2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: JÚLIO BARRADAS — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros
- 15 de jul.
- 16 min de leitura

SOBRE O AUTOR
Júlio Barradas: compositor, letrista e escritor santista. Redator jornalístico, autor de contos premiados e do romance "Chão Submerso" (2023).
O CONTO SEMIFINALISTA
Solidão e meia
Já não chovia há meses, o tempo estava seco e empoeirado. Era final de inverno. O alvoroço dos cachorros e a algazarra da molecada na rua de terra acusavam a chegada de um estranho no vilarejo. Vinha longe e, à primeira vista, todos acharam ser um caminhão, mas logo ouviram um trote mordido de bicho seguido de rangidos de madeira e hastes enferrujadas. Quando o barulho se aproximou, enxergaram uma estranha carroça sendo puxada por um camelo de cascos azuis. Parou ali mesmo, no meio de tudo, agarrado à espessa nuvem parda que demorou a baixar. O que desceu da boleia depois, envolto à poeira vermelha, parecia gente.
Um engasgo de vento desfez a visão turva, revelando a imagem de um homem pequeno e emborcado, de olhos macilentos de lagarto. Após se apresentar inclinando a aba do chapéu, desceu uns baús enormes do veículo, com a ajuda da meninada que recebia gomas de caramelo em troca, e, em voz alta, saiu anunciando um cardápio de xaropes milagrosos, amuletos místicos, relíquias impossíveis e mais um tanto de trecos inúteis. Num piscar de olhos, foi cercado por um cordão de curiosos, que admiravam o homem incomum plantado diante deles, com todas aquelas distrações, como se fosse o maior acontecimento da Terra. Lá pelas tantas, o estrangeiro passeou a vista naqueles rostos estatelados atrás de alguém com o olho maior do que o coração, a fim de vender sua maior atração: “O que dizer dos sonhos, senhoras e senhores? Quem aqui nunca se perdeu nos seus encantos? Posso garantir a todos que, nas andanças pelo mundo, não encontrei um que não possa se realizar. Basta desejar de coração, senhoras e senhores! E deixar esse humilde viajante ajudá-los...”.
Mal terminou a frase e meu irmão já havia se jogado em frente ao sujeito. Chamava-se Virgílio. “Ora, ora, se não temos aqui o primeiro sonhador”, disse o estrangeiro escancarando os dentes dourados. As palavras saíam da sua boca sem inspirar a menor confiança, mas vibravam sedutoras na imaginação daquela gente, e a sedução é o anzol dos bons negócios. Logo outros se acotovelavam tentando se abeirar, iniciando um breve tumulto. “Por favor, se acalmem, todos serão atendidos a seu tempo, e ao preço justo”. Em seguida, com o braço apoiado nos ombros do meu irmão, o sujeito o levou para dentro da carroça, coberta por uma lona, onde ficaram um terço de hora confinados. Virgílio saiu de lá com os nervos virados do avesso, como eu nunca tinha visto. Seu semblante esbanjava um futuro próspero e sobejo. Ele sempre foi ganancioso. Nunca escondeu o desejo de um dia possuir mais terras que o próprio patrão. Logo desconfiei de que a conversa ali tivesse arrastado asas por essas estâncias.
Antes de voltarmos à fazenda onde trabalhávamos, o viajante me olhou de cima a baixo, sobre a cadeira de rodas onde eu estava sentado, reparando a ausência das minhas pernas, depois, a sanfona pendurada na alça do encosto. Primeiro perguntou se eu precisava de alguma coisa, certo de que ouviria um sim como resposta. Sorri meio estúpido negando com a cabeça. Diferente de Virgílio, além de acanhado, nasci sem grandes desejos. Então girei as rodas da cadeira para o lado da fazenda na intenção de partir, quando o sujeito dos sonhos me veio novamente. Desta vez, quis saber o preço da sanfona. “Essa cangalha já faz parte do corpo dele, moço. Se quiser levar, tem que levar o rapaz junto...”, zombou Virgílio, respondendo por mim. O velho sorriu roçando a língua nos lábios, anotou algo num caderninho, e chamou o próximo da fila. Despediu-se, prometendo nos visitar um dia. Não entendi por que faria isso. Enfim, o sol descia rápido no horizonte, então saímos de lá antes de pegarmos o caminho para casa na escuridão.
Virgílio vinha atrás de mim na estrada assoviando algo incompreensível, provavelmente sonhando as bobagens prometidas pelo cigano vigarista. Era meu irmão mais velho. Quase nunca conversava comigo ou pedia opiniões, gostava apenas de dar ordens as quais aprendi a obedecer em silêncio. Talvez pelo fato de o destino ter nos empurrado tão cedo um para o outro. Quando nasci pela metade, dizia Virgílio, minhas pernas sobraram perdidas dentro da barriga da minha mãe, que morreu horas após o parto. “Suas pernas ainda estão lá, Similião, tropeçando dentro dela”. Passei a vida remoendo esse calvário, odiando minhas pernas que nunca nasceram. Tentei me convencer de que a vida era melhor sem elas, como forma de puni-las por terem levado minha mãe daquele jeito. Repetia isso para mim todos os dias, feito reza, com tanta convicção que jamais ousei desacreditar.
Pouco tempo depois, nosso pai também nos deixou. Não aguentou o peso de criar dois filhos sozinho ou, como costumava dizer, um filho e meio. A única herança que nos deixou foi a casinha na fazenda Caititu, um presente do coronel por ter sido um empregado fiel. Com sua partida, Virgílio assumiu à contragosto o peso de garantir nosso sustento, enterrando seu destino nas lavouras de milho. Quanto a mim, devido a minha condição, acabei ficando por conta dos serviços domésticos que começava antes do sol nascer: tirava leite, recolhia ovo, regava horta, cortava mato, esfregava chão, espanava móvel, lavava louça, roupa, fazia comida e o que mais Virgílio mandasse fazer. Mesmo terminando o dia com o corpo em farrapos, abraçava os mandos do meu irmão como um gesto de generosidade. Graças a ele tínhamos comida na mesa.
Na verdade, aquele sacrifício de Virgílio às vezes fazia coalhar os ossos do meu corpo, toda vez que reconhecia em seus olhos a mesma escuridão que um dia consumiu o espírito do meu pai, pouco antes de ele partir. Confesso, talvez fosse o assombro de acordar sem ter alguém que me valesse. Todos os dias, antes de dormir, Virgílio costumava me pedir que tocasse sanfona até pegar no sono. A ausência das pernas, nessa hora, dava lugar a uma força sobrenatural nos braços que encontravam disposição para puxar o fole e apertar as teclas madrugada adentro. No fundo, as imposições de Virgílio me davam a sensação de existir menos incompleto, de ser menos inútil. Quando enfim ele pegava no sono, eu usava o restinho da noite para velar minhas penas, ouvindo o sopro da sanfona, sonhando os chãos que ainda haveria de correr, não com os pés, mas com os braços agarrados naquele instrumento que já era meu corpo.
O fim de tarde adormecia na poeira alaranjada e, antes de chegarmos à fazenda, Virgílio falou da tal conversa com o estranho. Parecia mais pensar em voz alta do que falar comigo. “Quer apostar? Daqui uns anos terei mais terras do que a vista do coronel pode alcançar. Daí quero ver o velho dizer que nasci feito galinha, pra viver no meio do milho e das minhocas”. Reclamava do trabalho de preparar a terra para o plantio do milho. O patrão mandava arar e espalhar minhocas nos sulcos do chão, antes de enfileirar as sementes. Depois, na época da colheita, Virgílio saía torcendo e puxando uma a uma as espigas do pé. Por isso, o patrão, volta e meia, gozava o destino do empregado que não gostava nadinha. Perguntei a Virgílio então como faria aquilo.
Após narrar a história do "vendedor de sonhos", fiquei sem saber o que soava mais esquisito, ou ingênuo, naquilo tudo: se a promessa do sujeito de que meu irmão se tornaria o homem mais rico da região, ou a garantia de que ele voltaria, anos depois, para cobrar a dívida, em dia e hora exatos. Como alguém poderia prometer algo assim? Mas a ambição de Virgílio parecia ter empesteado de vez seu juízo. Como de costume, calei-me, deixando o tempo se encarregar de lhe mostrar a insensatez do acontecido. No alto da chapada, avistamos a fazenda Caititu, já escurecia e os empregados se empoleiravam, como sempre, em frente à varanda do casarão para ouvir as histórias do patrão Eleutério. Antes de cruzarmos o portão de entrada, Virgílio me ordenou enfático que não comentasse o assunto com mais ninguém.
Eleutério era dono das terras e grande produtor de milho na região, conhecido também como Coronel Vossuncê, apelido herdado dos escravos que ficaram na fazenda após a abolição, nos tempos do seu bisavô. O velho viúvo de barbas longas e orelhas esticadas tinha mania de contar lendas sobre índios, ciganos e escravos ao redor da fogueira, nas noites sem lua. “Tudo para distrair os peões e não aumentar os salários”, rosnava Virgílio. Entre uma história e outra, o velho falava e ria sozinho, um riso mocho, como se o tempo varresse aos poucos sua lucidez. Naquela idade, não havia lhe sobrado parentes, por isso se apegava à companhia dos empregados, em especial, de Virgílio, “seu caboclo de confiança”, o homem “nascido para o milho e as minhocas”. Quando nosso pai se foi, o coronel Vossuncê nos acolheu dando estudo, trabalho e, mais tarde, uma casinha às margens do rio que cortava suas terras. Além disso, tentou nos ensinar o jeito dos fazendeiros ricos “para não passarmos vergonha na frente dos outros”.
Foi dele a ideia de convencer Virgílio a jogar as tarefas de casa sobre meus ombros para que não o atrapalhasse com suas obrigações da lavoura. O coronel tinha medo do meu irmão abandonar a estância, como fez nosso pai, por achar pesado demais o fardo de cuidar sozinho de um despernado (o coronel me chamava assim). Afinal, Virgílio era seu “caboclo de confiança”. Naquele mesmo ano, Vossuncê conheceu uma doença sem volta e, em poucos meses, passou a contar fábulas no além. Morreu sem ouvir a história do vendedor de sonhos. Acho que teria gostado.
Daí em diante a sorte de Virgílio mudou estranhamente como havia garantido o cigano embusteiro. Sua riqueza não veio no tempo dos girassóis, mas no espaço entre as colheitas. Começou com a herança do coronel que, num último gesto de afeto, deixou-lhe todos os seus bens. O velho dizia não ter herdeiros ou, ao menos, não se lembrar de nenhum deles. Apesar de ter ouvido falar, certa vez, sobre um viajante de passagem que levou sua única filha embora, sabe lá Deus pra onde e em troca do quê. A história parecia mais uma de suas lendas. De vez em quando, ele passava a noite murmurando o nome da filha, enquanto cochilava na cadeira de balanço: “Margarida... Margarida...”. No fundo, acho que enxergava nos olhos de Virgílio o reflexo da própria ganância e a rebeldia de jovem, por isso tentou compensar com a herança uma paternidade que não soube prestar em vida.
Foi questão de tempo Virgílio juntar tanto pedaço de chão a ponto de parecer impossível cultivá-lo antes da morte. Arrematou quase todas as propriedades vizinhas, expandindo Caititu além das expectativas. Seus sonhos que antes despertavam pela manhã sem a menor disposição de se tornarem realidade agora se materializavam em incontáveis porções de terra. Logo também saímos da casinha de taipa onde morávamos para nos meter no casarão do coronel. Nesse ponto, minhas ocupações passaram a não caber num mesmo dia. O lugar guardava uma infinidade de quartos, móveis, pisos, lustres, relógios e enfeites para todo lado, sem contar a cozinha, três vezes o tamanho da antiga casa. Virgílio se recusava a providenciar empregados, alegando não confiar em ninguém dentro de casa além de mim. Dizia que assim nunca seria roubado. “Se tentarem, que seja alguém como tu, Similião, sem pernas de correr, para que eu possa pegar mais rápido”, e cobria meus ouvidos de risadas. Sorria junto, um sorriso sem felicidade.
Mas não eram apenas os trabalhos da casa que varriam minhas forças naqueles dias. Atrás da fortuna de Virgílio, vieram as festanças, farras, bebedeiras, raparigas, madrugadas sem fim. Todo mês, anunciava uma nova posse, um novo lote de animais, uma nova colheita, sempre seguido de algazarras extravagantes no casarão. Nessas ocasiões, surgia gente de todo canto, de toda espécie, para se empanturrar como se não existisse amanhã. Tudo bancado pelo homem que já havia se tornado popular na região por engordar a riqueza cada vez mais, feito gado no pasto. Virgílio então me ajeitava no canto da sala como um enfeite de parede e mandava espremer a sanfona até o último convidado se despedir. O tom severo da sua voz me fazia obedecer sem reclamar. Assim incorporava uma criatura mitológica, de muitos braços, para que as pernas dos convidados não parassem de dançar um só minuto.
A certa altura, quando a bebida passava dos limites, vinham as mulheres se aproveitar dos meus braços atarefados para focinhar e lamber meu rosto feito gatos, desenhando de batom nomes, mimos, palavrões, com a ponta dos dedos, até caírem no chão às risadas. Apostavam entre elas quem conseguia me fazer errar os acordes primeiro. Já os homens prendiam tranças de papel na minha cabeça, penduravam almofadas na minha cintura como se fossem pernas, e ainda me levavam bebida e cigarro na boca, a todo instante, me transformando numa atração de circo. Ainda assim, gostava de velar a alegria das pessoas enquanto tocava. Ouvir suas gargalhadas, seus gritos, gemidos, suas vergonhas. Admirar a felicidade alheia de longe, em silêncio. Além disso, o som da sanfona me fazia esquecer, por um instante, “das tais pernas correndo na barriga da minha mãe”, e dançar pelos salões da imaginação, sem pisar em nada.
Já havia me acostumado a olhar os outros de baixo para cima. Lá do meu canto, recostado na cadeira de rodas, via meu irmão se esbaldar a noite inteira sendo alguém que não conhecia. Alegre, falador e extrovertido. Não dispensava afagos a nenhum de fora, uma atenção exagerada de abraçar todos como se fossem parentes, e de tratar as mulheres com a intimidade dos amantes. Uma pessoa bem diferente daquela que dividia os dias comigo, em sons frios e olhares vazios. Quando sorria ou balbuciava algo, parecia conversar consigo mesmo, fazendo-me parecer uma sombra. Sentia-me como um espelho do seu passado de frustrações, uma espécie de mau agouro ou castigo do destino. Mesmo sem dizer palavra, seus olhos me acusavam o tempo todo de ser a causa da morte da nossa mãe, da fuga do nosso pai e ainda da caridade de um coronel que, segundo ele, servia só de pretexto para explorá-lo. Com o passar do tempo, acabei entendendo que o sentimento de liberdade de Virgílio, naquelas noites de festa, jamais seria dividido com o responsável por fazer da sua vida um cativeiro. Quando amanhecia, o casarão acordava virado do avesso. Então era hora de voltar ao trabalho, limpar a sujeirada. Esfregava o piso manchado de toda porcaria, quase dormindo acordado.
Virgílio ainda desfrutou a fortuna por muitos anos embora agisse como um filho pródigo. Ninguém nunca soube da sua conta, apenas que seus números não acabavam. Uns diziam que andava metido em contrabando, outros que pagava pistoleiros para se livrar dos cobradores. Havia ainda os que o acusavam de ser apenas um falso rico, vivendo às custas do dinheiro alheio, de possuir mais dívidas do que os bolsos da calça podiam aguentar. Mas sempre deixei essas tagarelices de lado.
Porém, aconteceu que, de uma hora para outra, Virgílio se cansou de rasgar dinheiro e regar festas no casarão. Andava agora com a cabeça longe e o coração cheio de infernos. Passava o dia inteiro metido no quarto, sem apetite, alheio aos negócios da fazenda, como se o mundo não valesse a pena, ou seus sonhos fossem grandes demais para a própria soberba. Um medo prematuro pôs-se a vigiar suas noites de sono, já não conseguia pregar os olhos, nem pedia mais os sons da minha sanfona antes de dormir. Eu que quase não abria a boca para nada, perguntei se estava tudo bem. Virgílio apenas balançava a cabeça com o olhar perdido num abismo de silêncio.
Certa manhã, quando voltava da ordenha e da faxina no curral, e os primeiros raios de sol ainda se espreguiçavam na sonolência da escuridão, notei uma luz sair pela fresta da porta do quarto de Virgílio, que adivinhou minha presença: “É você, Similião?”, quase nunca chamava meu nome. Sentado na poltrona perto da janela, ele guardava uma expressão desolada e envelhecida. Ao seu lado, a garrafa vazia e o cinzeiro tomado de pontas de cigarro denunciavam uma longa vigília. Confessou ter passado a noite em claro. Notei então outro detalhe sobre a cama que me fez presumir a gravidade da situação e seu estado desesperador: um revólver engatilhado. Antes de perguntar qualquer coisa, Virgílio voltou a falar do passado, da promessa do tal cigano dos sonhos, de torná-lo o homem mais rico da região, de cobrar sua dívida no futuro, enfim, lembranças tão antigas que não faziam o menor sentido para mim. Segundo Virgílio, a data firmada pelo sujeito para selar o compromisso, feito há duas décadas, havia finalmente chegado.
Ele passou o dia plantado na cabeceira da varanda esperando a carroça do vendedor apontar no horizonte. A espera lhe fazia transpirar, fumar cigarros em fila, ensaiar motivos e coragens para mandar o sujeito ao diabo. Não lembro de ter ouvido tantas vezes meu nome como naquela ocasião. Virgílio me perguntava as horas o tempo inteiro. Ao ouvir a resposta, acendia novo fumo e voltava a encarar o portão de entrada. Lá pelas tantas, o céu encrespou e as nuvens mudaram de cor, soluçando relâmpagos para todo lado. A carruagem surgiu antes do anoitecer arrastando suas rodas pela trilha de pedra. Vinha puxada pelo mesmo animal de cascos azuis. Virgílio não conseguiu disfarçar a angústia. O viajante desceu calmamente, metido numas botas de corsário, sorriu cortês e inclinou o chapelão. Conservava a aparência idêntica à da última vez, com exceção dos cabelos, agora mais longos e enfeitados de penachos e presas de ave. Seus olhos incomuns lhe tiravam a aparência humana, impondo certa autoridade.
“Ora se não é o meu amigo sonhador... como andam nossos negócios?”, nos saudou com um sorriso sarcástico exibindo os dentes dourados. Antes de abrir a boca para dizer outra palavra, Virgílio partiu em ameaças, com a voz engasgada e vacilante, aconselhando o viajante a tomar seu rumo e deixar o passado onde estava. Disse não existir garantia de que suas promessas, de tanto tempo, tivessem qualquer efeito sobre suas conquistas. “Não se mudam destinos, moço, o que tinha de acontecer aconteceu, como Deus manda...”, cuspiu de lado e apontou: “Minha fortuna veio da herança do coronel, não dos seus prometidos, então volte de onde veio com sua carroça”.
E lembrou de outras fantasias tratadas por ele com o povo do vilarejo na sua passagem por lá: como a da tabeliã que negociou o sonho de rever o marido, desaparecido há anos, depois de sair de casa para trabalhar e nunca mais voltar. Ou do vaqueiro que pediu o perdão das suas dívidas, após ser jurado de morte pelo cobrador. Tudo em troca das últimas economias. “Quanto desespero”, pensava comigo. Tempos depois, é verdade, o marido da tabeliã apareceu um belo dia do nada, e as dívidas do vaqueiro também foram de fato quitadas. Mas, veja bem: o marido voltou apenas para raspar o último centavo da pobre coitada e sumir de novo com a outra. E o credor do vaqueiro morreu, meses depois, vítima de mordida de cobra. Coisas dessa vida, nada de sobrenatural, episódios que nada deviam às promessas do estranho viajante. Mas o povo adora olhar o céu e acreditar que a realização de um sonho só pode brotar de lá, quando, muitas vezes, nasce aqui mesmo no chão onde pisamos. “O senhor anuncia sonhos, mas não passa de um vendedor de adivinhações”, acusou Virgílio. Enquanto falava, o cigano ouvia paciente suas razões, com o olhar cheio de segredos, como quem recorda uma canção inventada só para despertar o sentimento adormecido dos outros.
Ele ficou ali, parado, nos encarando por um tempo. Embora eu não tivesse pernas para tremer, sentia todo o medo do mundo naquele instante. O cigano então suspirou fundo e meteu a mão dentro do paletó de couro, bordado com fios de prata, jurando resolver a questão de outra maneira. Foi quando Virgílio sacou o revólver e apontou contra o peito do sujeito. Meu coração disparou sem achar sangue nas veias. “Já disse para o senhor ir embora”, advertiu Virgílio. O cigano respondeu à ameaça com o sorriso cínico de sempre, certo de que, por trás da arma, não havia coragem suficiente para puxar o gatilho. “Quanta indelicadeza, não vai me servir um café antes?”, provocou, pegando seu caderno de notas do bolso. Nessa hora, puxei as rodas da cadeira ofegante em direção à cozinha, sem passos para tropeçar, a fim de atender o pedido do visitante e, ao mesmo tempo, esfriar os ânimos. Ao voltar com o café, os dois conversavam a portas fechadas no escritório. Minha cabeça revirou sem entender nada.
Passados alguns minutos, os dois deixaram a sala e vieram ao meu encontro. Sem olhar direto nos meus olhos, Virgílio arqueou as sobrancelhas e ordenou: “Pegue suas tralhas, Similião, você vai embora daqui hoje”, virou as costas, acendeu outro cigarro e foi se meter na cadeira de palha do falecido coronel. O tom irredutível da sua voz me fez obedecer como sempre. Sem dizer nada, Virgílio respondia minhas perguntas como se pensasse em voz alta, que o acordo com o cigano agora era outro e, sim, ele havia me negociado como garantia pelo perdão das dívidas. Logo me vi perdido numa encruzilhada onde todos os caminhos levavam ao mesmo destino. O cigano me olhou do canto da sala, de um modo estranho, como se visse algo escondido em mim. “Talvez revirasse a alma daquela pobre criatura dividida ao meio, atrás de algum sonho perdido”, pensei comigo.
Era quase noite e pingos grossos desciam das nuvens junto à escuridão. Voltei ao quarto, peguei a sanfona e alguns panos de boas lembranças para usá-los um dia com saudade, depois deixei o casarão no silêncio habitual. Ao tomar a carroça, imaginei uma longa viagem, então decidi ir ao banheiro antes, do lado de fora da casa, pois Virgílio não deixava usar outros, por conta das minhas imperfeições, para não correr risco de sujá-los. Antes de sair, o estranho viajante que ninguém nunca soube de onde veio me disse: “Vamos ver onde esse mundo termina, rapaz... mostrar pra esse povo o verdadeiro valor de um sanfoneiro sem pernas...”, seus dentes se abriram numa faísca de riso. E foi assim que o vendedor de sonhos me levou para sempre.
Soube mais tarde que, após minha despedida, o povoado caiu em tristeza, órfão das festanças que eternizavam suas lembranças. Era como se a música por trás do fole despertasse nas pessoas sonhos e sentimentos que achavam não ser mais capazes de sentir. Aos poucos, a alegria do lugar foi embora se tornando um vago suspiro melancólico. Os melhores tempos da região se foram e os negócios de Virgílio esfarelaram da noite para o dia. As plantações secaram e o dinheiro mal pagava a comida. De repente, ele se viu perdido numa peleja de sentimentos de revirar a alma e ensopar os olhos. Não era só pela riqueza que minguava a cada dia. Existia algo mais soterrado naquele conflito pessoal. Virgílio sempre sentiu a urgência de ventilar a boa sorte na frente dos meus olhos, como se quisesse me castigar pelas desfeitas causadas em sua vida, ou alcançar algum tipo de consolo. Sim, acho que era isso.
Depois que parti, sua alma passou a procurar em vão um motivo para continuar existindo, até se cansar e adormecer numa solidão irrevogável. Talvez na companhia das partes que me foram arrancadas logo cedo e deixadas lá “no ventre da minha mãe” para a eternidade. Virgílio, diziam as pessoas, passava horas em frente à varanda do casarão vazio e sem sons, feito um retrato antigo do próprio abandono. Esperava a volta da carroça com a bebida da última noite amargando a boca e o rumor da sanfona azucrinando a cabeça. Seus olhos viajavam por riquezas passadas confessando lágrimas com cheiro de álcool. Nunca mais tive notícias suas.
Quando deixei Caititu, segui uma nova jornada feito um rio que deságua no mar. Era como rasgar as páginas da minha história e começar um livro do início. Parti sem conhecer os sonhos que Virgílio nunca sonhou. Talvez isso, até mais do que as ausências do meu corpo, tenha me convertido num homem repetidamente incompleto. Um homem que, por muito tempo, esperou a morte para buscar o que havia sobrado de si. Durante a viagem, senti o coração mais vivo do que nunca. O cigano seguia jurando às estrelas “não ser um negociante de adivinhações”, como Virgílio pensava, “mas um tangedor dos vazios da alma”. E assim tentava convencer o mundo das suas mentiras que, em certas ocasiões, lembravam as lendas do coronel Eleutério.
Enquanto ele prestava contas, eu deixava a estrada me levar soprando os balões de terra que me levariam aos jardins infinitos do céu, inventados a cada horizonte. E o mundo parecia quase meu. A ideia de ele ser um lugar onde eu não cabia já não me assombrava, assim como minhas pernas não me perseguiam mais, não brotavam do peito feito ervas daninhas, nem me condenavam pela morte da minha mãe, ou pelo abandono do meu pai, ou pela solidão do meu irmão. Sem olhar para trás, íamos pelo caminho eu, o cigano, e uma mulher com nome de flor.
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