2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: MARCELLO SALVAGGIO — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros

- 10 de jul.
- 7 min de leitura
Atualizado: 11 de jul.

SOBRE O AUTOR
Marcello Salvaggio é tradutor, roteirista e escritor bilíngue.
Venceu o prêmio Wattys italiano no ano de 2020, com a obra “Umiliati ed Esaltati”, na categoria romance histórico, e também em 2021, com “Il Verme del Sangue”, na categoria romance de fantasia. O primeiro livro já foi publicado pela editora italiana Youcanprint e traduzido para o português com o título “Humilhados e Exaltados”, enquanto o segundo será publicado este ano, também na Itália, pela editora Delos.
Mantém um blog (https://palavraseespadas.blogspot.com/), é cocriador do universo da Trissência, junto com Valerio Oddir Jr, e atualmente centra sua atividade criativa na escrita de roteiros audiovisuais e romances históricos e obras de terror e fantasia sombria.
O CONTO SEMIFINALISTA
A CIDADE FERA
I
Não se podia dizer que Jaguaranho fosse um sujeito conhecido, não senhor. Era mais uma lenda que rodava de boca em boca, e nem todo mundo gostava de falar dele alto demais, como se só de mencionar pudesse trazer coisa ruim.
Já fazia um bocado de ano que ele não vivia na cidade. Morava só, num canto esquecido do mato, numa casa que ele mesmo tinha erguido. Aparecia só de vez em quando. Era mesmo raro, mas quem via sabia logo: passava ligeiro, com a cabeça baixa e o chapéu grande cobrindo a cara, feito sombra escorrendo pelos becos. Falava o mínimo – e quem escutasse um “obrigado” ou um “pois não”, podia dar-se por satisfeito – antes de sumir de novo, de volta pras bandas de onde tinha vindo.
Família? Ninguém sabia se tinha ou se já tinha tido. O que sabiam era que tinha sido jagunço, daqueles de fazer serviço bruto pro coronel Berreiro. Falavam das suas proezas como quem contava caso de assombração. Igual da vez que havia arrancado as tripas do coronel Lopes e enrolado elas na cabeça do defunto, ninguém sabendo dizer que fim tinha levado o coração até acharem um jogado no matagal, todo mastigado. Jaguaranho depois tinha dito que o havia entregue ao seu Cão Bravo, que não era cachorro não. Era um lobo fugido de um zoológico, dado de presente pelo patrão. Viveram juntos bem uns dez anos, o fim de Cão Bravo se dando no mesmo ano da morte do chefe, e nisso Jaguaranho deixando a alcateia dos Berreiro. Não ia se rebaixar servindo seus filhos mauricinhos, que tinham voltado da capital cheios de estudo, mas sem saber nada da terra que queriam explorar. Inclusive, bastou um deles se lançar candidato à prefeitura pra se dar o que ninguém esperava: Jaguaranho reapareceu no centro da cidade, mas dessa vez de cabeça erguida. Subiu no coreto da praça, de cara fechada, e sem mais nem menos se lançou como candidato de oposição.
Jaguaranho era um cabra alto, tinha quase dois metros, coisa rara naqueles derredores. Sua pele esturricada parecia casca de macaxeira e seus olhos de fundo amarelado ainda eram os de um matuto matador.
– Essa cidade tá adoecida – falava rouco, baixo, porém de algum jeito sua voz ecoava longe. – O sangue bom virou pus, apodreceu e tá enfraquecendo a terra. Só que tem solução. – Não tinha fanfarra nem foguetório. Apenas ele de pé, encarando o que começou com meia dúzia de curioso, mas que logo virou um bando, gente de toda parte. – Uma purificação vai vir por aí. Com o sangue certo, com sangue forte, a cidade vai voltar a viver.
O povo se entreolhava, meio assustado, meio intrigado. Uns pareciam hipnotizados, era como se Jaguaranho tivesse dito algo que todo mundo sentia, mas que ninguém tinha coragem de botar pra fora. Ele falava de um jeito enigmático, mas que o povo entendia por dentro, como quem desencava verdade enterrada. Os olhares foram se desviando cada vez menos dele.
– Vocês sabem do que eu tô falando – continuou. – Todo mundo sabe. Tem coisa errada e não dá pra continuar como tá, desse jeito não tem futuro!
Por mais vagas que fossem, as palavras dele tinham peso. Ficavam no ar, pousadas que nem poeira depois de muito tempo. As promessas de limpeza, de livrar a cidade do sangue podre, plantavam ideias difíceis de esquecer. E quanto mais ele falava, mais gente chegava, cautelosa, mas curiosa, querendo saber adonde aquilo tudo ia dar.
Terminado o discurso, desceu do coreto sem mais conversa. Sem sorriso, sem aperto de mão, e foi embora pra casa.
Era diferente da politicaiada vagabunda de costume. Não pegava criança nos braços pra beijar igual o Dudu Berreiro, que queria ser herdeiro do pai grande. Não estava ali pra agradar, mas pra fazer. Pra agir e mudar.
Nos dias que vieram, a notícia da candidatura de Jaguaranho tomou conta das rodas de conversa. O espanto virava animação, e os boatos fervilhavam. Reviveram histórias antigas. Uns diziam que ele tinha uma cicatriz enorme no peito, que por isso vivia de camisa fechada, por conta da peixeira de outro jagunço que quase tinha ceifado a vida dele anos atrás. Outros juravam que, na verdade, eram cicatrizes de garras de bicho, que já tinham visto ele lutando com onça pra arrancar o couro, ou depenando um carcará que tinha tido a ousadia de, numa noite de queimada, pousar na cerca dele, e nisso ele havia se machucado um pouco.
Também tinha quem dizia que ele mesmo teria aberto em si aquela cicatriz, por raiva dos seus pecados. Era um homem de fé afinal, tanto que tinha uma cruz em cima da sua morada e, se já tinha machucado muito cristão, nada mais justo do que promover uma compensação aos olhos de Deus, derramando um pouco do seu sangue na terra. Sangue esse que agora oferecia pra purificar a comunidade, inconformado com a pobreza, com a corrupção, com a exploração do homem pelo homem.
II
Seu Antero era um homem de pele curtida e mãos calejadas de tanto manejar a enxada debaixo do Sol. Era conhecido na redondeza pela coragem e pelo ceticismo, sempre de pé no chão, pois desconfiava das lendas que o povo contava.
Vinham passando de boca em boca, nas feiras e nas casas de farinha, cochichos que diziam que uma criatura – o Bicho – arrodeava as terras dos agricultores. Alguns vizinhos de seu Antero começaram a reclamar de uivos, gemidos, como se uma coisa grande e feroz estivesse cercando as matas em volta das plantações.
O lavrador achava que era só invencionice, coisa de gente sem ter o que fazer. Mas, nas noites seguintes, os barulhos estranhos e os vultos foram incrementando a aparência, e até mesmo ele escutou aqueles sons, meio gemidos, meio rugidos, que vinham de longe, das quebradas do mato.
Tentou não dar importância, mas certa feita, o cansaço já pesando nos ombros, já quase se ajeitando pra dormir, um uivo agudo fez o sangue gelar nas veias. Era de perto, muito perto, parecia vindo do quintal. Um calafrio lhe subiu do espinhaço até a nuca. Espiou pela janela, mas só deu de cara com o breu. Como bom cabra teimoso que era, não ia se render por causa d’um grito no escuro. Pegou a velha espingarda, que já conhecia mais batalha que muita gente naquelas bandas, e saiu firme, decidido a ver se se passava alguma coisa no galinheiro.
Só que chegando no terreiro, parou de supetão, o coração martelando que nem fera partindo pra cima de jaula. Dois pontos de luz encaravam ele do escuro, faiscando num brilho amarelado, quase doentio.
Eram os olhos. Grandes, fixos, cheios de vida, mas de uma vida que não parecia ser criação de Deus. Antero nunca tinha visto nada igual e congelou. Aqueles olhos atravessaram a alma dele, famintos, carregados de uma maldade que nem sabia que existia.
Tentou levantar a espingarda, mas as mãos tremiam, coisa que nunca havia acontecido com ele. Nunca antes tinha sentido um tremor daqueles. Então, num piscar, os olhos sumiram, e ele ouviu passos pesados arrastando no chão, levando o Bicho de volta pro meio do mato.
Na manhã seguinte, o Sol mal tinha subido e Antero acordou decidido a investigar aquilo. Não era homem de deixar mistério pra depois. Chamou o compadre Jão, um sujeito fornido, do tipo que se podia contar em qualquer enrascada, bigodão grisalho, cara angulosa e jeito de quem já encarou mais bicho e briga do que podia contar. Era amigo do tempo que sentiam como amizade a peitada e o empurrão no bar, ainda mais quando um sacava a peixeira pelo outro. Foram juntos até o lugar onde o Bicho tinha aparecido.
No chão seco, encontraram marcas estranhas – de garras compridas, fundas na terra. Não eram como as de nenhum outro bicho que Jão ou Antero já tivessem avistado.
– Isso aqui, seu Antero, não é de cachorro nem de onça – disse Jão, coçando o queixo e franzindo o cenho. – É coisa que Deus não botou no mundo não.
E as marcas de garras não foram a única coisa que Antero achou. Tinha um rastro, como se algo tivesse sido arrastado dali pro mato. Seguindo esse rastro, chegaram em uma clareira. Por ali, o chão tava todo pisoteado, a terra revirada como se uma tropa tivesse passado. Mas o que mais intrigou os dois foi um cheiro forte, azedo, um fedor que parecia mistura de bicho morto com podridão antiga, daquelas que grudam no nariz e não largam.
Os cabelos de Antero e os pelos dos braços dele se arrepiaram todos.
Os dias foram passando e cada vez mais pessoas falavam do Bichão, jurando terem visto uma sombra sinistra passar pelos roçados. Alguns chegaram a abandonar suas casas e a irem pra cidade. Outros juravam de pés juntos terem perdido animais. Várias galinhas e bodes sumidos eram achados dias depois, com as penas espalhadas e as carcaças secas, como se o Bicho sugasse toda a vida delas.
Antero passou a trancar o galinheiro cedo, muito antes do Sol se esconder. Não deixava mais a casa à noite, nem pra dar uma espiada no terreiro. Dona Lavininha, a vizinha do lado, que só se saía de casa de espingarda em punho, não perdeu a chance de comentar:
– Eita, seu Antero, que tá com medinho agora, né? Logo o senhor, que era o cabra mais destemido por essas bandas, resolveu criar medo!
Apesar da fama, ficava calado e só dava de ombros. Não precisava desmentir nem confirmar nada. Não tinha vergonha. Sabia que aquelas marcas na terra e aqueles olhos na escuridão não eram invenção de mente cansada nem coisa de lenda – ele tinha visto. Tava sem sono e sóbrio. Não tinha tomado nem um gole de cachaça. E sabia também que, enquanto o Bicho estivesse por ali rondando, a paz ia ser coisa rara.
(...) O autor não autorizou a publicação do conto na íntegra.




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