2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: JOÃO DANTAS — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros
- 19 de jul.
- 26 min de leitura

SOBRE O AUTOR
João Dantas é psicólogo (CRP 05/74457) com mais de 10 anos de estudo em psicologia, pós-graduado em Psicologia Clínica e especializado em atendimento ao público católico e cristão. Nascido em Volta Redonda, desenvolve uma prática clínica que integra a filosofia perene, a psicologia moderna e os ensinamentos da Tradição espiritual. Escritor e tradutor, dedica-se a escrever sobre temas que sempre acompanharam a humanidade e a traduzir obras que harmonizam fé e ciência. Atende presencialmente e online, oferecendo um cuidado psicológico alinhado com os valores cristãos.
Saiba mais: @psic.joaodantas
O CONTO SEMIFINALISTA
Princípio adâmico
Hoje quem olhe as ruas e grandes praças dos grandes centros urbanos verá, se não a depressiva arquitetura moderna, então, certamente, uma pintura análoga à morte de Sardanápalo, em que violência e luxúria percorrem as mesmas veias; por isso mesmo, quando não é a violência que se vê, como nos homicídios às alturas dos 50 mil, é a luxúria que se verá, nas propagandas mais sugestivas e nas roupas cada vez mais curtas. Contudo, o que explica essa nudez cada vez mais generalizada, cada vez mais naturalizada e exaltada ao ponto de se repugnar a mínima manifestação de modéstia?
Hoje vos ensinarei anatomia, meus caros discípulos, pois dissequei nosso Zeitgeist, e nele encontrei a glândula pineal que há de justificar todas mazelas cometidas.
Sim, a descoberta é revolucionária. Até hoje não houve — nem haverá! — descoberta maior. Que Aristóteles tenha sido o parturiente da Lógica pode ser considerado trivial, pois o que ele fez foi apenas colocar em papel natural o que já era natural da razão. E isto, certamente, com muita dor e muito gemido. Em uma linguagem mais chã: Aristóteles apenas descreveu o funcionamento de nossos intestinos, nem por isso estes teriam deixado de funcionar caso não o tivesse feito. Minha descoberta, por outro lado, é reveladora, diria que até reveladora demais, impudicamente reveladora. O fenômeno que tenho a grandeza de descrever não nos impelirá a descer o fastidioso caminho até princípios lógicos pacatos e de que nada nos servem, mas, sim, haveremos de descer e descer até outro tipo de princípio, a que chamo: Princípio Adâmico.
Nossa jornada remonta a nossos primeiros pais, antes de terem pecado. Caminhando serenamente pelas planícies verdejantes e belíssimas do Paraíso, levantando nosso olhar às árvores gigantescas e exuberantes que nos cercam, encantando-nos com o lago cristalino a refletir o céu azul e miríades de borboletas e abelhas, o que um curioso inadvertido veria se encontrasse Adão e Eva?
Teólogo leitor, não vás longe com teus raciocínios imaculados. Sejamos francos. Nosso curioso é o entusiasta do princípio adâmico, é ele o pai da modernidade, sua reação há de ter sido a mais natural:
— Nus! Descobertos, desnudos, crus! Desguarnecidos, desfolhados, falo? falo! Direto, evidente.............................................................. pelados!
Tão logo os viu, concluiu, imediatamente, que não era pecado estar pelado, que vira isso do próprio Adão e da própria Eva; ora essa, escutara da boca de Adão a total idoneidade do ato e que, se a nudez possuía algum sentido, este só poderia ser divino. Despojou-se então de todas suas vestes e saiu correndo do Paraíso. Anunciou ao mundo sua descoberta, pregou-a com o mais ardente sentimento cristão. Pobre homem, saíra cedo da cena, perdera o último ato! Assim ensinou a todo o mundo o Evangelho, pregando a pobreza, mas a pobreza de vestimentas, e a caridade, mas a caridade de mostrar ao próximo o tanto quanto possível e impossível. Mal alvitre! Pobre homem!
No começo enfrentou resistências. Digo pouco: enfrentou o total desprezo, a prisão, os carrascos, os murros no lombo nu! Diziam que estava enlouquecendo, que começava a confundir-se com o próprio Apóstolo Paulo, tamanhos os sofrimentos que padeceu. Nomeava-se Apóstolo dos guarnecidos. Era grande crítico de João Batista, denunciando-lhe as vestes feitas de pêlos de camelo e o cinto de couro. Levava radicalmente a sério o conselho de Cristo a que não se levasse duas túnicas, e para que se evitasse o erro e por via das dúvidas, não levava nem uma túnica sequer. Assim cumpria o Evangelho em sua radicalidade, num despojamento jamais visto.
Mulheres e homens, desnudava-os todos com seu olhar. Estava, pois, prenhe de misticismo. Exposto ao sol, seu corpo tornou-se mais moreno, de sorte a ressaltar ainda mais as marcas do flagelo, que, afinal, eram sua glória. Por onde passava, nunca deixou de ser visto, e, quando era visto, nunca os olhos quiseram jamais terem enxergado, especialmente os das moças e crianças. Não tinha adeptos nem discípulos; os que tentavam imitá-lo logo não resistiam às queimaduras de sol nos lugares mais inusitados. O inverno e os insetos, dizia, eram os verdadeiros demônios.
Seu apostolado ia mal até que, num dia de verão intenso, à sombra de uma árvore e enquanto se coçava fervorosamente, lhe apareceu o demônio. Este, vendo por que modo moscas, pernilongos e diversos insetos o atazanavam, perguntou-lhe — “queres uma ajuda?” — e, tão logo estalou os dedos, os pequenos insetos entraram em combustão, rodopiando ao chão envoltos em chama, mortos.
— Pobre homem, como te chamas? — inquiriu, curiosamente, o demônio.
(Acaso vos disse que este nosso aventureiro não possuía nome? Não é que não o tinha; houve época, antes de sua descoberta, que trazia o nome que lhe dera sua mãe; porém, revelando-se-lhe o Princípio Adâmico, despojou-se do nome como das vestes. Houve um discípulo, um filósofo discípulo! que questionou tal doutrina. Dizia este que se despojar do nome é adentrar no anonimato, e, sendo anonimato, velava-se algo do público, tal como as roupas escondem o corpo à luz. A princípio vexado, nosso aventureiro não rebatia resposta, e, irado, avermelhava-se-lhe o rosto, os pés, as pernas, o peito, os braços, o tórax, as coxas — pois não estamos lidando com os casos da literatura clássica, em que, no máximo, apenas as faces e os tornozelos aparecem, mas estamos em campo aberto, demasiadamente aberto —; mas, passada essa fase de movimentos corpóreos admiráveis a qualquer conhecedor do corpo humano ou artista, nosso aventureiro retorquia: “Tu te enganas! Ter um nome é como colocar uma roupa, é ornar algo parecido com uma veste! Tal como as vestes ornam o homem, assim um nome orna a pessoa, e isto é repudiável!”. Esta querela durou incríveis quatro dias, entre insetos e muita coceira, até que seu inimigo morreu de hipotermia. E nunca mais tal doutrina profana e herética foi ensinada).
Nosso descobridor admirou-se de tal pergunta e, lembrando-se da querela com seu rival, já estava a ponto de avermelhar-se mais do que as picadas dos pernilongos haviam conseguido, quando, ao mirar a figura diabólica, levou um grande susto! Esta, diante dos próprios olhos, parecia metamorfosear-se conforme movimentava-se: ora homem, ora mulher, ora mulher, ora homem. Quando homem, usava uma grande capa negra e vestes de lã que cobriam todo seu corpo, mas com um pequeno detalhe: além do rosto e da cabeça expostos, os braços estavam descobertos a um palmo do cotovelo até as mãos. Quando mulher, também todo o corpo estava coberto com todo tipo de vestimentas, porém, se se notasse com especial atenção, o vestido, embora longo, ao movimento de um vento mais vigoroso deixava mostrar um breve lampejo do tornozelo.
— Vieste zombar de mim com esta tua heresia? — exclamou nosso aventureiro — pois saibas que não estou para querelas! Neste exato momento pequenos demônios vêm me tentar!
E, de fato, outros pequenos insetos voadores acercavam-se de seu corpo. O demônio, não vendo outros além de si, disse com simulado escárnio:
— Estanho, não vejo outros além de mim — e danou-se a rir estrondosamente.
— E tu acaso és um demônio? — perguntou nosso herói.
— Demônio, serpente, réprobo, danado, condenado, Legião, teu rei ou teu inimigo, tenho muitos nomes, mas o que importa é que sou eu o caminho da tua vitória, se pensas em levar adiante teu intento revolucionário — disse, olhando-o fixamente, como a desnudar seus pensamentos.
— E como exatamente hás de levar adiante minha filosofia, se tu escondes teu corpo, idiota!?
— É aí que tu te enganas. Se notares bem, vivemos em era de extremo pudor. A cultura, nosso Zeitgeist, ainda flerta com a virtude, com a modéstia. Se conheces filosofia, saberás que a virtude é um meio-termo entre dois extremos, mas, quando comparada singularmente a um extremo, é ela mesma outro extremo, e, pois, combate aquele como que para preservar-se. Os opostos, neste caso, não se atraem; antes, repelem-se veementemente.
— Zei…Zeit…Zeitzis…Zeitgisti… para o diabo com isso tudo! Tu falas demais. És demasiadamente teórico, demasiadamente vestido, demasiadamente fanfarrão!
— Ainda não terminei. Ora, sendo opostos, e porque os opostos repelem-se veementemente, temos pouca força para mover os ânimos. Hoje, as pessoas são modestas; estão na virtude, e, por isso, repelem a imodéstia; o povo, essa grande massa, está entre dois extremos mínimos, quase inexistentes: de um lado, há aquele pequeno grupo, escrupuloso quiçá, que cobre toda e qualquer parte do corpo; pergunto-me mesmo se o vento chegou a tocar-lhes o rosto; e, de outro, há não um grupo, mas um único indivíduo, tu, nu, sem vestes e sem pudor, único, primus sine paribus. Houve, porém, outro além de ti, aquele teu filósofo discípulo, que morreu de hipotermia.
— Para o inferno com ele!
— É lá mesmo que ele está. Mais fiel que tu, pois lá não se anda vestido, que as chamas queimam toda veste, e padece queimaduras que tu nunca serias capaz de suportar, e, no entanto, ele permanece nu, e assim permanecerá eternamente; despojou-se das roupas, da graça, do pudor, do bem; lá vivemos a união eterna com este eterno prefixo: “-des”: despidos, desgraçados, desafortunados, desesperados.
— Pois então é o Paraíso! Tu és o demo e tentas me enganar! Não quero saber de tuas teologias, de tuas alegadas experiências do outro lado, que podem ser elas todas falsas; quero saber deste teu plano, da vitória.
— Pois bem. Continuo minha explicação. O povo então está entre estes dois pequenos extremos. Hoje, por tuas técnicas, é quase impossível mover o menor dos ânimos. És extremo demais, e, por isso mesmo, se pouco és capaz de mover aqueles que estão na virtude, pois esta é teu extremo, menos ainda és capaz de mover aqueles que estão no vício, pois estes são o extremo do teu extremo.
— Ora, se tudo está perdido, o que nos resta?
— Bravo! Insinuar-te astutamente. Fazê-los beber nosso veneno de serpente como bebessem néctar de abelhas! Beberão, e pecarão, e pecarão em abundância, e então morrerão em abundância! Imitaremos a serpente do Paraíso, que fez Adão e Eva beberem seu veneno como se degustassem de fruta saborosa! Ahahah!
— Serpente, Adão e Eva? Que dizes? Estive lá e não vi serpente alguma! Lá vens tu com tuas mentiras, teus engodos! Queres é enganar-me!
— Oh, não! Digo-te a verdade e Deus é minha testemunha; podes crer, nem que creias com a fé dos condenados. Eis o modo por que te insinuarás entre as vestes das senhoras e o calção dos senhores: gozarás das mesmas propriedades de que eu gozo; serás invisível, serás capaz de incitar a imaginação, sussurrar ideias, de ludibriar o pobre intelecto humano. Porque és invisível, tais inspirações têm a chance de alojar-se na cabeça de teu hóspede como se ele mesmo as tivesse pensado. Isso é essencial, meu caro, pois mais ama-se aquilo que lhe é próprio. Parecendo-lhe que nascem de si mesmo, teu hóspede amará estas tentações, nutri-las-á como suas filhinhas queridas, e, crescidas, desejará exibi-las a Deus e ao mundo.
— E que hei de sussurrar a esses homens e mulheres? Ademais, se não poderão ver-me, tampouco poderão tomar-me como modelo e exemplo, e, logo, não havendo ninguém nu, a ninguém apreciarão a nudeza; desprezarão essas vozinhas sussurradas ao ouvido, julgarão que ouvem loucuras, e nunca se converterão ao verdadeiro Evangelho! Idiota!
— Achas mesmo que conseguiste admiração com este teu corpo… como hei de dizer… inapreciável?
— Como ousas! — Antes que levantasse os punhos contra seu adversário, o diabo apontou-lhe duas velhas e três homens que passavam por ali perto, todos eles com o olhar voltado ao nosso herói.
— Não vês o desgosto e o desprezo em suas faces? Tu és desprezado até pelas idosas! E, perscrutando-te bem, é evidente por que nunca terias sucesso com as madames… tuas chances seriam maiores estando vestido, a decepção, assim, estaria reservada somente para o final.
Nosso herói, vendo-se derrotado, despojou-se do orgulho diante de tamanhos argumentos e, cabisbaixo, perguntou ao diabo o que devia fazer. Este, triunfante, elogiou a humildade — fez-lhe um idílio, cujos pastores e camponeses eram humílimos e todos escutavam a voz do demo —, terminado o idílio, explicou minuciosamente seu plano.
— Nosso movimento terá de ser duplo e paciente, diabolicamente paciente, se é que me entendes. Primeiro, havemos de deixar os homens insatisfeitos. Sim, isso mesmo, devem ter na consciência que é insuficiente verem apenas o rosto e as mãos das mulheres. Devemos, e isto temos de almejar a todo custo, inspirar-lhes o sentimento de que possuem um direito sobre seus próprios olhos e sobre o corpo alheio, que concessão a todo e qualquer apetite seu é comprimento da Justiça. Sentindo-se insatisfeitos, feridos por sentirem-se injustiçados, ávidos e embebecidos pela fantasia dos corpos femininos, começarão a repudiar, ainda que timidamente, ainda que de soslaio, como o homem casado que comete adultério ao desejar a mulher do próximo em sua visão periférica, começarão a repudiar a mulher modesta e, conseqüentemente, ou, como dizem os filósofos, per accidens, odiarão a própria modéstia. Seus olhos então irão voltar-se às mulheres mais indecentes e vulgares, pois acharão nestas o seu quinhão.
— E como exatamente isso há de nos ajudar?
— Pensarão e viverão por essas mulheres, e, pouco a pouco, granjearão outros homens. Primeiro, haverá o burburinho em conversas com seus companheiros, irão expor-lhes as imagens e fantasias lúbricas que trazem em suas mentes; isso não só é útil para reforçarem a própria imaginação da indecência, que terá nesta faculdade do homem sua morada, mas também para instigar os apetites mais afetados pelo pecado original.
— Pecado original?
— Silêncio, por favor, silêncio! — disse apressadamente o diabo, afobado e temeroso — basta saberes que é um dos nossos aliados, um dos nossos grandes aliados!
— Ora, para que tanta grosseria? Está tudo bem; contento-me em saber que é nosso aliado. Continue. E onde está o tal do segundo movimento deste plano? — Nosso herói o ouvia com especial atenção, distraindo-se aqui e acolá apenas para lidar com alguns insetos que lhe perturbavam as coxas.
— Aos poucos essa história chegará aos homens casados e estes, vendo que outros homens parecem mais felizes e másculos por lidarem com diversas mulheres indecentes, começarão a sentir cócegas de inveja. Julgarão que suas mulheres são normais, monotonamente normais, aproximar-se-ão das conversas daqueles e logo ficarão deslumbrados com esse admirável mundo novo. Seu adultério se dará da forma mais casta possível: olhando a estrada, desejarão essas figuras imodestas que habitarão no canto dos olhos. — E o demo indicava com o dedo os cantos dos olhos, tão propícios ao pecado — As mulheres, com seu espírito perspicaz e hábil para identificar qualquer falta de atenção por parte dos homens, começarão a notar essas mudanças. Inicialmente, repudiarão essas atitudes, chamar-lhes-ão de indecentes e moleques. Depois cederão; é a competição, não aceitarão o último lugar, adotarão a vulgaridade, cederão facilmente; posteriormente podemos dar a isto um outro nome que soe mais natural, como darwinismo. Sim, agradará aos intelectuais, aos estudiosos e aos sábios, pois, vendo eles seu querido darwinismo no despir da sociedade, irão despir-se igualmente, como ato de grande progresso científico; e mais, entusiasmados com esta descoberta, pregarão a extrema necessidade (ou, antes, a “necessidade científica”) de inserir esses assuntos nas escolas. Neste ponto, exerceremos uma suma influência sobre as crianças. Até então, desejarão vestirem-se como seus pais, mas estes ainda os impedirão, ainda não estarão prontos à ideia de vestimentas curtas às crianças. É o fado, a cruz, a desgraça da lei natural! — ao proferir essas últimas palavras, o demônio tremeu secretamente — Não tenhas dúvidas de que contra ela teremos de lutar durante toda a eternidade! Pois bem, essas crianças crescerão e terão normalizado a indecência, seus pais, que terão vergonha de não dar a seus filhinhos as roupas da moda (e esta será a quase nudez), taparão a consciência para aquela maldita lei, e seus filhinhos, educados assim, prenhes de ideias sobre a preeminência da nudez sobre a decência medieval, ou, antes, sobre o brega e a velhacaria associados à modéstia, em pouco tempo construirão uma sociedade em que a nudez é a norma, e, posteriormente, norma obrigatória. A bota do Estado será antes um pé desnudo, assim se sentirá mais intimamente o frescor do sangue nos dedos nus.
— Dar… darvi… darvenismo…
— Não te preocupes com nomes, por enquanto. Isto é para daqui a, vejamos, sim, daqui a alguns séculos, uns dezenove séculos.
— Dezenove séculos! — exclamou nosso herói com um ar de surpresa, incredulidade e um quê de ofendido — e eu acaso viverei até lá, idiota?!
— Não te preocupes, tu serás imortal como eu; tua vida será esta, pregarás a sublime doutrina, o verdadeiro Evangelho. Daremos a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus; se Deus ama a modéstia, sacrifiquemos nossas roupas em seus altares, para agradá-lo; e a César entreguemos tudo o que somos, natureza corporal, nua e crua.
— Confesso… — um leve e agudo gritinho fugiu ao demo, porquanto achasse que ouviria o confiteor — confesso que falaste muito e pouco me ficou. Poderias resumir todo este plano, por favor?
— Começa-se pelas mangas, pelas pontas, pelos tornozelos, e então vai-se subindo, e subindo, e encurtando, até que as vestimentas sejam menores que as folhas de hibisco que cobriram o corpo de Adão e Eva. O próximo passo já se imagina. — disse astutamente o demônio.
— Tolo! — riu-se nosso aventureiro — Adão, Eva e hibiscos! Tu és um fanfarrão! Andam, cantam, louvam, fazem de tudo nus! Vás tu, tua heresia e teus hibiscos para longe daqui!
— Como quiseres; se mudares de ideia, batas os calcanhares três vezes.
Falando isso, sumiu diante dos olhos de nosso herói. Sua reação inicial foi um misto de enfatuação e curiosidade, esta que se manifestava nas débeis tentativas de remontar essa conversa quase mítica, de relembrar os argumentos e os planos do demo, mas que seu pobre intelecto humano não compreendia. Mais atordoavam-no os nomes difíceis que lhe embolavam a sintaxe: zeitgeist, darwinismo — palavras que rodopiavam seu espírito como o torvelinho às folhas.
Julgou a situação como uma experiência estranha, quase como uma alucinação. Sem compreender, ou ainda a digerir essa experiência incomum, prosseguiu com o seu ordinário, voltou à pregação usual — ortodoxa, como dizia — e encarava de frente aquelas ovelhas perdidas; para todos mostrava as marcas do flagelo, recontava seus sofrimentos, anunciava a glória e a divindade do despojamento de si, especialmente das vestes, de todas vestes. As conversões foram nulas. Era cada vez mais repudiado, ao ponto de criarem leis contra o impudico (sim, no singular, pois as leis atacam-no individualmente). Não havia quem desejasse ser seu discípulo; notou que as pessoas estavam tornando-se cada vez mais modestas, como que para parecerem totalmente diferentes deste nosso herói; não havia boca que não lhe desejasse o mal, que não exigisse o peso da Justiça sobre tamanho sem-vergonha; tornou-se objeto de repúdio e de piadas, e as piadas feriam-no intimamente, porque continham em si aquela mistura ácida do real e do jocoso. Os maus-tratos no lombo nu aumentaram significativamente após a civilização pesar sobre ele o martelo da lei. Nosso herói já não agüentava o lombo cada vez mais maltratado, mais ferido e por isso mesmo cheio de feridas, cheio de moscas.
Cansou-se, e, num belo dia de verão intenso, quando os insetos tentavam-no mais que a São Padre Pio, nosso herói tomou uma resolução que mudou o curso de todo o mundo.
— Dane-se! — E bateu os calcanhares.
Imediatamente o diabo lhe apareceu dizendo: “tu és meu, eu hoje te despi!”. Nosso herói assustou-se terrivelmente quando o viu; o diabo nem se metamorfoseava nem portava aquelas vestes, estava tão nu quanto é possível, e seu corpo, longe de imitar a beleza dos deuses mitológicos, mostrava-se como verdadeiramente é: horrivelmente deformado, cheirando a podridão e enxofre; havia nele feridas abertas das quais um líquido negro escorria tal como os córregos abertos de grandes cidades; quando falava, pedaços de suas línguas — pois eram várias — caíam ao chão e arrastavam-se como vermes em direção a seus pés, para então, alguns, penetrarem sua carne, outros, alojarem-se nas feridas, e ainda outros pedaços retornarem à boca. Tudo isso era o inferno e inspirava a mais temível repugnância. Assustado, nosso herói tentou bater os calcanhares novamente, mas nada lhe parecia retirá-lo daquele pesadelo. O diabo então começou:
— Não te assustes. Não é verdade que os corpos bastam para fazer-se conhecer a alguém? Pois então, sou eu, em minha versão mais bem-humorada! Tão logo senti teus nus calcanhares baterem, quanta alegria me invadiu! Não pude resistir e, para que aquelas vestes todas não fossem um empecilho para tamanha solenidade, despojei-me delas instantaneamente! ahahah! — À gargalhada, mil pedaços de suas línguas foram jogados ao ar e, ao espatifarem no chão, arrastando-se, como vermes, alguns mais machucados que outros, retornavam ao seu dono.
— Diabo!
— Le diable c’est moi!
— Retira-te daqui, cabrito preto! — E iria persignar-se, não fosse outra gargalhada diabólica que lhe enregelou os braços.
— Cabrito preto? Ahahahah! Como sois tolos, tu e toda a civilização humana! Deixa de frangalhos, larga esta tua persignação, pois que agora não há jeito, nem ela irá desfazer nosso pacto, nem eu irei te largar tão facilmente assim. Darei o que tu sempre quiseste; sim, poder, isto é o que é; poder para despir, poder para influenciar, poder para manipular, lograr, malograr, corromper, e despir toda a humanidade! Vê! Já és invisível aos olhos dos homens e das mulheres!
Um casal de camponeses passou ao lado de ambos sem sequer os notar. Nosso herói fez uns sinais com as mãos, agitou-se à frente deles e gritou, mas nada de ser visto, nem ouvido, nem tocado; em seu olhar havia um misto de espanto e tristeza.
— Incrível que isto seja, não me ouvem! Agora não me veem, porém tampouco me escutam! Como hei de transmitir-lhes a verdadeira doutrina? Maldição dos infernos!
— Tolo. Que te disse eu, hein? Corromperás o gênero humano através do estardalhaço? Acaso foi isto que te prometi, seu maganão? Pelo estardalhaço e pela bulha só se consegue a destruição, como é necessária também, como é evidente nas guerras dos homens, mas isto é outra coisa.
— Ora, não me lembro! não me lembro! Ficaram-me de teus planos apenas aqueles nomes horríveis e em todo sentido infernais!
— Experimenta sussurrar-lhes ao ouvido.
Ao passar um homem que aparentava ter uns 35 anos, vestido a trabalho, possivelmente de carpinteiro, nosso herói aproximou-se dele e, acompanhando seus passos, sussurrou ao seu ouvido:
— Rasga as vestimentas. Mostra ao mundo como vieste e como partirás. Fica nu.
A princípio sua testa enrugou, os olhos sondaram desconfiados ao redor de si, como se quisesse descobrir no exterior a causa daqueles pensamentos tão estranhos e exóticos. Ficar nu? Por faria isso? Estava ficando louco? Que pensariam dele? Um simples pensamento tolo, é o que é. E seguiu seu caminho, ignorando completamente aquelas sugestões, que logo cessaram.
— Diabos! — Murmurou nosso herói.
Voltando à sua aparência humana, com um sorriso no rosto o demo lhe disse:
— Observa, tolinho.
Ao passar um casal de namorados, o diabo acercou-se do ouvido do homem e sussurou-lhe as seguintes palavras:
— Como és beato ao possuir tão encantadora dama! Que olhos reluzentes! Que face pálida com seus lábios de rosa! Um beijo apenas e estarias no Céu, um beijo apenas e ela seria tua, somente tua. Não te apetecem esses olhos e esses lábios? Sim… sim… são belos, são doces, doces como mel, o teu mel, o teu paraíso terrestre. Como conquistá-la? Como fazê-la apetecer-me tanto quanto eu profundamente a desejo? Sim… possuo braços fortes, o trabalho manual fez-me robusto, fez-me viril, fez-me homem; o corpo moreno… sim… mostrar os braços seria muito, isso não; mostrarei, contudo, a robustez de meus antebraços. Sim… isso… o Sol nos castiga, será minha deixa; ela me verá, verá a robustez, a rigidez, a virilidade há de atraí-la, instigá-la, conquistá-la, seduzi-la.
Imediatamente, após essas palavras que se alojavam como pensamentos originais do homem, este começou a retrair as vestimentas que cobriam seu antebraço, e fazia-o com naturalidade, como se era isto mesmo que faria apesar do evidente convencimento do demo. Lá estava, um casal, menos vestimentas, e olhos oblíquos e dissimulados que, fingindo apetecer as flores e as pedras da estrada, apeteciam antes a virilidade daqueles membros.
— Por Deus! — Exclamou nosso aventureiro.
— Não, não; contra. — Disse, didática e peremptoriamente, o diabo.
— Como fizeste isso?
— Não te disse eu que tivesses paciência, uma diabólica paciência? Roma não foi feita em um dia, o próprio Senhor da criação levou sete; nós, que estamos do lado contrário, que somos uma espécie de anti-criação, levaremos também sete: sete séculos, para arar o terreno, mais sete séculos, para lançar nele os fundamentos, outros três para lançarmos as sementes, e, finalmente, mais três para colhermos nossos frutos, porque, aliás, o trabalhador merece o seu salário.
— Provaste teu ponto. Que me recomendas fazer? Dos teus planos lembro-me apenas dos hibiscos.
— Paciência, diabólica paciência, isto é o que é. Não vás com tanta sede ao pote. Sussurra coisas pequenas, não cortes o galho de uma vez, mas vá cortando folha a folha. Instiga a vaidade do homem, como me viste fazê-lo, assim penetrarás em seus corações com mais facilidade. Com o tempo notarás que o gênero humano é a mesma miséria; aos coléricos, instiga o excesso de ira; aos astutos, o sentimento de orgulho e de superioridade; aos amantes, a gula e a luxúria. Verás que muitos amarão tuas ideias, ainda mais porque pensarão que são suas próprias, e levarão a cabo teorias e grandes sistemas de pensamento que confirmação e reconfirmarão nossos intentos. Ouvirás alguns discursarem sobre pecado original, pecados capitais, concupiscência, redenção e cruz; pois bem, ouve atento a essas pregações e trama o contrário, e, se puderes, tenta estes sábios a que mesclem em suas teologias e filosofias o doce mel de nosso Evangelho: qualquer desvio é vitória, lembra-te disto. O resto aprenderás com o tempo e com a experiência.
— Às folhas de hibisco!
Nosso aventureiro ouviu atentamente os conselhos paternais do demo. Já não o confundiam os nomes esquisitos de outrora, nem o irritavam quaisquer divergências que porventura lhe transpassassem a consciência, pois, dessa vez, a explicação do demo fora cristalina e a força de sua doutrina comprovada na prática e na observação. Saiu então pelo mundo afora, a sussurrar a imoralidade, a transtornar os pobres afetos humanos, já pela vaidade, já pelo orgulho. Foi aos poucos desvelando os calcanhares, os ombros, e com eles o pudor. Que grandes avanços não conseguiu quando conquistou para si os poetas! Os trabalhadores manuais, os pensadores, os cientistas e teólogos, os filósofos, então!
Aos poetas solitários, deitados no gramado a olhar as nuvens do céu ou sentados à beira do lago, a suspirar a amante perdida, a esses preparou artimanhas especiais — estratégias ouvidas diretamente do demo: tão logo se entregavam ao ócio, nosso Apóstolo dos Guarnecidos inspirava neles visões da (ou das, quando havia mais de uma, e estes eram presas fáceis) amada; fazia-os sentir o cheiro do perfume, quase ver o trejeito delicado e divino de suas amantes. Depois disto, quando estava seguro de que enlaçara a imaginação e seus afetos, aos que miravam o céu fazia-os enxergar a amada nas nuvens, mas enxergá-la despida, porque é da natureza das nuvens revelar as inclinações ocultas dos homens, e aos que miravam o rio fazia-os ouvir no murmurinho das águas os gritinhos de cumplicidade das amantes. E para que não levantasse suspeita, chamou essas miragens de musas. Daí a origem dessas figuras, tão aclamadas por Homero e por Hesíodo, que também foram grandes amantes, mas que não puderam escapar das primícias do demo; cantariam então, eles e outros mais, a lua e as nuvens, os riachos e as florestas, sempre entremeados de ninfas, divindades nuas e seminuas, e, pois, fariam do impudor tradição.
Que dizer dos artesãos? Estes sofreram bastante quando a imodéstia começou a fustigar-lhes a mente! Quando descobertos, que vergonha! Não possuíam a nobre arte do canto nem da poesia; possuíam, contudo, o domínio da técnica, da manufatura, o que não passou despercebido ao nosso impudico aventureiro, que logo se aproveitou disto para, aos poucos, tentá-los a fazerem simulacros de madeira ou de barro que imitassem suas amadas e as amadas alheias, para o deleite do pervertido e do avarento, que via nisto o crescimento de suas rendas.
Sua arte de convencimento foi aperfeiçoando-se e, como tivesse encontros quase diários com o demo, logo lhe absorveu a retórica da serpente, a mais fina arte do canto e do engano, arte esta que certamente teria vencido ao próprio Ulisses, que — não se engane — não teria pedido que sua tripulação o desamarrasse, mas, pelo contrário, clamaria para que ela se amarrasse junto a ele, a fim de que também vislumbrassem as musas que só habitavam na imaginação dos homens amarrados.
Passo de grandiosíssima importância foi acercar-se dos filósofos e dos pensadores. Platão estava correto! Havia, sim, uma Beleza imutável, Belíssima, Perfeita, que nós, pobres homens, estávamos longe de contemplá-la totalmente neste mundo e, portanto, vagaríamos com ideias sempre imperfeitas aqui e acolá. Desse modo, para que nossas ideias refletissem melhor essa Beleza eterna, deveríamos admirar suas pequenas manifestações corporais; porém, isto se daria da forma mais sublime e com mais perfectibilidade se a beleza natural dos corpos, sempre cobertos por aquela beleza artificial das vestimentas, estivesse sempre à vista! A República tomou um sentido outro que hoje desconfiaríamos, um sentido que escapou a Platão. Com efeito, essas conclusões sobre a nudez têm implicações sobre a forma de governo, e a pista está na etimologia do termo: respublica — res publica — isto é, coisa pública. Sim! As coisas hão de ser completamente públicas: as contas do governo, públicas; as sentenças governamentais, públicas; a corrupção — quando há — pública; as votações, públicas; os corpos e sua beleza, públicos. O Estado protegera esses infantes quando ainda eram indefesos; hoje, independentes que sejam, o Estado, e com ele todo o povo que o assistiu, tem o direito de contemplar a beleza desses corpos que nunca teriam sobrevivido não fosse a benevolência da pátria.
Ó Aristóteles! Teu conceito de substância e acidente foi extensamente abusado por nosso herói! Sim, a essência está nas coisas; é a substância individual que encarna no concreto o conceito universal. A mente opera de modo a abstrair os acidentes, que nada mais fazem que atrasar nossa inteligência. Pois bem, para que nossa inteligência não encontre obstáculos, retirai, ó homens, vossas roupas! São acidentes, mero acidentes! Vós vereis que subsistirão apesar disso; tornar-vos-eis mais inteligentes, é garantia! O habitus, como uma das dez categorias, é uma farsa!
Saibais que Diógenes fora um dos seus maiores discípulos. A famosa cena na Academia, onde Diógenes zombou do “bípede sem penas” de Platão apresentando-lhe uma galinha despenada, guardava uma profundidade filosófica ímpar. Diógenes não estava frivolamente zombando de Platão. Esta é a interpretação falsa e superficial, pouco profunda. Em verdade, o que Diógenes estava fazendo era conduzir Platão à realidade. Sim, bastava um passo a mais, a troca de uma palavrinha apenas, para que a verdade profunda se revelasse. Porém, o pudor e a modéstia, o constrangimento, impediram Platão de compreender a verdade: o homem, sim, era um bípede, mas mais do que um bípede sem penas, como o seria uma galinha despenada, e sim um bípede sem roupas!
Sua vitória tornou-se ainda maior, ainda mais gloriosa e espalhou-se como praga quando sussurrou ao ouvido de quatro pensadores modernos.
O primeiro deles foi Charles Darwin. Isto era forçoso admitir: o homem confeccionou vestes para si, como o provam os registros arqueológicos, pensando que este era o meio de vencer o frio ou as intempéries comuns de um ambiente totalmente hostil. Porém, isto não é o natural! É uma imposição, alguma mentira disseminada por um xamã fajuto, uma completa falsificação da verdadeira noção de seleção natural. O corpo do homem, que deveria fortalecer-se ao sobrepujar o frio e o calor, a secura e a humidade, vê-se agora frágil e enfraquecido pelas más escolhas de nossos ancestrais e suas vestes de mamute! A civilização, no entanto, evoluiu e é preciso uma verdadeira conversão: hoje, civilizados que somos, dominadores da natureza, somos capazes de construir prédios, que nos abrigam, carros, que nos transportam, farmácias e lanchonetes, que nos curam e alimentam. O frio e o calor já não têm vez, e se por vezes fazem-se notar, como que incomodados pela completa superioridade do homem, este, para mostrar-se realmente digno, para, enfim, ser verdadeiro homem, como a natureza intentara, este deve submeter sua pele à prova e daí evoluir, deve, portanto, desfazer-se de suas vestes, que foram um impedimento em sua evolução — sendo-nos lícito falarmos até de uma involução — e viver, corajosa e naturalmente, nu!
Marx foi o segundo a engolir o veneno. Enquanto esbanjava em um banquete com outros líderes comunistas — banquete este à custa do salário de sua mulher — nosso aventureiro acercou-se de suas orelhas, que balançavam de prazer ao destrinchar uma sobrecoxa de frango, e sussurrou esse curto silogismo:
— Os pobres confeccionam roupas, as roupas são feitas para as fábricas, as fábricas lucram com as roupas, o lucro com as roupas é produto do capitalismo, o capitalismo deve ser extinguido; portanto, as roupas devem ser extintas!
Que brilho não penetrou naquela cabeça infatigada pelo trabalho alheio! Arremessou a sobrecoxa pela sala e saltou sobre a mesa. A cada premissa daquele raciocínio, que agora expressava com enlevo, como a discursar para todos membros do partido, retirava uma peça de roupa, até que, chegada à conclusão, estava nu! Seus confrades acompanharam aquela cena assustadora, mas, tão logo suas cabeças compreenderam o silogismo, começaram a despir-se também e acrescentavam à fórmula original outras derivativas — “fique a burguesia com suas roupas!”, “o excesso de roupa deve ser racionado absolutamente!”, “não haverá diferença de riquezas se todos estiverem nus!”, e outras mais, apaixonadamente.
Quanto a Nietzsche, este foi o terceiro. Era necessário atingir também a psicologia, para além da filosofia e da sociologia, era necessário encontrar na psique humana as razões para ficar nu. Transformou então aquela vontade de poder em vontade de poder ficar nu! A genealogia da moral era, na verdade, uma genealogia da nudez e remontava a Adão e Eva. O verdadeiro Übermensch era o homem que não só se havia despido de toda moral, de toda concepção de bem e de mal, mas, principalmente, o homem que se havia despido de suas vestes, que tinha a coragem de ficar nu em um mundo cheio de ídolos! Sim, se fôsseis deuses, poderíeis então envergonhar-vos das vossas roupas! Assim falou Zaratustra.
Por fim, deitado em seu divã, estava lá, em posição ereta, olhar de Rasputin, o Mestre de Viena, Sigmund Freud. Sussurrou em seu ouvido apenas uma frase, que estava em conformidade com toda a sua teoria psicanalítica:
— A redução da tensão se dá pela adoção generalizada da nudez.
Que lampejo não reluziu naqueles olhos caídos e que chacoalhar de bigodes não houve! Daí nasceu sua teoria do Totem e Tabu! Aqui a psicologia novamente veio a seu serviço, pois era grande a insistência na necessidade de atender generosamente as requisições infinitas de um negocinho chamado Id, que era como que um poço de luxúria e desvario, mas sempre verdadeiro e malcompreendido, contra as exigências tirânicas de sua contraparte, o Superego, que era o preceptor das vestimentas e, portanto, das mentiras e da velhacaria. “Tal teoria haverá de convencer o mundo!”, dizia, sorrindo, o diabo.
Tanto esforço, tanta devoção e empenho não haveriam de ser esquecidos, de sorte que, a prêmio de reconhecimento, o diabo chamou-o para um encontro no alto de um monte.
— Vês o mundo que lhe cerca? — perguntou, faustuoso, o demo.
— Expõem o possível e o impossível, estampam nas capas de revista e nas propagandas o corpo e, se pudessem, as próprias entranhas. — Afirmou sem hesitação o nosso herói.
— Pois bem, da miséria humana goza. Vencemos.
— Danem-se os hibiscos!
E era tal qual dissera: corpos expostos na TV, nos jornais, nas capas de revista, corpos nus em centros acadêmicos, em pesquisas científicas, corpos cujo único adereço eram o impudor e a sem-vergonhice.
Não tardou para que o novo costume tivesse seus efeitos. Nunca houve povos tão bestiais e ininteligentes — ou simplesmente burros. O intelecto humano era arrastado violentamente pelas paixões. Chamavam a isso de libido saudável. A vontade escrava da concupiscência, e a concupiscência, vendo seu poderio estender-se inconseqüentemente, ansiava escravizar. Os castos — e leia-se “castos” como aqueles que mantinham uma ou duas parceiras ao acaso — eram zombados, pois quantidade era qualidade e qualidade, libido. Esse frenesi, esse desejo escravo de si mesmo, deu copiosos frutos: a violência aumentou, o outro, objeto da concupiscência, deveria servi-la e, pois, ser escravizado. O que dizer da esfera cultural? Redução e relativização. Ninguém mais era capaz de ler um livro sequer; os clássicos e os livros de cem páginas ou mais tornaram-se enfadonhos e roubavam a energia da libido. Resumiram-se então os livros, substituíram-nos por comentadores ideológicos que, através de um esquema simples, eram simplesmente explicados. Os detalhes exigem libido, fale-se do essencial e basta. Porém, uma vez que o intelecto humana estava decaindo vertiginosamente, nem sequer as explicações superficiais do essencial serviam. Essas explicações continuavam a sugar a preciosa libido. De um processo de redução, então, pulou-se para um de relativização: a verdade era relativa, a “realidade” uma projeção, os autores, conflitantes entre si, dizem muitas coisas e por isso mesmo não podemos ter certezas; faça-se um trabalho acadêmico e seu mérito não está numa fantasmagórica realidade, mas na quantidade de autores citados ou na suposta qualidade dos mesmos, mas nunca na “realidade”, pois esta se prostitui por conveniência — e se por vezes ela parece inconveniente, é porque o cliente errou de estabelecimento.
O trabalho do demo e dele o nosso herói parecia completo. Da perspectiva deles, irreversível como a morte. Contudo, esqueceram que a morte não é irreversível, seu antídoto é a ressureição. E a ressureição para aqueles tempos veio em forma de santidade. Como nunca houvera antes tamanha imodéstia, assim, agora, nunca houvera tamanha pureza. Pessoas de heróico pudor e de amor intenso à pureza nasceram como a rosa delicada nasce da semente corrompida. Santos castos e castíssimos brotavam em abundância, salgavam a terra e iluminavam a escuridão com sua excelência e santidade. Aos montes as conversões foram acontecendo, abundantemente. Pois, como a gravidade puxa para baixo todo e qualquer corpo físico pela própria natureza de ser, assim os santos, pela força da graça, puxam para o alto a moral e os miseráveis de seu tempo. Há neles uma força de coerção existencial.
Os esforços do demo e do nosso herói foram imensos a fim de coibir essa elevação moral da sociedade. Baldados, no entanto, e infrutíferos — ao menos naquele tempo.
— Para o diabo com esses santos! — vociferou nosso herói.
— Para mim não! Quero-os longe, bem longe de mim e do Inferno! — replicou, amedrontado, o demo.
— Pois que faremos agora? Vê! Somos a minoria! A minoria! Voltamos a ser o extremo do extremo; e, talvez, o extremo do extremo do extremo!
— Cala. Que ainda não é a Parusia. Os homens ainda podem ser corrompidos; os úteros das mulheres ainda geram sementes manchadas. Toda e qualquer semente nascida com mancha ainda há de ser corrompida. O tempo é o corruptor por excelência, é nosso aliado. As coisas de Deus e para Deus vivem na e da eternidade, todas elas têm um de seus pés nas margens do eterno, banham seus pés à beira-mar; o outro pé está aqui na Terra, por isso ele ainda pode atolar-se na lama. Por isso o tempo é nosso aliado. A memória dos homens falhará. Seus corpos, metade do que são, estão sob o tempo, e o tempo corrompe; portanto, corromper-se-ão, raça frívola e odiosa.
E nessa fé, proclamada dogma pelo demo, firmaram-se e não desistiram, sussurrando, dando torneios da serpente à língua que se tornara pútrida aos homens. Seu trabalho continuou e, como em toda labuta, alcançaram vitórias e derrotas — vitórias e derrotas estas que se estendem até hoje, conquanto o campo de batalha de nosso tempo pareça, mais uma vez, caminhar para o sumo de suas vitórias, aos hibiscos de Adão e de Eva.
O que se vê hoje, irmãos, nas ruas e nas TVs, nos cartazes e nos celulares, nada mais é do que os resquícios do princípio adâmico, luta incansável que só terá fim no Fim dos Tempos, quando o próprio tempo despir-se de sua vaidade.
Comentários