2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: MAURO BANDEIRA DE MELLO — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros
- 12 de jul.
- 16 min de leitura

SOBRE O AUTOR
Advogado, servidor público especialista em processo legislativo, Mauro Bandeira de Mello nasceu no Rio de Janeiro, em 1962. Em 2020, durante a pandemia da Covid-19, começou a escrever crônicas e não parou.
Hoje, são mais de 300 - em parte, publicadas nos livros "Viagens Instantâneas" (2021), Ventania Editorial, "À Meia Luz" (2023), Editora Viseu, e "Entrementes - Conto e Crônicas" (2025), Editora Lux.
Douglas Lobo reside e trabalha em Fortaleza (CE).
O CONTO SEMIFINALISTA
O REVISOR, UM CONTO DE ERROS
Em 14/10/2023.
Paulo Rubens estava exausto. Passara o dia na sede da empresa para a qual revisaria os textos de um portfólio. Mas, afora a copeira, uma moça simpaticíssima, era torturante o contato que este jornalista aposentado mantinha com o pessoal da empresa. Sobretudo, com a sumidade que bolara o material a ser impresso e o evento de final de ano. Pobres, apenas os textos. Da gramatura do papel escolhido até o local e o bufê contratado para recepcionar duas centenas de convidados, tudo exalava dinheiro e desperdício, menos, obviamente, o quinhão ou “quinhinho” que lhe caberia.
Abriu a porta de casa e deixou-se afundar no sofá, recebendo o habitual carinho de Gigli. Esticou as pernas e apoiou os pés na mesa de centro, com cuidado para não chutar nenhum dos quatro cinzeiros, impecavelmente limpos, nem uma pilha de livros. Paulo Rubens parara de fumar havia 10 anos, mas ainda tinha muitos amigos que mantinham o hábito. Os cinzeiros existiam para eles, que, para sua felicidade, frequentavam muito a casa.
Retomado o fôlego, pediu licença a Gigli, levantou-se e foi à cozinha. Era preciso preparar o jantar – o seu e o do companheiro. Experimentaria uma nova marca de lasanha congelada e uma ração especial para o amigo, com todos os ingredientes orgânicos. Pôs sua refeição no forno, a de Gigli na cumbuca, encheu um copo com gelo, derramou uma dose de uísque e foi tomar uma ducha. Minutos depois, com o copo vazio na mão, voltou à sala. Estava novamente em paz com a vida. Gigli abanava o rabo como que para lembrá-lo da lasanha no forno.
O que de ruim houvera naquele dia já havia passado e Paulo Rubens pôs-se a conferir as mensagens dos amigos e suas postagens na única rede social que aprendera a usar, a duras penas. Entre um gole e outro, soltava uma gargalhada, mas como não controlava tudo que surgia para ler, também se irritava. Melhor fechar aquele troço antes de a lasanha passar do ponto.
Gigli já havia rapado todos os pedaços da sua gororoba orgânica. Seu veterinário tinha sido enfático quanto a não lhe servir a mesma comida – no caso, naquele dia, a lasanha. Gigli, uma mistura de vira-lata com vira-lata, seria muito mais saudável se não tivesse o mesmo hábito alimentar do dono. Álcool, nem pensar.
A massa estava bastante razoável. Paulo Rubens pôs o prato na pia e voltou para a sala, onde seu computador o aguardava. Retomaria o texto que estava escrevendo, perderia mais tempo na rede social ou se aventuraria para escolher um filme ou uma série na TV? Nada disso, o telefone tocou. Era Vânia, uma amiga jornalista com quem ele não falava havia muito tempo, desde que ela se mudara para Portugal. Vânia tinha chegado à Cidade na véspera e estava organizando um encontro com os amigos.
– Rubens, você pode na segunda-feira? Todos podem.
Aposentado como os outros, ele confirmou sua presença no botequim onde costumavam se encontrar em Copacabana. Disse que convidaria Eduardo, que se juntara ao grupo mais recentemente. Sr. Joaquim, o dono da Taberna, reservou as melhores mesas para aquela turma de jornalistas que, não raramente, bebia demais, falava demais e espantava parte da freguesia. Mas também eram seus amigos.
Como Paulo Rubens teria um programa especial na segunda-feira, decidiu não comprometer demais o fígado no final de semana. “Amanhã, é sábado, depois de amanhã, é domingo”, pensou e se lembrou do Dia da Criação de Vinícius de Moraes. O Botafogo jogaria no sábado. Inexplicavelmente, liderava o campeonato com dez pontos de vantagem para o segundo colocado, mas ele conhecia o Botafogo, não deveria se animar muito. De todo modo, depois do sábado, viria o domingo, dia de secar o Flamengo e o Fluminense. O Vasco, coitado… Não se chuta cachorro nenhum, vivo ou morto, pensou, e adaptou o que imaginava: “Não se chuta bacalhau morto”.
O REENCONTRO
A segunda-feira chegou, a do reencontro de Vânia com os colegas sobreviventes no Brasil. Paulo Rubens decidiu não ir ao Centro, à empresa onde tinha conseguido seu último bico. Não correria o risco de se contaminar com todas aquelas celebridades, com aqueles maus “influenciadores”, donos de uma cultura inversamente proporcional às suas contas bancárias. Eram inacreditavelmente milionários. Pediu que mandassem o material para revisar, ou melhor, para reescrever, por e-mail, alegando que amanhecera com dor de garganta. Qualquer sinal de gripe era uma razão mais do que bem aceita para livrá-lo de pisar naquele ambiente insípido, incolor e inodoro.
Depois de passear com Gigli, tomou na padaria o café com dois pães na chapa. Subiu, pôs a roupa suja na máquina de lavar e cumpriu o restante da sua rotina diária até quando, finalmente, chegou a hora dos amigos. Despediu-se de Gigli e desceu para pegar um táxi rumo à Taberna. O companheiro, pressentindo a solidão, já estava cabisbaixo embaixo da mesa.
Quando chegou ao seu destino, todos já estavam lá, na mesa reservada pelo Sr. Joaquim, a quem ele cumprimentou na entrada. Havia 11 rostos para lá de conhecidos, e mais um, o de Vânia. Paulo Rubens não se lembrava de que era tão bonita. Ele sempre dizia que essa coisa de melhor idade era sacanagem, mas talvez seus olhos estivessem diante de uma bela exceção. Deu um abraço afetuoso na amiga dos seus melhores tempos e saiu distribuindo beijos em bochechas e carecas à volta da mesa.
Quando já ia se sentar, ouviu um grito.
– Não!
Sem entender, Paulo Rubens parou.
– 13 à mesa, não!
Sr. Joaquim se mantinha fiel à crença da sua mãezinha que não permitia este número em mesa sua, nem que ela própria optasse por se levantar discretamente. Não, 13 à mesa, definitivamente, não, e a solução foi o velho português juntar-se aos seus clientes de uma vida inteira, deixando suas tarefas do balcão com Aguinaldo, o garçom principal.
Vânia resumiu sua vida em Lisboa, as duas viuvezes, os filhos e enteados espalhados pelo mundo e por que ficara tanto tempo sem vir ao Brasil. Mas acompanhava tudo pelos jornais. A reação do grupo foi imediata. “Jornais?! Não existem mais!” “Você não sente náuseas lendo O Planeta?” “Sabe quem é o atual editor-chefe?” “Chute quantos repórteres o Planeta tem hoje em dia.” “Você se lembra da Josefa do RH? Sabe com quem se casou?” “Aliás, não se fala mais RH. Agora, é Gestão de Pessoas!” “Gestão de Pessoas é o cacete!”
E aquele reencontro transcorreu como sempre, caótico. Milton, o mais hipocondríaco, começou a falar da sua última colonoscopia e ouviu o que imaginava que ouviria. Mário praguejou contra o seu saldo no banco. Perseu e Tônia divergiam aos berros sobre a Inteligência Artificial. Antônio Carlos reclamou da comida com Sr. Joaquim:
– Joaquim, sua mãe não te ensinou a fazer um cozido palatável?
Maria Luísa já estava bêbada e piscava o olho para Anselmo. A namorada de Jair, que sequer tinha um nome, se entediava e não largava o celular. Paulo Rubens falava da erudição das influenciadoras do escritório onde fazia um bico. Ricardo se deprimia e Vânia falava com todos ao mesmo tempo. Paulo Rubens notou que ela já tinha sido apresentada ao calouro do grupo, Eduardo. Falavam-se como se fossem íntimos. O menino só tinha 60 anos, mas, mesmo assim, gostava da companhia dos mais velhos.
O COMPLÔ
A turma já estava na Taberna havia quatro horas, mas os assuntos se multiplicavam, até que o menino Eduardo lançou uma ideia que calou a todos:
– O que acham de sabotarmos a edição do Planeta do próximo domingo?
E aquele grupo de velhos jornalistas, num espasmo de otimismo e idealismo, propiciado por doses generosas de cerveja, alternadas com copinhos de cachaça – e até de Aperol!, ergueram seus copos e gritaram: “Abaixo o Planeta de domingo! Chega de erros grosseiros de concordância verbal! Abaixo a monocultura e o compadrio editorial! Basta de mascarar os fatos! Pela extinção dos passaralhos!” Perseu complementou: “eu não sou uma pessoa jurídica!” “E eu não sou um blog!”, arrematou Tônia.
E aquela “quase redação” seguiu pela rua, rindo, tropeçando ali e acolá, ouvindo os protestos da vizinhança, mas firme no propósito esboçado. Para desferirem os múltiplos ataques que derrubariam a edição do jornal onde trabalharam e se conheceram, dividiram tarefas. O mais novinho e recém-sexagenário, por exemplo, se incumbiria de conversar com a empresa terceirizada que cuidava da segurança dos sistemas de informática. Paulo Rubens lembrou os amigos da origem da palavra sabotagem. Vinha de sabot, tamanco em francês que, colocado nas engrenagens das máquinas, as fazia parar. Eles colocariam seus tamancos nas engrenagens do Planeta!
TERÇA-FEIRA
Amigo de Eduardo, Márcio Pardal era o responsável da área de Tecnologia da Informação – TI para os íntimos -, inclusive, das reuniões virtuais do Planeta. Os dois acertaram que os doze jornalistas insurgentes teriam acesso remoto às reuniões de quarta, quinta e sexta-feira. Dessa forma, saberiam o que fazer para transformar a edição do domingo seguinte numa edição histórica, a ser estudada e também bastante comentada pela imprensa nacional, quiçá internacional.
E assim ocorreu. O grupo pôde se atualizar sobre o passo a passo das editorias e dos novos canais de comunicação interna. Ficaram por dentro das pautas sugeridas, de quem apuraria os fatos e escreveria as matérias. Todos ficaram impressionados com a falta de revisores. Mas o que mais surpreendeu os velhos jornalistas foi saber que as decisões que eram tomadas pelas chefias, ao final, eram submetidas a uma instância inusitada: a palavra final sobre como sairia o jornal, nos mínimos detalhes, cabia a um super computador, ou melhor, a um programa desenvolvido e chamado de PAI – Planet Artificial Intelligence.
Todos os dias, o PAI enviava a última versão do jornal para a Mega Impressora Rotativa localizada na Rua do Buloque. É ali que os jornais são impressos, cortados, dobrados e despachados para a distribuição. Por outro canal, a última versão do jornal era encaminhada pelo PAI para publicação nas mídias digitais, sempre, às cinco horas da manhã. Jair e Anselmo foram encarregados de acompanhar o fluxo desses dados.
QUARTA-FEIRA
Às quartas-feiras, por volta das 11 horas, além das reuniões virtuais diárias das editorias, para decisão das pautas futuras e avaliação das edições anteriores, havia uma reunião, também virtual, da diretoria das Organizações Planeta com os chefes das mídias do grupo: rádio, TV aberta, TV por assinatura, jornais e revistas digitais e, sabe-se lá por quanto tempo, jornal impresso. O objetivo era aprimorar a produção de conteúdo, que, uma vez produzido, poderia ser compartilhado por todos os canais.
Os herdeiros do Dr. Juvenal, Juvenal Henrique, Roberto Juvenal e Luís Juvenal, não falavam nada. A reunião era conduzida pelo CEO das Organizações, Aspásio Moreira. Não duravam mais que meia hora. Vânia acompanhou tudo.
No final do dia, havia uma série de reportagens prontas na prateleira. Antônio Carlos, do grupo de insurretos, estava de olho naquilo tudo e sabia o que tinha mais a cara de domingo. Mapearia a situação até sábado, quando a edição de domingo seria finalmente impressa.
Paralelamente, o canal com a agência que negociava a publicidade estava sendo monitorado. Os anúncios de domingo eram negociados até quarta-feira para, no dia seguinte, seguirem para o programa de diagramação que, a partir dos preços indicados, os distribuía pelas diversas seções e páginas do jornal.
Para os domingos, sabia-se de antemão que a primeira página publicitária estava negociada até o final do ano. Se o homem chegasse a Marte, o papa morresse ou o Botafogo fosse campeão nacional, não importaria, a primeira página seria do Supermercado Barateiro com suas principais ofertas.
QUINTA-FEIRA
O obituário era das poucas seções ainda não totalmente cobertas pelos programas e ferramentas de Inteligência Artificial. Todos os dias, a jornalista Erotildes de Aquino estava a postos para redigir o obituário, que sairia ao lado dos anúncios fúnebres pagos. Ela dispunha de um banco de dados sempre atualizado, para a eventualidade de um falecimento importante: chefes de Estado e de Governo, parlamentares, ministros da Suprema Corte, artistas nacionais e internacionais, jogadores de futebol, escritores de renome e, mais recentemente, influenciadores digitais. Enfim, homens e mulheres com destaque no globo.
Caberia a Milton, o hipocondríaco do grupo, ficar em cima, figuradamente, de Erotildes de Aquino. Se fosse preciso, ele promoveria intervenções escritas no obituário, com o auxílio de Márcio Pardal.
Ainda na quinta, Perseu, Maria Luísa, Ricardo e Mário telefonaram para seus grandes amigos e colunistas ainda em atividade no Planeta, respectivamente, Dorita, Hélio, Barreto e Chrysanthème. Nada lhes contaram da sabotagem, mas pediram que os quatro não mandassem seus artigos no dia seguinte, como fariam. Os quatro já eram substituídos em seus períodos de férias e, excepcionalmente, para dar lugar a alguma opinião oportuna aos interesses do jornal. Mas o objetivo para aquele domingo seria o de lançar quatro novos talentos que há muito aguardavam uma oportunidade. Colou!
SEXTA-FEIRA
Na sexta-feira, pela manhã, o grupo acompanhou a reunião de pauta do Planeta para o sábado. Os editores e os subeditores terceirizados participaram da reunião virtual com o editor-chefe. O jornal de sábado estava pronto e foi enviado para o PAI. À tarde, foi a vez de acertarem os detalhes para a edição de domingo, a maior da semana, em volume e também com uma variedade maior de matérias.
Em menos de uma hora, com tudo que tinha ido para a prateleira ao longo da semana, o grosso do jornal de domingo estava definido, com alguns espaços à disposição da turma de plantão, que, fisicamente, ficava em João Pessoa. Mas estes plantonistas só mexeriam se acontecesse alguma coisa muito importante. E também havia Erotildes de Aquino, esta, com carta branca para inserir o eventual falecimento das pessoas que constavam na Lista Amarela, o banco de dados dos futuros mortos, atualizado pelos estagiários às quartas. O PAI sempre faria qualquer ajuste necessário, como o aumento de páginas e até uma nova diagramação. A inteligência artificial do Planeta era capaz de diagramar uma edição de domingo em dois minutos.
Paulo Rubens recebeu o programa dessa última reunião e ficou encarregado de fazer uma ata “mais criativa” que seguiria para o PAI. A ata era a informação mais sensível e importante do PAI. Além do obituário, era o último resquício de humanidade naquela engrenagem de criação. Se não houvesse nenhuma reportagem pronta para uma pauta surpresa mencionada na ata, o próprio PAI as redigia.
Detalhe: por ordens superiores, com o objetivo de cumprir a meta financeira daquele mês, o pessoal que fazia a apuração das notícias e checava eventual inconsistência foi todo dispensado. O banco de horas 24 horas se encarregaria de debitar 48 horas das respectivas férias.
Da mesma forma, os últimos fotógrafos e ilustradores não terceirizados foram dispensados. Caberia a uma nova colaboradora-pessoa-jurídica (na realidade, Tônia, infiltrada) ocupar-se das fotos e ilustrações para o domingo. Ela tinha acesso ao banco de imagens do Planeta.
SEXTA-FEIRA À NOITE
Na sexta à noite, antes do dia D, já que o jornal de domingo saía no final da tarde de sábado, o grupo se reuniu novamente. Chegaram sóbrios e céticos à Taberna. Que maluquice era aquela?! Mas o que não faltava ali era compromisso e lealdade. Todos fizeram o que tinha sido combinado, o dever de casa, prestando contas aos colegas das tarefas e dos contatos feitos com os colaboradores do Planeta.
A estratégia adotada, de uma simplicidade genial, não falharia e resolveram brindar, imaginando a cara da trinca de donos do jornal e, sobretudo, a dos puxa-sacos e maiorais do Planeta. “Alea jacta est!”
Alguns copos mais tarde, Antônio Carlos sugeriu o que, por si só, teria bastado para derrubarem o Planeta:
– O jornal de domingo já deve estar quase pronto, mas ainda dá para produzir uma notícia relâmpago do plantão!
A essa altura, o presidente-diretor-geral-editor-chefe já tinha ido para Itaipava; o CEO, para Búzios e os três irmãos Juvenal para Angra. “Ninguém vai notar”, disse. E assim foi feito, a partir da ideia de última hora de Antônio Carlos, Ricardo ligou para Erotildes para soltar uma bomba e Pardal cuidou de acompanhar a operacionalização daquela última notícia.
Só eles e o PAI conheciam a versão final da edição de domingo, que seria rodada e distribuída no dia seguinte.
SÁBADO
“Hoje é sábado, amanhã é domingo”. Paulo Rubens não tirava o Dia da Criação da cabeça. A rigor, para ele e seus amigos, o domingo chegaria no final da tarde de sábado. Naquela hora, o jornal de domingo já estava sendo impresso, cortado e dobrado. Dali a mais um pouco, seguiria para a distribuição na capital e no interior, com entregas garantidas para Itaipava, Búzios e Angra dos Reis, onde estariam nas portas dos maiorais do Planeta antes da hora do café de domingo.
O suspense era quase insuportável para os doze jornalistas, em especial para Marcio Pardal, o amigo de Eduardo que mexeu os pauzinhos da informática. Quanto à namorada de Jair, continuava no celular, alheia a tudo que tinha sido tramado diante dela. Ricardo trocou a depressão habitual por uma ansiedade forte. Lançaria mão da última cartela de Rivotril. Falaram-se por telefone e combinaram que só leriam o jornal de domingo no domingo pela manhã. Depois, seguiriam para o almoço na Taberna, onde Sr. Joaquim lhes serviria um bacalhau de verdade.
EXTRA, EXTRA! PLANETA, EDIÇÃO DE DOMINGO
Paulo Rubens acordou cedo, mas não se levantou. Gigli continuava dormindo ao seu lado, até que o barulho da edição de domingo contra a porta o despertou. Sair correndo para conferir aquela edição histórica? Não! Primeiro, ele foi à cozinha, preparou o café, colocou dois pãezinhos no forno, tirou a manteiga da geladeira, queijo, geleia e pôs a mesa da sala como não via há quase dois meses. Assim teria feito a sua companheira de 50 anos. Uma mesa bonita, não importava a ocasião.
Mesa posta, Paulo Rubens abriu a porta. Lá estava o Planeta sobre o tapete do corredor. Ele se abaixava para pegá-lo, quando o telefone tocou. Em poucos segundos fez as duas coisas: jogou o jornal sobre a mesa e atendeu a ligação. Era Ricardo, ansioso.
-Você viu?!
– Ricardo, nós nos falamos mais tarde. Ainda não!
– Com…?
E Paulo Rubens nem deixou o amigo completar o que queria dizer. Pegou os óculos, sentou-se e serviu-se de café. Ainda não estava inteiramente habituado ao café sem açúcar, mas até que não era mau. E lá estava a primeira página do Planeta diante dos seus olhos.
Em letras garrafais: “ANIVERSÁRIO DO BARATEIRO! Promoções da semana. Patinho; Desinfetante Pinho Bril; Leite achocolatado Dores do Indaiá; Sabão Neutral Pastoso; Drumete de frango; Guaraná Friburgo; Conhaque de Alcatrão de São Pedro da Aldeia; Sidra Eliezer; Arroz Tio Juquinha; Canjiquinha da Maroca; e muito mais produtos. Mas o leitor desatento a esse tipo de primeira página não notou que os preços dos produtos tinham recuado uma casa decimal – o que certamente daria uma baita confusão.
Mas o melhor viria a seguir. Paulo Rubens virou a página do Barateiro e, finalmente, mergulhou no “verdadeiro” mundo das notícias e das opiniões do Planeta. Na primeira página de verdade, que passou a ser a três, em letras garrafais, estava a manchete do plantão de Erotildes. Ela não pestanejou em dar uma notícia para lá de esperada e, com o acervo enorme de material que havia, tomou conta da página inteira:
“MORRE, AOS 110 ANOS, O EX-PRESIDENTE JESSÉ SARMENTO. E o texto de apoio: Ex-vereador, ex-deputado, ex-senador, ex-prefeito, ex-governador, ex-líder do Governo, ex-presidente do Partido Maioral, ex-ministro, ex-presidente e imortal até ontem à noite. Sarmento sentiu-se mal após fazer seus exercícios diários.”
“O corpo do ex-presidente será transportado para Brasília e será velado no saguão do Palácio do Planalto”. Etc, etc, etc, etc, com chamadas para diversas páginas no miolo do jornal, nas quais estavam publicados depoimentos de diversas autoridades, que, pelo horário, foram feitos por suas assessorias de imprensa, inclusive, com a declaração de decretação de luto oficial de três dias pelos chefes dos três poderes da República. A cobertura do Planeta seria completa e, a essa altura, as outras mídias das Organizações Planeta colocavam no ar flashes da notícia daquela primeira página com imagens e áudios de arquivo.
Paulo Rubens ligou a TV e sintonizou na PlanetNews. “Morre, aos 110 anos, o ex-Presidente Jessé Sarmento. Você acompanhará a cobertura completa aqui na PlanetNews.” “Diretamente dos nossos estúdios em Brasília, os jornalistas Nelson Galarotti e Vanusa Sales”!
Paulo Rubens virou a “primeira” página e nem se deteve muito na seguinte (na verdade, a quatro, por conta do Barateiro), onde um artigo autêntico do presidente-diretor-geral-editor-chefe ocupava todas as colunas e foi impresso sem passar pelo seu copidesque pessoal e contendo diversas observações do tipo: “veja lá qual é a capital da Colômbia e complete”; “capricha nos adjetivos, esculhamba”; “pensa aí numa conclusão”; “não acerto com esseção, confere”.
Na página três (ou cinco por conta do encarte do Barateiro), que normalmente salvava as edições de domingo com as crônicas de Dorita, Hélio, Barreto e Chrysanthème, havia quatro textos do ex-publicitário Jefferson Olivetti, todos, obviamente, cheios de autoelogios e assuntos que só diziam respeito ao próprio “egocolunista”. Tortura em dose quádrupla para os leitores que ainda não tinham pulado para o miolo da cobertura da morte de Sarmento.
A partir das páginas iniciais, o grupo cuidara para que a ordem de todos os cadernos do jornal estivesse alterada. No espaço reservado ao esporte, destaque para o terremoto devastador no Atol de Moruroa, na Polinésia Francesa. Até aquele momento não havia informações sobre feridos.
No segundo caderno, a cobertura completa da semana dos times da terceira divisão da Arábia Saudita e fotos de Neymar e da nova namorada, passeando de camelo e comendo pipoca em lugar desconhecido.
Mas, definitivamente, a notícia de Erotildes foi mais do que suficiente para tirar o Planeta de órbita. Matar Sarmento com letras garrafais?! Em pleno domingo? Aquilo equivalia a um regicídio! Perto daquilo, os outros conteúdos do jornal eram pecados veniais.
Uma fonte segura informou que a desinformação foi total durante três horas, até que o próprio Jessé Sarmento telefonou para Roberto Juvenal, presidente da Organizações Planeta, na sua casa em Angra dos Reis.
– Juvenal! Que espécie de jornal vocês têm?!
Roberto Juvenal, incrédulo, perguntou ao mordomo: “que maluco é este no telefone?” “É o ex-presidente Jessé Sarmento, doutor”.
– O que houve, Excelência?
– Já leu o seu jornal ou assistiu aos seus telejornais de merda, Juvenal?!
“Merda” era uma palavra que Sarmento, homem de linguajar rebuscado, jamais tinha empregado e a essa altura o mordomo já tinha colocado a edição do Planeta na mesa.
– Barateiro, não! Vira a página, porra!
O mordomo nunca tinha ouvido Roberto Juvenal falar “porra”, e virou a página. “MORRE, AOS 110 ANOS, O EX-PRESIDENTE JESSÉ SARMENTO”.
-Mas… Excelência, precisamos comemorar que o senhor está vivo! Posso mandar um jatinho para buscá-lo?
A essa altura, Roberto Juvenal gaguejava mais do que de costume. Não houve resposta. Sarmento já tinha batido o telefone na sua cara. Em seguida, pediu ao mordomo que chamasse seus irmãos e telefonasse para Aspásio Moreira, ou melhor, que o piloto do helicóptero fosse buscá-lo em Búzios. Era preciso, o quanto antes, ter em suas mãos uma nota oficial que ele leria ao lado dos irmãos.
Depois, mandariam celebrar uma missa de ação de graças para Jessé Sarmento, cuidariam de encontrar os culpados e soltar o maior passaralho da história das Organizações Planeta. De antemão, determinou que todos os colaboradores, pessoas físicas, jurídicas e empresas prestadores de serviço ao grupo estivessem em seus postos de trabalho. Férias e folgas estavam suspensas, até segunda ordem do PAI.
ANTES DO FIM
Os doze jornalistas, a namorada de Jair e Marcelo Pardal, 14, e, não 13, à mesa na Taberna, viveram um dos melhores domingos de suas vidas. Antônio Carlos elogiou o bacalhau do Sr. Joaquim. Ricardo estava eufórico. Perseu deu o braço a torcer a Tônia sobre as virtudes da Inteligência Artificial. Mário não falou de dinheiro, ou melhor, da falta dele. Vânia convidou Eduardo para passar um tempo em Portugal. Maria Luísa e Anselmo não se largaram. Milton disse que nunca mais tinha tido azia. Jair tentava explicar à namorada o que estava acontecendo. Somente Paulo Rubens, apesar do grande orgulho que sentia dos amigos, sentiu uma ponta de melancolia. Deu pela falta da sua companheira. Beijou todos os amigos e voltou para casa. Precisava descer com Gigli, que naquele dia não faria suas necessidades sobre o Planeta de domingo. Aquela edição seria guardada com muito carinho.
Vinte minutos depois, abriu a porta da sala. Estranhou não ter sido recebido por Gigli. E que música era aquela? Mas, no corredor, a mala azul marinho de rodinhas denunciou tudo. Beth tinha chegado uma semana antes das longas férias na casa da prima. A música? Provocação dela. Nenhum dos dois resistia a dançar “I’m in themood for love”. E as lágrimas escorriam pelo rosto.
Rio de Janeiro, 14 de outubro de 2023.
FIM
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