2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: LUCAS JORDAN — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros
- 11 de jul.
- 29 min de leitura

SOBRE O AUTOR
L. Jordan é um eterno iniciante e na literatura não seria diferente. De vez em quando, escreve algo que considera digno de mostrar ao mundo. Em seus textos, o real e o absurdo têm uma relação natural, emoldurados por uma prosa aguda, com humor e paixão pelos dilemas humanos.
É publicitário, tem a profissão dos (des)iludidos. Escreveu Senhor, nada disso importa num forçado período sabático em que pouco apreço tinha pelo passado, enquanto sentia pelo futuro um tipo de esperança cética. Uma versão estendida e piorada pode ser encontrada na Amazon.
Outras obras serão publicadas em breve.
O CONTO SEMIFINALISTA
Senhor, nada disso importa
Blumenau, Brasil.
A lua brilhando seca e dura lá no alto e a família já recolhida. A hora da escapadela tão aguardada. Saltou o muro com destreza felina. Levitando para o outro lado. Livre pra mais uma noite de libertinagem. O ar úmido invadia-lhe o peito e deixava claro que o dia seguinte traria um calor de matar, mas o amanhã não importava, não agora; a noite seria sua, de Tiziu, de Tiziu no mundo.
Começou a descer o morro a passos largos e biomecanicamente bem dados, apenas as pontas das patas tocando a calçada e, com isso, atingindo uma velocidade considerável. Ia descendo com o flanco esquerdo do corpo arrastando em todos os muros vizinhos, deixando em cada um a sua marca odorífera: Tiziu esteve aqui.
Okinawa, Japão.
Kazuko dormindo sob a luz azulada da televisão quase inaudível, o corpo esguio envelopado por um vestido preto justo. Todos a elogiavam por manter a forma durante a gravidez; seguia como sempre, apenas com um adendo, uma saliência delicada, a pequena Keiko devorando-a por dentro, roubando também do pai, através de algum tipo de telepatia maldita, sua paz de espírito.
"O único jeito cem por cento eficaz de não engravidar é não transando", teria dito certa vez Kazuko.
"Mas você não consegue olhar pra mim e negar que engravidou de propósito. Você é egoísta, Kazuko", Hinata quem sabe tenha respondido.
Um redemoinho de pensamentos difusos foi interrompido quando o gato saltou sobre seu colo.
"Oi, Mario", cochichou Hinata, tentando acolhê-lo. O gato girava sobre as coxas do dono, inquieto, lentamente como um peão em fim de brincadeira, quase caindo de lado. Hinata tentou acariciá-lo, mas o bicho seguia demonstrando desconforto, como se tentasse dizer algo. "Eu não vou levantar daqui agora". Mario miou entrecortadamente, como que numa frequência estranha, quase rouco. "Fica quieto".
Hinata voltou seu olhar para a figura pacata que dormia logo ali, mas que parecia estar a anos-luz de distância.
Provavelmente a gente tinha combinado de sair, ponderou, reparando no vestido e na maquiagem de Kazuko. Acariciou o pé da esposa, vagamente condenando a si mesmo pelas ideias distorcidas que vinha alimentando ultimamente. Sempre que, ao chegar tarde do trabalho, Hinata a encontrava dormindo, a ternura lhe invadia o coração por alguns instantes. Como ela é linda. Eu quase com certeza amo essa mulher. É muito, muito provável que eu ame essa mulher, pensava. Estava cada vez mais difícil formar orações completas mentalmente.
Mario desistiu do colo e desabou na cama, ao lado de sua perna. Hinata teve a impressão de que o bicho não estava bem, mas deixou pra lá. Voltou a observar Kazuko (e Keiko). Talvez ela nem estivesse dormindo agora. Talvez, em quatro a cada cinco vezes, ela estivesse acordada quando ele chegava do trabalho cansado, perto das onze, mas preferia fingir estar dormindo para fazê-lo sentir-se culpado. Será que já não bastava o fato de Kazuko estar deprimida, com depressão mesmo, coisa feia e séria, tomando remédios e fazendo terapia, e dando a entender com frases soltas aqui e ali que aquilo tudo era culpa sua? Largar o emprego, tentar preencher o oco de sua vida com uma criança unilateralmente planejada e claramente falhar em alcançar a plenitude através dessa concepção, tudo isso era culpa sua?
Deve ser, costumava ser a conclusão.
Manchester, Inglaterra.
Não se lembrava exatamente da explicação que sua mãe dera sobre a origem e formação da neve, mas provavelmente havia sido algo raso e quem sabe tão distante da realidade quanto ela mesma agora era. A Stanley parecia agradável relembrar sua infância, mesmo que um tanto conturbada, mas apenas quando ia buscar o almoço, em breves caminhadas. Dentro de casa a coisa toda mudava de figura, as memórias tornavam-se mais pesadas, envoltas numa penumbra amarelada; a culpa se materializava em cada grão de poeira da velha morada, a angústia se escondia em cada móvel; em cada gaveta emperrada se guardava um pouco de saudade, um tanto de incertezas. Via sua falecida mãe aqui e ali, cortando algo na pia da cozinha, pendurando roupas no varal, esfregando os cantinhos com uma escova de dentes, cada aresta e cada vértice, maniacamente. Não via um espírito; via-a porque ela estava ali, gravada, impregnada no mofo de uma casa da qual ninguém mais cuidava.
Tinha em mãos duas fatias de trinta centímetros separadas pela proteína processada à disposição no cardápio e o dobro de cebola roxa por favor, dois sanduíches de quinze centímetros cada, envoltos em papel, tudo escolhido a dedo — engordurado, apontando no vidro que o separava do rosbife, do pastrami. Um sanduíche em cada mão; gostava de imaginar que eram pistolas de laser e que ele era o xerife. Imaginava um novo velho oeste, onde raios-gama e feno se encontravam; a cidade cheia de bandidos de metal e escamas, meio-robôs-meio-répteis, e nada como a sua chegada pra tranquilizar o coração de sua amada Jane. Sob o sol escaldante, ela usava um vestido branco cujo decote caía-lhe delicado sobre o peito, em ondas semicirculares. A soma de todas as mais belas mulheres que já pisaram sobre a Terra. Acelerou, quase trocando uma perna por outra, quando algo trouxe-o de volta a si. Formando um montículo de pêlos, com as costas curvas na parede de tijolos da sua casa, um felino abatido.
Aproximou-se na intenção de checar se estava vivo. Respirava. Abaixou-se já arrependido do movimento que lhe exigiria esforço em dobro na direção contrária posteriormente e teve certeza que ele estava mesmo vivo, apesar de algo em sua cara transparecer justamente o contrário de saúde e bem-estar. Não era um grande entendedor, mas concluiu que não faria mal algum abrigar o gatinho — a gatinha, agora que havia se certificado ao erguer seu rabo quebrado. Além disso, Oliver poderia gostar de ter um animalzinho pra chamar de seu.
Guardou os sanduíches nos bolsos da jaqueta, apoiou-se com um lado do corpo e um dos braços na parede, e com o lado livre pegou a gata no colo, ainda desacordada. Com a força do lado apoiado, levantou-se em mais ou menos dois minutos.
Então começou a sentir no topo da cabeça, onde os fios já eram ralos, os primeiros flocos de neve do ano.
Blumenau, Brasil
A noite transcorria como planejara ao longo do dia, entre uma soneca e outra.
Após se deixar cair em todas as distrações possíveis, Tiziu chegou à Rua das Palmeiras, como é conhecida. Era-lhe bastante agradável caminhar lentamente por entre as duas fileiras de palmeiras até o ponto de encontro, ouvindo o farfalhar lá do alto das copas. O corredor criado pelas árvores na calçada estreita encanava uma brisa mais fresca do que normalmente se encontrava em outras partes da cidade nessa época do ano. Finalmente estacou em frente ao decadente museu que um dia fora o lar de Edith Gaertner, sobrinha-neta do fundador da cidade.
O que levava centenas de gatos a se encontrarem ali quase todas as noites era o que se sabia sobre a história da casa. Edith fora, possivelmente, a primeira velha louca dos gatos, ou pelo menos a primeira a estabelecer algum valor nesta posição, uma vez que construíra nos fundos de sua casa no século XIX um cemitério para os bichanos que moraram ali ao longo de sua vida, tornando-se assim reconhecida de forma afetuosa, sem tantos comentários maldosos a respeito de sua solteirice e toda aquela ladainha que a época lhe infligiria não fosse o carisma da construção, o quão inusitada era. Algumas gerações mais tarde, os descendentes — carnais ou espirituais — de Bum, Mir, Mirko, Musch, Pedelle, Pepito, Putze, Schnurr e Sittah encontravam-se ali. Não que tivessem sido ensinados sobre algo; sabiam, apenas.
Okinawa, Japão.
Suas divagações foram interrompidas por uma música imponente vinda da televisão, mesmo com o volume baixo. Tratava-se da vinheta de um canal de astronomia no YouTube, que Kazuko acompanhava assiduamente, o The Stars Above Us. Uma live urgente, dizia na tela. Um apresentador, que apresentava não só a live, mas também um evidente cansaço, surgiu numa transição pretensamente futurista. Seu cansaço somou-se a uma expressão de espanto, um pouquinho de alegria, mas uma porção mais significativa de medo e uma ponta de esperança.
Sem paciência para tentar continuar adivinhando todas as emoções do apresentador após as primeiras frases, Hinata resolveu aumentar o volume da televisão. Esticou-se para pegar o controle remoto da mão de Kazuko, com cuidado. O gato Mario se levantou, novamente inquieto, rodopiando e emitindo ruídos intermitentes indignos de serem chamados de miados.
O jovem pálido na TV falava algo a respeito de sinais de ondas de rádio detectadas na semana anterior por um radiotelescópio de americanos e canadenses. A FRB ("Fast Radio Burst, pra quem não sabe, e já aproveita e dá uma olhada no conteúdo que eu lancei sobre isso no mês passado", disse), vinha de não muito distante, cerca de 1.800 anos-luz, e finalmente parecia haver um padrão na comunicação. "Como assim?", disse, "Eu mesmo te respondo", continuou.
"Ah, bom, obrigado", Hinata respondeu baixinho. O negócio era que, depois de muitos anos procurando, apontando antenas gigantescas pro céu, finalmente parecia que alguém lá em cima estava nos dizendo algo. Ou melhor, que dissera algo há muito tempo atrás e agora recebíamos a mensagem.
"Parece que os pesquisadores conseguiram decodificar as ondas de rádio, ainda sem traduzir nada, mas pelo menos conseguindo montar uma estrutura que parece estar indicada nos padrões da FRB em parágrafos, ou estrofes, como uma tentativa de… se comunicar seguindo a lógica dos seres humanos. É um tema complexo, que eu exploro mais no meu curso de astronomia básica…".
Desligou a TV. Havia mais com o que se preocupar. Sua esposa agia de modo cada vez mais frio e ao mesmo tempo carente de atenção, e ainda bem estava dormindo quando ele chegou; sua filha nasceria em breve; no trabalho, as vendas até podiam melhorar se ele melhorasse seu desempenho e produtividade, mas pra isso ele precisava estar mais descansado, mais leve; mas de que forma ele poderia ficar mais leve, com tudo aquilo acontecendo, com aquelas ideias tortuosas puxando-o de volta pra baixo, de volta para uma zona em que não podia enxergar nada com clareza, em que mal conseguia organizar as ideias e em que ouvia a própria voz dentro de sua cabeça cada vez mais abafada, cada vez mais distante, como se sua consciência estivesse sendo sufocada por um travesseiro metafísico?
"mmmia-uêa-ua-mmmmiii-mê-mmmia-mwuuuu", foi o som emitido por Mario.
Hinata voltou-se para o gato, que girava aos pés de Kazuko. O bichano estacou, os olhos verdes arregalados com as íris encolhidas, quase desaparecendo, agora virado para o dono.
"mmma-ruêa-ra-mkiii-mtê-mmmima-mswuuuu", ligeiramente diferente dessa vez, pronunciando consoantes que Hinata jamais imaginara saindo da boca de um gato.
"mmmarera-wa-mkite-immmasiiu", Mario repetiu, espremendo os olhinhos antes arregalados, deixando escapar lágrimas quase viscosas. "Karera wa kite imasu", disse Hinata para si mesmo. Desejou por um instante que Kazuko dessa vez realmente fingisse dormir. Chacoalhou-a, repetindo "Ei, ei, acorda".
"O gato. O gato falou. O Mario falou". "Quê?", perguntou Kazuko, ainda entorpecida, erguendo-se, olhando em volta.
"Ele falou, o gato acabou de dizer uma coisa, eu juro".
"Dizer o quê, Hinata? O que aconteceu?".
"'Eles estão chegando', foi o que ele disse".
Kazuko meneou a cabeça num misto de negação e tentativa de despertar. Procurou o felino com o olhar. Mario saltou da cama, balançando o rabo rajado em cinza e preto e perdendo-se na escuridão do corredor ao sair do quarto.
Mais uma noite se passou sem que o assunto Keiko fosse abordado. Nada de Montessori, preço das fraldas ou o dilema de dar-ou-não-dar chupeta pro bebê. Uma noite a menos.
Manchester, Inglaterra.
Demorou um pouquinho para Stanley se dar conta de que a conduta ideal praquele momento era arranjar duas tigelinhas e enchê-las com água e algo pra comer. Já dentro de casa, sentado à frente do computador, pesquisou rapidamente o que é que gatos não podem comer, só por precaução, e descobriu que boa parte da lista de proibições era justamente muito parecida com o que se encontraria nos armários da casa. Então enviou uma mensagem para Oliver, seu irmão mais novo:
"Oli, compra ração pra gato, pfv. depois te explico".
Levantou-se da cadeira e foi à cozinha procurar uma tigela que considerasse adequada. Revirou os armários. As coisas não andavam nada fáceis desde a morte de sua mãe. Não que alguma coisa em algum momento tivesse sido fácil para Stanley, ou assim ele o via, mas tudo andava especialmente monótono desde então, decadente, mofado, parado e sensível à ação do tempo; tudo ao seu redor parecia ter desistido de uma existência digna, deitado de bruços e passado a esperar o tempo lhe dilacerar como bem entendesse. Stanley não se lembrava de, enquanto a mãe era viva, ter visto uma janela quebrada, assim como não se lembrava de, após sua morte, ter quebrado qualquer uma daquelas janelas que agora tapava com papelão. Não se lembrava de, jamais, uma gaveta ter emperrado, uma privada entupido ou rato aparecido. Gostava de acreditar que a presença da mãe, mesmo depois de tanta coisa, dois divórcios unilaterais que ficaram subentendidos após sumiços dos maridos, mesmo com tanta dificuldade para criar dois filhos e um especialmente, o próprio Stanley, cheio de complicações, conforme ele julgava, mesmo assim as coisas tinham alguma ordem — e aí, por mais que o caos circunstancial dominasse a vida daquela pequena família, pelo menos o caos físico não tinha vez por ali. Não naquela casa. Demorou um bom tempo até Stanley ter alguma noção da ligação entre o comportamento obsessivo da mãe por limpeza e organização e as coisas ruins pelas quais ela tinha passado. Serviu água para a gata numa tampa de pote de Nutella.
Blumenau, Brasil.
Agora Tiziu estava parado em frente à casa-museu-cemitério como normalmente fazia antes de encontrar os demais. A fachada enxaimel, iluminada parcialmente pelo letreiro discreto, estendia-se diante das pupilas dilatadas do bicho. Nenhum miado, guincho nem nada. Nenhuma cruza ou briga, aparentemente. Como tinha que ser. Um carro passou perdido pela madrugada na rua que separava Tiziu e o museu, iluminando suas retinas reflexivas, o tapetum lucidum de cada topázio pendurado naquela carinha impassível. Tiziu chacoalhou a cabeça como quem bate um tapete empoeirado, para varrer o excesso de luz. Atravessou a rua.
Ali estava o cemitério. Nove pequenas lápides com nome e foto. Em cima de cada um dos túmulos, mas também sobre outras esculturas coloridas, ou deitados aos pés de cada lápide, mais felinos se aproximavam. Trocavam olhares e se reconheciam. Jovens recém-adultos eram recepcionados com amigáveis cabeçadas, ronrons e fungadas sob o rabo. Nada era esperado para aquela noite e nem para qualquer outra. Ficar e sentir e silenciosamente celebrar o fato intrínseco de pertencerem a uma espécie, apenas. Todos chegavam de alguma aventura buscando tranquilidade.
No entanto, antes que Tiziu pudesse perceber e reconhecer todos os presentes, seus pelos se eriçaram. Na cauda, no colar piláceo e nas costas. Os ouvidos queimando, os bigodes vibrando e os coxins ressecando-se em segundos, para depois começar a sentir o suor fluir. Ao seu redor, todos pareciam passar por algo semelhante, a inquietação engolindo a seco a paz de espírito. O calor daquela atmosfera tomou forma e cor. O faixo de luz azul suplantou os quatro troncos ao centro do círculo de lápides, cada um caindo em uma direção; a escultura branca se desfez. Agora já não era mais um faixo, mas todo o mundo azul para Tiziu. O calor se dissipara tão repentinamente quanto o medo que agora dava lugar à curiosidade, e a paz de espírito destruiu as entranhas da inquietação, rasgando-a por dentro e tomando conta novamente não só de Tiziu, mas de todos os que, com ele, levitavam.
A voz não entrou pelos ouvidos. Era uma semente que brotava, emergia, crescia e morria diretamente no lobo temporal conforme os instruía a não temerem. A voz embebia os sentidos por completo de dentro pra fora e prometia revelar à espécie o que jamais lhes fora permitido. A voz era uma explosão invisível, porém audível e que fazia mais sentido do que qualquer outra coisa que eles já tivessem escutado. Ao mesmo tempo a voz pulsava suave ecoando nas paredes do crânio, flutuando eternamente e dando piruetas concêntricas de volta pra dentro, conferindo um propósito ainda não esclarecido, mas que estava lá, a tudo aquilo que não era mais possível ver, apenas escutar.
A voz disse que precisava de um favorzinho.
Manchester, Inglaterra.
Stanley sentou-se novamente. Deveria estar trabalhando. Deu uma espiada na gata, que havia se levantado, girado duas ou três vezes sobre o próprio eixo, cambaleado e caído novamente. Stanley queria acreditar que, desta vez, a procrastinação se devia exclusivamente àquela presença diferente, mas sabia bem que não se tratava disso. Considerava que não conseguia, simplesmente não tinha a capacidade de fazer qualquer coisa com a mínima qualidade, e que por isso mesmo não se aprofundava de verdade naquilo que se propunha a aprender e que isso, então, o levava a fechar o ciclo da improdutividade ao não fazer coisa alguma com esmero, uma vez que não possuía o conhecimento necessário. É claro que toda essa autodepreciação não melhorou após a morte da mãe. Oliver, com apenas dez anos, parecia estar reagindo muito melhor a tudo aquilo. Ia à escola, passava tempo com amigos, jogava videogame e fazia os deveres da escola — sem falar muito, sem sorrir demais, mas também sem jamais chorar. Com exceção do fato de que, na surdina, o guri devia estar quebrando janelas pra extravasar. No fim é ele que cuida de mim, pensava Stanley, aos vinte e oito.
O trabalho travado, uma guia do navegador transmitindo um podcast irônico sobre teorias da conspiração, a neve engrossando lá fora e o vento laminoso entrando por uma nova fresta recém-descoberta. Stanley vestiu novamente a jaqueta que havia tirado ao chegar, reencontrando nos bolsos o almoço que havia se esquecido de comer. Desembrulhou os sanduíches e mandou ver.
Limpou as mãos passando-as sobre folhas de papel sulfite brancas que tinha sobre a mesa, deixando marcas que, aos desavisados, pareceriam com uma cena de assassinato. Fez bolinhas e atirou-as na lata de lixo próxima à gata, agora acordada, que acompanhou o movimento parabólico com um olhar de fingido desinteresse. Stanley imaginou que a gata deveria estar mais assustada do que vinha aparentando. Enviou nova mensagem a Oliver:
"Tenta vir rápido".
Voltou o olhar ao editor de texto na tela do computador e colocou as mãos atrás da cabeça. Aquilo não iria pra frente hoje, definitivamente. A postura de quem entrega as fichas e se reclina, se afastando, como quem diz é isso o que temos, nada mais a oferecer.
*
Dirige o olhar pesado à gata. Sente nas pontas dos dedos o ranço do couro cabeludo há muito abandonado, com os dígitos entrelaçados por fios pegajosos. Sente, onde a parte mais alta da língua toca o céu da boca, o agridoce da cebola roxa. Pouco a pouco passa a ser envolvido por uma percepção real de sua existência física, mais do que momentos antes, quando precisou acelerar o passo ou se abaixar e levantar; agora é real, com os próprios sentidos auto-estimulados de Stanley enquanto entidade respirante, caminhante, digestante e não-finalizante de coisa alguma. Existia, não executava. Passava dia após dia a imaginar e ensaiar e rascunhar. Olha para a gata estropiada que Sua Inutilidade teve a bondade de resgatar, e ela carrega naquela cabecinha o rosto de quem passou a noite em claro esfregando uma escovinha de dentes em cada quina de uma casa velha, a pancinha mole de quem já teve uma dúzia de gatinhos cujos pais a natureza não se encarrega de nomear, e ele volta a reparar na sebosidade dos próprios cabelos, no palato poluído, e tira as mãos da teia de sebo e as examina, brilhosas, inchadas, sente de si mesmo exalar o odor aliáceo que ineditamente passa a lhe causar enjoo. Estende a mão para a gata, que lambe seus dedos, faminta e familiarizada. Stanley se locomove paquidermicamente e se senta ao lado da gata, no chão, deixando que lamba seus dedos.
*
Teorias da conspiração é o tema de hoje.
"E, assim, sem querer soar como um maluco conspiracionista [risadinhas dos colegas], que é justamente do que a gente tá tratando hoje, né [risadinhas do orador], mas a última notícia do planeta Conspiraciolândia é que astrônomos da NASA conseguiram identificar uma mensagem alienígena, ou melhor, uma tentativa de comunicação, quer dizer na verdade o que parece ser uma tentativa de comunicação, e aí que eles tão tentando decifrar isso… Fala a verdade, Walt ['hmm', ouve-se Walt ao fundo], cê acha mesmo que a NASA ia liberar esse tipo de informação se fosse real, e se fosse só uma, tipo, percepção, algo que eles aaacham que pode ser? Não, né?"
"Não mesmo", diz Walt, na sua voz mais grave e madura que a do orador anterior.
"Pois é, e os caras estão falando por aí que essa info 'vazou', entende? E o carinha qualquer da internet é que 'descobriu' e agora tá 'alertando' o mundo todo".
"Como se fosse fazer diferença saber ou não saber disso".
Stanley segue experimentando a aspereza da língua da gata em seus dedos engordurados, experimentando mesmo que vagamente a ideia de ser útil de alguma forma. Interrompe o lambe-lambe para tirar o casaco e arremessá-lo longe, uma vez que fora do alcance da fresta já não faz o mesmo frio. Devolve a mão à gata, que claramente não está no auge do vigor felino, digamos assim. Sentado ali, fica de frente para uma televisão desligada em cujo reflexo pode se ver, mas não pode ver a gata que, do seu ângulo, fica escondida atrás da escrivaninha.
O orador coadjuvante (conhecido como Stuart 'Formiga' Jones), continua:
"E aí, tipo, seeempre tem um fundo de verdade nas teorias da conspiração ['aham', Walt intercala à moda aizuchiana, realçando o tom grave da sua voz de baixo]. É isso que é importante o pessoal de casa entender. Sempre vai parecer verdade porque é isso que uma meia-verdade é, né? Fala sério. Meia. Verdade".
"Perfeitamente. Mas diz pra gente, Formiga, que parte dessa última notícia é verdade, então".
"Bom, é verdade, até onde a gente sabe, o que é oficial: uma Fast Radio Burst, que também é conhecida pela sigla FRB, foi identificada pelo telescópio CHIME. Aí você até pode se aprofundar no que é uma FRB, quando que ela acontece, quem sabe se aprofundar melhor na questão das ondas de rádio, sabe, ou o sinal WOW!, mas tipo, nada disso indica que tem alienígenas falando com a gente. Essa é a metade que é verdade, até onde se sabe. Nada de espetacular até aqui, né?".
Stanley tem sua atenção chamada por uns instantes pelos comentários que vêm do alto-falante do computador. Tenta se levantar para aumentar o volume. Tem convicção de que a batalha contra a gravidade não será nada fácil. Começa tentando se apoiar na parede mais próxima, o braço acima da gata, que passa a emitir grunhidos incômodos, roucos, vindos aparentemente do fundo da garganta sanfonada e rosada para a qual ele olha agora, de cima, lá no fundo. Os grunhidos ficam mais estridentes, aumentando a urgência da Missão. Os dedos de Stanley escorregam da parede, fazendo-o voltar à estaca zero, a bunda de saurópode novamente no chão.
"Nada de espetacular até aqui. A audiência tá caindo, inclusive", Walt faz qualquer comentário sagaz parecer pelo menos quinze vezes mais sagaz somente pelo jeito de falar, arrancando suspiros e breves risadas dos colegas de bancada. Essa influência conta com a contribuição de sua belíssima voz.
Stanley toma fôlego e inicia mais uma tentativa. A mesma tática da mão direita na parede, agora mais seca após esfregá-la na camiseta, que na verdade já começa a apresentar os primeiros sinais de uma camada de suor localizada em formato de losango logo abaixo das mamas. Agora são seus pés quase hexagonais que escorregam no piso de madeira conforme ele faz a força que pode contra a parede tijolar.
"Agora a metade que é mentira, então", Formiga Jones retoma. "Que os pesquisadores estão conseguindo organizar e decifrar essa última onda de rádio rápida como se fosse uma mensagem, ou tentativa de mensagem, de alguém a mil e oitocentos anos-luz daqui, e que agora basta traduzir, ou melhor, comé que eles falam… dedodi… decodificar isso, perdão".
Mais uma tentativa. A respiração acelera. Sente algo subir de seu estômago à glote como se fosse uma bola de frescobol, borrachuda e oca, seus olhos brilham com uma fina camada lacrimal na pálpebra inferior. A gata urra dolorosamente, o que deixa Stanley ainda mais desconfortável, desistindo momentaneamente de levantar-se. Tira o celular do bolso da calça para ver se Oliver deu qualquer sinal de vida. Nada.
"É mentira até onde a gente sabe, né, porque tô tentando ser o mais científico possível aqui". Formiga adora prostituir a palavra "científico".
"Mmmmey aaaarr", a gata guincha e rola deitada em sentido anti-horário como um crocodilo prestes a almoçar.
"Então pode ser verdade, ainda assim", Walt retruca.
"Mmmmuooomin", o guincho continua e Stanley, consternado, arfando, deixa escapar umas lágrimas.
"É muito complicado acreditar que tenha aliens tentando falar com a gente, né?".
O bichano começa lentamente a vazar por todos os poros e buracos possíveis, com excrementos variados, e a escatologia não apenas apressa, mas também fragiliza ainda mais os movimentos de Stanley, que quer muito, muito mesmo, questão literal de vida ou morte, levantar-se dali. Procurar toalhas, remédios, qualquer coisa que quem sabe a gata possa comer sem morrer logo de cara, sem se tornar o pior presente possível para Oli, um bicho morto, escorrendo excrementos em todas as pontas e saídas; Stanley faz uma derradeira investida concentrando as forças desde a planta dos pés, pelas pernas colunares, no sacro e no ílio, sentindo o curso da força em si, mas perdendo-a no meio do caminho, em algum lugar na base da espinha, tremulando os joelhos e descendo de volta os poucos centímetros que subira. Divide sua atenção entre: a gata moribunda que não para de emitir sons bizarramente claros e quase inteligíveis; a sua própria incapacidade de levantar-se após sentar-se no chão, o que sabia muito bem que poderia ocorrer, porque se trata de um movimento completamente diferente de quando simplesmente se agacha, o que também nunca foi agradável; a discussão incipiente que se dá nas caixinhas de som.
"Eu não sei, você é que tá dizendo que é impossível".
"Vamo lá, eu não disse que era impossível".
"They are coming", a frase que finalmente estoura junto com uma bolha de sangue saindo da boca da gata. Stanley sente as maçãs do rosto formigarem e sobre elas escorrerem lágrimas geladas à medida que um calor incômodo lhe queima das têmporas ao ouvido interno, quase entupindo de fato o seu ouvido, o que teria sido ótimo para não escutar a infame notícia de que eles estão vindo sair justamente da boca da gata que acabara de resgatar da rua. Não poderia ter sido diferente, Stanley começa a pensar consigo enquanto vê e cheira a merda, o vômito e o sangue, e também o suor que brota das cascudinhas almofadas das patas da gata. Tinha que ser assim com ele, um presente dos céus, um recado deixado na porta de casa, e justo quando ele havia depois de tanto tempo feito algo sutilíssimamente gentil e bom, resgatar um bichinho da rua e, veja só que bondade, pensar em presentear o irmão mais novo. A camiseta empapada agora de suor e lágrimas lhe gera incômodo tal, somado à estupefação e ao despertar perfunctório para a própria mediocridade, que Stanley a arranca do corpo, rasgando o tecido preto.
"Eu não sei", esta frase costuma ser a cartada de humildade lançada por Walt em discussões. "Eu não sei, me parece que você trouxe aqui uma notícia, não uma teoria da conspiração".
"Eu de fato trouxe uma notícia sobre astronomia".
Stanley desvia o olhar do gato-correio fazendo um esforço deliberado para pensar que a "teoria" exposta no podcast, num momento seu de fragilidade, havia influenciado seus pensamentos a ponto de imaginar que aquele animal teria de fato falado algo. Estaria condicionado àquilo, é óbvio, não poderia ser nada além disso. E agora ele evita olhar pra gata moribunda e sua visão encontra seu reflexo na televisão na parede oposta. O que Stanley passa a ver, então, é um suposto homem de supostos quase trinta anos de idade, cujo rosto avermelhado está rabiscado onde as lágrimas passaram (e basta esse relance pra que voltem a verter), a barba por fazer, o cabelo ralo no topo e comprido nas áreas periféricas que chega a cobrir parcialmente com uma mecha um dos olhos, e sua visão vai ficando mais turva à medida que se entrega ao choro. Mas a visão turva não impede que veja as formas. A forma naquele reflexo é enorme, ele conclui como se já não soubesse, e apesar de muito arredondada é mais estreita no topo, descendo molenga para uma base alargada, como sorvete num dia de verão, como um boneco de neve mal-feito. Sente no peito as lágrimas se misturarem ao suor causando uma coceirinha que seria engraçada se ele não estivesse agora no ápice de uma crise. A barriga cai por sobre a calça cujo elástico marca a pele, e esta doerá à noite quando ele estiver tentando dormir, e esse desconforto até o faria pensar em mudar de posição na cama se movimentar-se não fosse algo tão doloroso fisicamente quanto psicologicamente. E, pensando bem, Stanley nem consegue se lembrar com clareza de quando ficou daquele jeito. E aí a gata quase afogada numa poça de vômito abre bem os olhinhos verdes e diz pra ele algo como "sir, none of that matters".
"E o programa de hoje é sobre teorias da conspiração".
"Mas é disso que eu tô falando também, Walt".
"Eu não sei, não sei mesmo. Você trouxe uma notícia".
"Trouxe".
"Aí, pra complementar, você traz pra gente uma conclusão a que alguém chegou através dessa notícia".
"Que é uma mentira, vamo deixar claro".
Mas como não é possível que a gata, além de trazer uma mensagem de uma gangue alienígena, também leia seus pensamentos ou se compadeça de sua vergonhosa situação, porque, vamos lá, navalha de Occam e tudo o mais, Stanley tem certeza de que finalmente enlouqueceu, e que essa na verdade poderia até mesmo ser a melhor saída pra alguém cuja vida não vinha fazendo muito sentido.
"Mas essa conclusão não pode ser chamada de teoria da conspiração".
"Na verdade ela é sim uma…", Formiga não consegue finalizar.
"Se cada conclusão idiota que qualquer animal por aí tirar de qualquer manchetezinha for tida por gente como nós, da comunicação, somos profissionais eu e você, de comunicação, e se cada conclusão, cada vez que alguém entender algo que não esteja, assim, explícito na notícia, nós chamarmos de teoria da conspiração, meu amigo, a gente vive num grande hospício então, porque todo mundo que supõe algo é automaticamente um maluco".
"O que eu tô tentando dizer aqui, é…".
"E você não nos faz nem mesmo o singelo favor de dizer quem está teorizando isso tudo, da mensagem alienígena, o que apenas reforça o que eu estou dizendo. A gente, nós cinco aqui do estúdio mais a diretora, querido ouvinte, a gente fez uma reunião de duas horas e meia antes de entrar ao vivo aqui", a essa altura, a voz de Walt ribomba no microfone e chega estourada e distorcida às caixas de som, que vibram sobre a escrivaninha. "A gente ficou reunido, combinando, definindo como ia ser o programa, e a gente delimitou bonitinho o que é uma Teoria da Conspiração, por assim dizer, mas sem adiantar as falas de cada um pra que nós mesmos, incluindo o Formiga aqui que agora me olha com essa cara de palhaço, pra que a gente não perdesse esse tom de surpresa quando ouvisse a teoria trazida pelo colega. Mas aí o bonitão aqui traz uma notícia e uma conclusão imbecil que nós nem sabemos de onde veio", Walt finaliza sua fala sem fraquejar por um instante sequer, apenas subindo o tom, nunca vacilando, com a gravidade da fala de um pai.
Por desencargo de consciência, Stanley novamente saca do bolso da calça o celular e aponta a câmera praquela indizível coisa outrora felina. Nada. Ele ensaia um grito de ordem pra que a gata volte a falar, essa desgraçada, o que poderia ser ainda mais vergonhoso, então espera. Nada.
"Você nem me deixou citar as fontes", diz Formiga, entomicamente.
Walt decide seguir em frente. "Tim, o que você trouxe?"
"Bom…", um breve silêncio. "Bom, o pessoal tem falado por aí de uma teoria de que na verdade todo biomédico é na verdade um coprófilo".
*
O ruído da fechadura da porta da frente, a duas paredes dali, não foi de forma alguma um alívio para Stanley. Oliver havia chegado em casa. Passos leves de criança esguia. Algo que o menino fazia religiosamente ao chegar era ir até Stanley, com ou sem motivo.
"Oi!", a voz pré-pubertária invadiu o cômodo, no que Oliver parou e fixou o olhar em Stanley após brevíssima varredura pela escrivaninha, chegando à parede oposta, onde o irmão mais velho mantinha-se encostado, as pernas pra frente, descamisado.
Stanley percebeu que de onde o caçula estava não era possível ver a gata, menos mal, mesmo que seu próprio estado não fosse algo que causasse orgulho.
"Abaixa o volume do computador".
Oliver obedeceu prontamente, dando alguns passos adiante e emudecendo a discussão. Dali certamente ele deveria estar enxergando a gata se direcionasse o olhar pra baixo, Stanley supôs, mas Oliver preferiu olhar para o teto, talvez evitando envergonhar ainda mais o irmão, possivelmente sentindo cheiro de merda e vômito e quem sabe pensando que tais odores vinham do próprio Stanley.
"Sabe", disse Oliver, "você nem me deu dinheiro antes de eu sair. Eu não entendi nada pra falar a verdade".
?
A Voz o despertou de um sono de tempo indeterminado. Era ainda mais suave agora do que antes, porém firme, uma Voz que orientava. Tiziu se lembrava perfeitamente de como fora parar ali; do cemitério, da nuvem de luz azul que os envolveu a todos e cuja Voz os instruiu a não temer. Não temia, mas não podia deixar de olhar para todos os lados, buscando compreender qualquer coisa. Um agradável torpor vestigial da soneca induzida ainda lhe pesava as pálpebras. Tudo parecia tão branco, alvura apenas, e mais nada ao redor. Nem mesmo os outros gatos e muito menos a fonte da Voz. Buscou olhar para suas patas negras, que contrastavam com o que deveria ser o chão e nada parecia ser além de uma luz que o sustentava no ar. Sacudiu a cabeça, concentrou-se em focar o olhar nas patas dianteiras, que de quatro se fundiram em duas, finalmente. Quisera ele que a morte proporcionasse aquele formigar gostosinho. Possivelmente efeito de estar flutuando sobre e sob uma luz cegante e densa. Pegou-se pensando na própria morte e na constatação de que estava vivo. A Voz voltou a falar-lhe.
A Voz disse que eles eram muito bem-vindos ali. A Voz desculpou-se pelo inconveniente com a justificativa de que, dadas as experiências prévias, nada poderia funcionar tão bem quanto uma convocação surpresa. Reforçou o pedido para que não temessem, porque tudo ficaria bem como nunca antes.
A Voz disse que aquilo se tratava de um presente concedido por ela aos convidados.
A Voz alertou que aqueles indivíduos haviam passado por um procedimento longo e complexo para que pudessem compreender por inteiro a mensagem que estavam prestes a receber e que teriam a responsabilidade e/ou o privilégio de levar adiante e, com isso, passariam a ter consciência de fatos e subjetividades nunca antes reveladas à sua espécie, e que isso poderia acarretar inicialmente em pensamentos sobre si mesmos em formatos que eram até então desconhecidos, mas que eles poderiam chamar de palavras. Eles passariam a pensar em palavras. E algumas dessas palavras teriam um correspondente no mundo concreto; outras, não.
A Voz também os alertou para o fato de que sintomas e sequelas desagradáveis poderiam surgir em maior ou menor intensidade, mas que, ora, não era culpa dela, e que o bem maior justificava um ou outro imprevisto.
A Voz reforçou que não deveriam ter medo — no exato instante em que Tiziu voltou a desejar sua aconchegante caminha sob o sol no quintal de casa.
A Voz disse que eles teriam novas experiências sensoriais e conscienciais em virtude de sua missão. Tiziu quis se comunicar, mas sua garganta ardia e só então reparou no calor que lhe banhava o corpo, e que esse calor ia e vinha alternando-se com um frio que lhe machucava os ossos. A Voz prometeu que muito em breve eles aprenderiam a transformar as tais palavras em sons significativos para quem realmente interessava naquela história toda, por mais que pudesse doer um pouquinho. A Voz murchou ao falar "realmente" e "doer".
A Voz lentamente tomou forma. Conforme a atmosfera se condensava, sombras longilíneas se aproximavam de Tiziu, que mexia as patas como se estivesse num lago, quase que uma resposta ao fato das sombras agora terem pernas imageticamente distintas no contraste de luz e sombras, pernas essas que não se moviam ao longo do que parecia ser um longuíssimo corredor intensamente iluminado, com as três sombras compridas flutuando em graça e solenidade em sua direção, dissipando o ar quase pastoso em derredor, galgando níveis alucinantes de nitidez conforme cresciam e se aproximavam, as três formas, nítidas e incomodamente oblongas. O movimento das patas de Tiziu o fez girar em torno do próprio eixo, e quando completou uma volta as luzes se apagaram e ele caiu de quatro num chão rígido e real que exigiria todo um novo esforço para se acostumar. As luzes voltaram. Quando as retinas se acomodaram novamente, Tiziu deu um salto pra trás num só impulso, tamanho o susto. De repente as distantes figuras estavam diante dele e, mesmo se afastando, o rabo-espanador mais espichado do que nunca, ainda foi preciso erguer bem a cabeça para enxergar o topo das criaturas. Esse movimento fez a garganta arranhar conforme esticou o pescoço.
A Voz, então, tinha uma forma e esta era perturbadoramente parecida com Tiziu, com os outros gatos que estavam no cemitério, com as gatas com as quais ele havia cruzado primorosamente antes de ser sugado por um turbilhão de luz azul numa madrugada que deveria ser apenas mais uma excelente madrugada, boemiamente falando; a Voz se parecia com, basicamente, todos os gatos do mundo, com exceção de alguns detalhes ínfimos e basilares como o bipedalismo, os membros superiores quase arrastando no chão, o pêlo em todo o corpo refletindo espectros de luz que Tiziu jamais imaginara existirem, com uma linha escarlate que saía do topo da cabeça, passava por baixo dos olhos e descia para os ombros, além das guelras na altura do peito e de patas de três dedos unidos por uma membrana. Tiziu não pôde deixar de reparar que, ao redor da cabeça das três criaturas, uma aura amarelo-alaranjada pulsava suavemente.
A Voz parecia ser emitida simultaneamente pelas três criaturas. No entanto, o que Tiziu ouvia agora fazia a voz anterior parecer uma gravação mil vezes ensaiada. A assertividade suave que o mantivera relativamente tranquilo até então sumira por completo. A Voz era insegura, frágil.
A Voz se desculpou novamente por todo o inconveniente. Expôs que esperava que Tiziu tivesse compreendido bem a introdução. Disse que em até duas semanas as sequelas do procedimento pelo qual ele e os demais passaram deveriam estar neutralizadas, entenda-se, sem causar mais dores ou enjoos, que até deveriam ocorrer em profusão, mas vá lá, valeria a pena. Admitiu que algumas vidas seriam perdidas. As bocas da Voz não se mexiam.
A Voz disse que devia explicações. Tiziu concordou, arqueado, o rabo eriçado.
A Voz pediu que se acalmasse. Instruiu a não temer.
A Voz o lembrou que não havia pra onde fugir. Tiziu concordou, sentando-se.
A Voz disse que a humanidade havia se enrolado em nós impossíveis de desatar pelas próprias mãos. Disse que esperava que a analogia com um novelo de lã facilitasse a compreensão por parte de Tiziu.
A Voz disse que a humanidade estava indo na direção errada, disse que as pessoas não conseguiam conectar os pontos que realmente importam. Tiziu perguntou-se o que raios ele tinha a ver com isso. Ele e os outros.
A Voz respondeu ao pensamento dizendo que essa seria a última tentativa de sua parte. Disse que outros indivíduos como Tiziu já estavam fazendo suas contribuições nos últimos dias ao redor de todo o mundo.
A Voz admitiu que nem tudo vinha saindo como previsto, mas que não havia mais volta; suplicou que Tiziu compreendesse que ela agia com toda a boa intenção, mas que expressar isso não era assim tão fácil, então era preciso se certificar o tempo todo de que ele realmente estava entendendo o que estava acontecendo.
A Voz mencionou problemas de incompatibilidade comunicacional.
A Voz também disse que vinha tentando, nos últimos milênios, fazer contato com todas as civilizações humanas, sem jamais ser de fato compreendida. Disse que esperou longamente que o nó fosse desatado sem intervenção; e que, se comunicação não era seu forte, o desatamento de nós civilizatórios, ah, sim, isso sim.
A Voz explicou que gostaria que houvesse mais tempo para ensiná-lo a usar sua novíssima consciência, mas que era muito complicado lidar com mudanças de planos em escalas interestelares, e que desejava mesmo poder ler na cabecinha de Tiziu que ele compreendia isso sem ficar com raiva ou coisa do tipo.
A Voz respondeu, no momento em que outra dúvida começava a surgir, que o favorzinho previamente mencionado se referia a uma mensagem a ser entregue pela Voz através dos gatos de todo o mundo. Pirâmides não funcionavam, sinais de rádio ainda não tinham eficácia comprovada, e abduções humanas só serviam pra que fossem ridicularizados os indivíduos convocados e que, aparentemente por puro azar operacional, os tais indivíduos nunca eram pessoas em que as outras depositavam muita confiança. Credibilidade zero. Disse que pela convergência evolutiva que de certa forma unia uma espécie à outra, poderia haver ali um canal de comunicação facilitada entre ela (a Voz) e eles (os humanos).
A Voz finalmente explicou que a mensagem a ser entregue era, em termos gerais, a seguinte: era preciso avisar e alertar os seres humanos que novos mestres tomariam o planeta Terra para reformá-lo. Que as pessoas precisavam pensar numa casa caindo aos pedaços, numa carreira sem rumo, nas suas angústias e aflições, em seus maiores problemas e também os mais diminutos, que todos eles seriam definitivamente resolvidos. Que nem mesmo as esperanças e planos deveriam continuar sendo levados em consideração porque não seriam mais úteis. E que era preciso apenas confiar. Que eles seriam alertados sobre o que iria acontecer e que, em breve, seus novos mestres mostrariam como.
A Voz explicou que esperava ser muito mais palatável para a humanidade receber as primeiras partes de uma realidade absurda e completamente diferente a partir de algo que ela já conhecia, neste caso, os gatos e que, dada a conjuntura da coisa toda, por mais imbecil que a ideia parecesse, essa seria a última tentativa da Voz de dar novo rumo ao que está perdido, curar o que está doente, secar as lágrimas dos que choram, dar paz a todo e qualquer coração, infinitesimal ou paquidérmico, a paz que reina em todo o Universo mas que por uma série de trilhões de eventos inoportunos ao longo dos últimos quatro bilhões de anos, não conseguia fazer morada no que a Voz chamou de esse planetinha desgraçado num tom instantaneamente arrependido.
A Voz disse que cuidaria de seus donos, ao que Tiziu ouviu atentamente. A Voz disse que essa mesma promessa podia ser feita a todos. Todos. Todos aqueles que aceitassem a mensagem, é claro.
Tiziu se perguntou como conseguiria, na prática, transmitir a mensagem se jamais havia emitido, como a Voz chamou, uma palavra. A Voz respondeu que ele saberia quando a hora chegasse. A Voz disse que esperava de coração que nada saísse muito do controle antes que toda a história estivesse corrigida e resolvida.
Tiziu se perguntou se aquele era mesmo o melhor caminho, se as pessoas acreditariam em gatos falantes. A Voz admitiu quase que em tom de deboche extragaláctico que isso era o que tinha pra hoje, disse que este seria um contato inicial, que as pessoas só precisavam ir se acostumando à ideia de que nada, jamais, seria como antes. Que maiores e mais profundas exortações seriam feitas à medida que as pessoas estivessem declaradamente prontas para conhecer a face de seus novos mestres. Disse que o ser humano, pra falar a verdade, era a única espécie que eles previam que desse um certo trabalho na hora de tomar a Terra e fazer com ela o que deveria ter sido feito há milênios.
Tiziu se perguntou se viveria para ver a nova Terra.
A Voz não respondeu.
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