensava em vingança. Não suportava te ver daquela maneira, caída na cama, sem forças para reagir. Sempre soube que a Jéssyka era melhor do que eu.
Na minha confusão, busquei dinheiro com outros caras do tráfico, tentando resolver tudo à minha maneira. Acabei fugindo para a Baixada, acreditando que poderia escapar de tudo. Mãe, eu nunca fui traficante de verdade, mas as circunstâncias me levaram a fazer escolhas erradas. No começo, logo que cheguei lá, fui pego. Fui preso e, mesmo sendo a coisa mais difícil, não disse uma palavra. Não contei a verdade para os policiais, não passei endereço nem telefone. Nunca te liguei, nunca te procurei. Tentei resolver tudo sozinho, à minha maneira. Sei que isso deve ter te machucado muito, mas, hoje, entendo que o pior de tudo foi não ter falado contigo, não ter te procurado.
Logo, estarei em liberdade condicional e estou voltando. Não sei se você vai me querer perto, mas espero que esteja bem. Não espero perdão, mãe, mas gostaria de te ver, mesmo que seja pela última vez.
A vida é assim, né? Nada é previsível.
Com amor,
Léo.
***
Na escuridão imensa de sua alma, Alma foi aos poucos descobrindo uma nova forma de enxergar a vida. A perda de seus filhos e de seu marido criara um vazio, um abismo onde a esperança parecia impossível de alcançar, e a solidão se tornara sua companheira de rotina.
Os dias passavam devagar, arrastando-se. Mas, pouco a pouco, algo começou a acontecer. Não foi um milagre repentino, nem uma revelação grandiosa. Foi uma mudança quase imperceptível, como uma brisa suave do mar que se levanta sem aviso, sinalizando que algo estava para mudar. Alma começou a perceber que, embora a dor nunca fosse desaparecer completamente, ela não precisava ser a única presença em sua vida.
A dor ainda estava ali, inegável, mas ao lado dela, uma pequena chama começava a brilhar. Uma luz frágil, quase tímida, mas que, por mais distante que estivesse, oferecia sinais de vida. Era como se, no meio do sofrimento profundo, Alma tivesse encontrado uma lanterna acesa, um ponto de luz na escuridão que a envolvia: Léo estava a caminho.
A notícia chegou de forma inesperada, mas secretamente desejada. Alma não sabia ao certo o que esperar, nem como seria esse reencontro, mas uma coisa era certa agora: algo dentro dela havia mudado. A presença de Léo parecia abrir uma brecha para a possibilidade de que, talvez, só talvez, ela pudesse começar a reconstruir sua vida, um pedaço de cada vez.
A escuridão ainda estava lá, não havia como negar, mas não era mais total. A luz começava a crescer. E com ela, uma nova maneira de ver o mundo se formava, lenta e timidamente, como se a vida estivesse finalmente começando a se insinuar. Alma não estava curada, longe disso, mas ela estava se movendo, passo a passo, cautelosamente, em direção à vida que ainda a aguardava, uma vida que ainda se desenhava à sua frente. A vida sempre continua. A fé nunca se apaga. O amor jamais acaba.
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