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2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: PABLO DUÍLIO — CATEGORIA CONTO

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    Casa Brasileira de Livros
  • 14 de jul.
  • 22 min de leitura
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SOBRE O AUTOR


Pablo Duílio é escritor, tradutor de sânscrito e pesquisador em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Integra o Núcleo de Estudos em Religiões e Filosofias da Índia (NERFI/UFJF/CNPq.), onde atua como instrutor e tradutor de textos filosóficos da tradição do Advaita Vedānta.


"Se me perguntam quem sou, confesso que hesito. Mas arrisco: talvez eu seja apenas mais um modo de ser, não-diferente dessas águas lançadas desde sempre, qual fagulhas divinas no todo dos quintais. Não me sinto autor de nada — sou apenas alguém que escuta, atento, o murmúrio das águas que fluem através do que penso ser. Traduzo não somente textualidades do sânscrito, mas também o silêncio protetor das estrelas — de Sírius, o cão maior — e o olhar impassível de Farid, o gato, mestre secreto que me observa em sonhos, enquanto escrevo. Nada faço sozinho. Cada poema, cada palavra é sempre um encontro: uma pausa delicada no movimento infinito da correnteza, onde percebo que meu fundamento mais íntimo não difere do fundamento das árvores, das pedras ou do próprio rio. Ao fim, desconfio que tudo isso seja eu, mas nada disso me esgota. Nem sequer existo sem o outro, sem você — leitor —, sem a rua, sem o telhado ou sem a tempestade nos cabelos da moça. Reapresento-me, pois: nada disso sou — só Deus é, e sempre será feita a Sua vontade."


Instagram: @pablombsilva




O CONTO SEMIFINALISTA


O SONHO DE FARID


I

Antes que me tomem por mentiroso, digo logo: o que vou contar aconteceu. Palavra. Não tem ilusão, nem literatura. Se não acreditas, a incredulidade, meu caro, é desses vícios que o espírito ostenta sem custo — e quem sou eu para privá-lo desse pequeno deleite? Fato é que eu estava lá — inteiro. Olhos, orelhas, mãos suadas, coração na boca. 

Era noite de segredo — daquelas que a gente vive sem saber se é sonho ou vigília. Tudo falava: o silêncio, o riso, o gesto cortado no meio. O ar pesava, mas ninguém via. O que presenciei - sem que ninguém me notasse - afirmo! Não, não foi um simples encontro. Foi outra coisa. Um assombro que se enrosca na gente e não sai nunca mais. Quem passou por aquele telhado saiu carregado daquilo que não sabe dizer. Eu mesmo, que conto, só o faço para não esquecer. Certo de que toda explanação sobre o ocorrido se mostra vã, na medida em que o mistério se recusa a ser aprisionado em palavras.

Demorei a falar sobre o assunto. Mastiguei, engoli, regurgitei, tantas vezes que as vacas teriam inveja. Não digeri até hoje, confesso. Mas, numa dessas idas ao rúmen do intelecto, fermentou-me a ideia de descer, humildemente, do cume dos barrancos do ego e auscultar o fluxo do Rio das Mortes, que passa bem aqui nos fundos do quintal de casa.

Ora, direis que estou endoidando. Até eu mesmo quase atestei verdade a essa sentença. Bem sei que apelar ao rio não é ciência, nem filosofia — é devaneio. Mas o desejo de conferir sentido àquela experiência, ao que acontecera naquela noite, era maior que o juízo dos cientistas e bem mais profundo que o raciocínio dos filósofos. Era desejo de poeta. Vontade! Tem coisas que só a poesia desvela, meu caro. E foi justamente por isso que perguntei àquele que vive nas entrelinhas do sentir e do silêncio – o rio.

Sentado à sua beira, indaguei: "Rio, meu amigo, noivo das marés, o que foi aquilo que presenciei?" Ele não respondeu. Ou, ao menos, eu não ouvi resposta. Mas o encontro daquela noite misteriosa, no telhado daquela casa na rua sem nome, me tomou de tal forma que não pude deixar de insistir. A necessidade de entender o que acontecera me envolveu. Eu realmente acreditava no que vi? Permaneci ali, na margem, atento às nuances do rio, ao sinuoso movimento das águas e ao canto hipnótico de seu curso. Esperei, com a esperança pueril de que algo, talvez, me respondesse. Então, comecei a contar-lhe o que acontecera, tim-tim por tim-tim.

II

— Rio meu, naquela noite estavam apenas o moço, a moça e o gato. Farid dormia. Ou fingia dormir entre as almofadas de um sofá azul, tão gastas quanto promessas que o tempo desfia. Suas patas recolhidas, o corpo imóvel, a respiração pausada — dir-se-ia uma esfinge em miniatura, esquecida no canto da sala. Mas os olhos, ah, os olhos não se entregavam ao repouso. Entre as írises, um enigma cor de encontro. Como o Negro e Solimões, que se tocam sem se misturar, que se encontram sem se perder. Dois, e, no entanto, um. As pupilas, ora dilatadas, ora contraídas, pareciam registrar o instante invisível em que a corrente muda de curso sem jamais deixar de ser a mesma. E assim, enquanto os rios fluiam e o mundo girava à revelia das inquietações humanas, o felino ali ficava, senhor do mistério, indiferente às vãs certezas dos homens.

No centro da sala, a luminária âmbar, pequena réplica da lua, derramava sua luz tímida sobre a mesa de jantar. Mesa que a sala sustentava, sala que a casa abraçava, casa que repousava na anteesquina de uma rua sem nome — e a rua, essa se perdera na memória de um telhado qualquer.

Dois copos repousavam sobre a mesa, bem ao lado de um cinzeiro e de um cigarro adormecido. Sentados à mesa, frente a frente, ele e ela conduziam um diálogo descontraído, entremeado de lampejos filosóficos sobre a essência das coisas. 

Discorriam sobre a harmonia secreta dos seres, a dança invisível que une tudo o que existe num ajuste silencioso. Discordavam sobre a imensidão do universo: — o mundo se erguia sobre o choque dos contrários ou sobre um pacto tácito de mútuo auxílio? Concorcodavam, no entanto, que ao fim de tudo, quando todas as coisas cumprissem seu curso, restaria apenas o deleite último, a dissolução num abraço cósmico que era ao mesmo tempo chegada e partida, princípio e desfecho — o regaço do Absoluto nos braços do mar. Enfim, conversavam era sobre essas coisas de gente que vê as angústias como uma abertura para o conhecimento.

Falavam com beleza, como entoassem um canto de Uirapuru. Mas suas palavras pareciam pairar distantes demais para duas pessoas que até então só conhecera naufrágios. Ambos, na vida, eram colecionadores de desastres amorosos, agiam como pássaros que insistem em amar a gaiola ou velas que se entregam apáticas à chama que as consome. Viviam aninhados nesses entrelugares onde o perfume arde e o amor é grilhão — caminhos febris que mais afastam de Deus do que recordam o paraíso.

Em um dado momento, a moça argumentara com ele sobre a fundamentalidade do tempo: — Isso é filosofia de gatos — disse ela. — Impassíveis, absolutos, indiferentes à angústia das horas.

Foi quando o silêncio se adensou na sala. Farid abriu os olhos por um instante, sem mover um músculo. Sua pupila contraiu-se à luz da luminária, como se pressentisse o exato momento em que a conversa se dobraria sobre si mesma. Como um rio que retorna à nascente. 

Mas há coisas que não podem ser ditas de imediato, e eu mesmo, agora, hesito. Ah, meu Rio do Silêncio Funesto! Sentado na tua beira, nem sei se me ouves, mas espero que entendas a angústia que me atravessou o peito naquela noite, a qual me esmaga ainda agora. Lava-me com o poder das suas águas! Restaura minha paz para que eu siga a contar! 

Desci até seu curso. Com as mãos em concha, peguei um pedaço do rio e joguei sobre a cabeça. Por sete vezes fiz isso, que é pra matar a angústia de vez, como carinho de vó. — Agora tá formoso, filho! Vai doer por mais alguns dias, até não significar mais nada. O tempo dá conta de tudo.

Senti um alívio, um suspiro de paz no coração, era como se o rio aliviasse minha aflição para que eu prosseguisse com a história. Sim, ele estava atento e me respondendo à sua maneira. Sentei novamente, no mesmo lugar, o rio silenciou suas águas. Foi como se ele trouxesse a noite do mistério para nosso instante, dando, novamente, na penumbra da sala, forma ao silêncio dos personagens.


III


No silêncio que se seguiu, permaneci ali, sentindo o peso daquela noite que parecia se adensar sobre mim. O mundo lá fora pulsava quietamente, indiferente às nossas inquietações. Então, a voz do moço cortou o espaço, devolvendo-me ao presente.

— Notaste, tu? — perguntou o moço, interrompendo o silêncio que ainda se impunha na sala.

— Notar o quê? — retrucou ela, com uma leve impaciência, como quem sabe que será conduzida a uma conversa não desejada.

— As estrelas lá fora — respondeu ele num tom grave, mas com a sombra de um sorriso quase afável.

— Claro que não! — exclamou a moça. — Notar, de fato, estrelas, não é coisa tão simples. Não sabes que, para tanto, é preciso soltar o peso de ser alguém? Diz o poeta que quem olha o céu, verdadeiramente, precisa abandonar aquilo que se pensa ser, para talvez, no reflexo das estrelas, reencontrar o que sempre foi. Requer coração, não olhos!

O tom aparentemente arrogante da moça era, na verdade, de inquietação existencial e desejo de conexão genuína. Justificava-se pelo esgotamento em que se encontrava naquele instante. 

Nos últimos dias, escrevera em seu diário: “ando juntando minhas próprias dores como quem coleciona conchas na beirada da praia. Não pretendo esquecê-las, mas vivê-las até o âmago. Rumino-as, como quem busca no amargor o segredo da vida. [...] e´das profundezas que desejo olhar para cima e reencontrar a saída, feita dos mesmos degraus que outrora me foram abismos.”

Então, lembrando das palavras que escrevera, sentiu um peso, como se ainda vibrassem dentro de si. Mas suspirou com certa serenidade antes de continuar o diálogo, agora com uma voz que trazia o alívio imediato de quem solta um nó preso há muito na garganta.

— Se realmente desejas, moço, podemos subir até o telhado e contemplar o céu.

O moço acenou com um sorriso que trazia um quê de ironia — não a que ridiculariza, mas a que pressente, com vaga inquietude, algo ainda por desvelar. Fitou pela janela a vastidão dos astros, como quem busca no infinito uma resposta que o chão da casa lhe sonegara até então, e disse:

— Talvez seja fato que as estrelas saibam mais de nós do que nós delas. Ainda assim, é preciso olhá-las de perto. Vamos?

— Claro — respondeu a moça, com as mãos ligeiramente abertas, num gesto que parecia acolher o convite e o mistério que ele trazia.

Na área externa da casa, a escada jazia no mesmo lugar de sempre, posta ao relento, como quem espera pacientemente pelo toque de um destino alheio. Subi-la seria mais que um ato; seria despojá-la de sua condição inerte, libertando-a do rol das coisas comuns e permitindo-lhe, ao menos por um instante, ser plenamente o que se é, como todas as coisas desejam secretamente ser.

A moça subiu primeiro, com uma confiança despretensiosa, quase teatral; ele seguiu logo atrás, uma mão na barra de ferro, a outra equilibrando o cigarro, a cerveja e o mistério da sala. Quando alcançaram o telhado, a noite os recebeu com um ar quieto e frio, como se fosse cúmplice de algum segredo esquecido.

— Bem, cá estamos — disse ele, estendendo os braços em um gesto amplo, como se pudesse abraçar o céu. — Não parece grande coisa, mas é aqui que o infinito, do qual falávamos, encontra sua morada. Concorda?

Ela inclinou a cabeça, fitando-o com aquele olhar que mistura desconfiança e desafio.

— Insistes em dizer que o céu guarda o infinito, moço, mas creio que te enganas — começou ela, com a cadência espontânea de quem não ensaia as palavras antes de dizê-las. — O infinito não está lá em cima, solto entre estrelas e nuvens. Está aqui, no instante. Sinta-o!

Ele arqueou a sobrancelha, intrigado. 

— Instan...?

Antes que completasse a indagação ela prosseguiu, agora olhando para o horizonte que se exibia timidamente, parcialmente nublado:

— O instante, meu caro, não é só o que passa, mas o que reúne. É nele que todas as coisas se encontram, como que convocadas por uma consciência maior que as abraça sem distinção. Cada sujeito, cada objeto, mesmo estas britas quietas sob teus pés ou aquela estrela apagada, estão ligados, dependem uns dos outros. Não é no céu que está o infinito; é nesse entrelaçamento invisível que forma o mundo.

Fez uma pausa breve, deixando que o silêncio tomasse forma. Depois, voltou-se para ele com um meio sorriso:

— E sabes o que isso significa? Que olhar para o céu é belo, sim, mas talvez devêssemos prestar mais atenção ao que está aqui, entre nós. Nossas dores são deste mundo, hão de ser sanadas no aqui e agora da realidade.

Ele ergueu os olhos para ela, hesitando por um instante, e então deixou escapar, num tom que misturava provocação e ternura:

— Penso que o infinito pode ser tudo: eu, você, o céu e o que mais existir. Mas, paradoxalmente, é na nossa separação que encontramos a primeira experiência de completude. Você, distinta de mim, se torna a ruptura da minha finitude, assim como eu sou a sua. Nossas dores não são meras faltas, mas sinais de algo maior—fragmentos de um todo que, ainda que pareçam dispersos, pertencem a um mesmo quebra-cabeça. Sanar a dor é reconhecer-se no infinito.

Sentou-se ao lado dela, encostando os cotovelos nos joelhos. Ficaram em silêncio por alguns instantes, ouvindo apenas o sussurrar do vento e o miado de Farid, o único ser plenamente realizado dessa história. O gato, que ficara na sala da casa, como todo mestre, vive apenas para despertar as mulas adormecidas de Deus. E o faz raramente, mas com primor. Suas ações precisas ao longo da noite traziam mais mistérios que as falas do casal.

— Ali, veja!

Como que se contradizendo, a moça rompeu o quase silêncio para falar das coisas do céu, sua voz preencheu o ar, da mesma forma que a luz dos astros preenchiam a escuridão. E seguiu, apontando com um claro entusiasmo contido:

— Aquela é Sírius, não?

— Sim, Sírius — respondeu o moço, prolixamente. — Alfa de Cão Maior, a estrela mais brilhante do céu noturno. É ela que anuncia o verão no hemisfério sul, por isso a chamam de “a estrela do calor do cão”.

Ela riu levemente, mas o riso parecia carregado de lembranças pueris.

— Sírius é também o nome do meu cachorro — disse, olhando nos olhos do moço, como quem confidencia um segredo. — Houve um tempo em que me sentia insegura demais, tanto que roguei aos céus por proteção. Os anjos atenderam, mas de uma forma peculiar: enviaram-me um guardião — um belo pitbull, porte de Cérbero, coração de Orfeu. Ou, talvez, tenha sido o próprio Sírius quem me escolheu, fugindo habilmente do paraíso enquanto os anjos pausavam para um café.

Deu um suspiro leve e com os olhos exalando amor, prosseguiu:

— Ele se chama Sírius, porque, como a estrela, é um protetor maior, forte e fiel, uma manifesta divindade. Quando olhei para o zênite na noite de sua concepção, descobri que o nome já estava lá, esperando por ele.

O moço sorriu, mas não com o tipo de sorriso que responde, e sim com aquele que provoca uma nova reflexão.

— Falaste de quando te sentias insegura. Sabes? — ele disse, após um instante de silêncio. — Penso que o excesso de liberdade é o que permite essa insegurança desmedida. Assim como o aprisionamento, o sufocamento existencial, se formos francos, nada mais é do que a consequência de um excesso de proteção. Uma tentativa desastrada de amar.

Ela bebeu um gole de cerveja e tragou um cigarro, os olhos fixos nos dele, como quem tenta decifrar uma melodia dissonante e, ao mesmo tempo, compor seus próprios acordes. Depois de um instante de silêncio que parecia conter o peso de muitas vidas, falou com uma franqueza que vinha mais da alma do que da razão:

— Não sei, moço, o que pesa mais: o sufoco de estar presa ou o vazio infinito de estar livre demais. Talvez amar seja isso: reconhecer que o mundo e nós mesmos estamos sempre fora de compasso, em permanente desarmonia. Não achas?

Ele respirou fundo, pegou lentamente a cerveja da mão dela, um brilho fugaz dançando em seus olhos, e respondeu com o esmero de quem também buscava no caos uma harmonia:

— Talvez esse seja o primeiro passo de um processo. O derradeiro, ao que parece, é compreender que toda dissonância é, essencialmente, um clamor por resolução... e resolvê-la é um desfecho inevitável.

A moça esboçou um sorriso, mas daqueles que morrem antes de alcançar os olhos. Em seguida, inclinou ligeiramente a cabeça, como quem contempla uma dúvida que ainda carece de solução

O céu, silencioso acima deles, parecia observar a conversa com a paciência de quem sabe a hora de entrar em cena.

Despertada pelo sutil movimento das nuvens, a moça notou que a estrela Sírius, tal como na data da concepção do seu cão protetor, encontrava-se posicionada no zênite — aquele ponto celeste que, na linguagem dos poetas, é o mais próximo do coração de quem o contempla. Uma sensação de proteção e afeto a envolveu; Sírius, em sua majestade silenciosa, parecia ter se aproximado para reafirmar seu amor, sua imponência e guiá-la

— Olha! — exclamou ela, com um fervor quase infantil, mas pleno de um encantamento maduro. — Há música no céu! Imagina aqui uma pauta musical suspensa no ar, onde Sírius marca a clave. Pensa num compasso quaternário, em adagio sustenuto, uma sonata quase fantasia. Ali, as Três Marias formam tercinas constantes, como estas: e solfejou os primeiros compassos da Sonata ao Luar. Fecha teus olhos, sonha comigo! Sente o universo conduzindo uma dança, tudo em plena harmonia, um espetáculo divino! Tudo é conduzido ao doce deleite da concelebração amorosa, a um repouso no colo materno de um Absoluto que suspende toda e qualquer subjetividade. Um verdadeiro maravilhamento. Será essa nossa ontologia? Uma dança universal sem dor, plena? Não sei, mas assim, talvez, vibrando com o firmamento, Beethoven tenha sonhado essa famosa sonata, transcrevendo no piano a linguagem do amor, os intervalos secretos que só os céus podem escrever.

A moça prosseguiria sua composição ontológica, se não fosse atraída como um ímã para outro ponto do céu.

— Olha ali, à esquerda... não é Júpiter? — perguntou ela, quase como uma aluna testando o conhecimento do professor.

— Creio que sim, ou Saturno.

Ela reagiu imediatamente, com uma certeza que parecia brotar mais do instinto do que do conhecimento.

— Não, Saturno não é! — retrucou, com o fervor de quem repele uma ofensa leve. — Com essa luz, com essa força... só pode ser Júpiter!

Ele sorriu, um sorriso breve e enigmático, como quem cede à convicção alheia por achar que, na verdade, o nome dos astros importa menos do que a paixão de quem os observa.

O céu nublou de repente, escondendo seu brilho debaixo das leves cortinas da noite. Como se encerrase naquele momento o primeiro ato de uma peça sem plateia.

— Mais uma cerveja? — perguntou ela, com um tom que misturava desconfiança e expectativa.

— Claro — respondeu ele, sorrindo. — Vamos descer.

Na escada, agora em descida, a moça ia à frente, equilibrando-se com um cuidado natural sobre os degraus. O último, curiosamente, não era exatamente um degrau, mas um pequeno banquinho preto que emprestava à escada o privilégio de continuar sendo escada, como um ator coadjuvante que sustenta a cena sem chamar para si os aplausos.

O moço vinha logo atrás, os passos medidos, quase coreografados, como se seguisse uma melodia que só existia na sua cabeça. Era em compasso binário, escrito na pauta irregular que os degraus formavam, e ele estranhamente parecia encontrá-la nos latidos dos cachorros que rasgavam a lona silenciosa da noite.

Ao chegarem à sala, o relógio sobre a mesa pareceu lembrá-los de algo que se tornara relativo no telhado.

— Duas da manhã? — murmurou ele, franzindo a testa. — Madrugada de domingo para segunda... Se isso não é um atentado contra a ordem natural das coisas, não sei o que é.

Ela riu, mas sem estardalhaço. Foi até a cozinha, voltou com a cerveja numa mão e, no rosto, um ar leve, embora perturbado. Ele, num ímpeto de hesitação, aventurou-se:

— Acho que já me vou.

Retórica pura, claro. O que desejava, na verdade, era que o relógio derretesse, como nos devaneios de Dalí, e que a noite se alongasse infinitamente, à maneira de Van Gogh.

Farid, como se compreendesse as inquietações do momento, enroscou-se sedutoramente na perna do homem apressado, descrevendo movimentos sinuosos que pareciam dar forma aos relógios fluidos do pintor surrealista.

— Fique mais — disse ela, o bom da madrugada é que tudo o que acontece parece um sonho.

Antes de responder, o moço desviou os olhos para o gato, que bocejava indiferente, depois para o céu, pela janela, onde Júpiter cintilava como um lampejo de dúvida. Quando finalmente falou, sua voz veio baixa, como se temesse que o instante se desfizesse no ar.

— Ficarei, então. E assentiu com a cabeça.


IV

A escada ainda permanecia ali, no mesmo lugar de sempre, exposta ao relento, aguardando silenciosa por quem a subisse e, assim, novamente a libertasse de sua condição de simples objeto. Só então poderia ser com todas as coisas, plenamente ela mesma. Ela com o banquinho, que a essa hora já se derretera em degraus.

Assim, subiram; em compasso binário: ele, ela, o cigarro, a cerveja e o silêncio ensurdecedor da sala.

— Conta-me tu, moça, esse lamento de que falara antes, que turva teus olhos e sufoca o coração!

— Contarei, preciso mesmo desabafar.

— Hoje... Ela começou, mas parou.

— Hoje o quê? — insistiu o moço, mais atento que os prédios que escutavam, em segredo, a conversa musical dos cachorros.

Prontamente, ela tomou um trago longo do cigarro, o olhar perdido na brasa que ardia, como se ali tentasse encontrar alguma faísca de si mesma. Parou por um tempo ajeitou os cabelos ondulados e só então retomou a fala:

— Hoje eu caminhei, como venho caminhando, cabisbaixa, soterrada pelo peso dos dias. O instante, moço, escorria-me pelos dedos como areia fina, e eu nada pude fazer senão vê-lo partir. Meu olhar, turvo e cansado, encontrou apenas bruma no horizonte.

— Bruma? — interrompeu o homem. — Ou apenas tua visão cansada do mundo?

— Talvez as duas coisas, moço. Talvez o mundo seja um reflexo daquilo que carregamos dentro de nós. Mas escuta: nem o Sol que partia notei, nem a noite que chegava me fez companhia. Tudo era silêncio e frio, um frio que não vinha do vento, mas de dentro de mim.

Ele a olhava agora com curiosidade, e quase com ternura a interrompeu estranhamente sem querer interromper.

— Respire um pouco, olha para o céu e conta as estrelas, como sugere Cartola!

— Não, seu tolo, não é Cartola. Está escrito desde antes do tempo. Gêneses.

Ele ergueu as sobrancelhas, intrigado. Ela não piscava. Seu olhar, fixo em algum ponto entre as constelações e a memória, parecia tocar um lugar que ele não via. Quando falou de novo, sua voz tinha um peso antigo, como se não pertencesse apenas a ela.

— Houve um homem que certa vez olhou para o céu e duvidou. Sentia-se só, como quem caminha entre sombras sem deixar pegadas. A terra lhe pertencia, diziam, mas nela não via herança alguma. Que promessa há para aquele que não gera? Que futuro há para aquele que não pode se prolongar?

O moço permaneceu calado. Ela continuou:

— Diz-se que foi então conduzido para fora. Não com palavras, não com promessas, mas com um gesto. Apontaram-lhe o céu. "Conta as estrelas, se fores capaz." E então ele compreendeu.

— O quê? — perguntou ele, a voz mais baixa do que pretendia.

— Que a posteridade não está nos ossos, nem no sangue. Está no assombro de quem olha para o alto e se vê dissolvido no infinito. Aquele que contempla as estrelas não as possui, mas pertence a elas. E, por um breve instante, esse pertencimento é tudo.

O vento soprou levemente, como se o céu respirasse com eles. O moço ficou em silêncio, sentindo o peso do que acabara de ouvir. Sua mente tentava agarrar as palavras, mas era como tentar conter água entre os dedos. Sentiu que deveria dizer algo, mas nada lhe pareceu à altura.

A moça, por sua vez, suspirou. Parecia mais leve, como se, ao contar aquela história, tivesse desembaraçado um fio que a apertava por dentro. Mas ainda havia algo ali, algo que não se deixava dizer completamente.

 Fato é que para mim, Rio das Sombras, algo estranho sucedera naquele momento. Já não era ela quem falava, nem ele quem ouvia. Por um breve instante, parecia que as individualidades haviam sido suspensas; os egos, despencados, como casacos pesados irremediavelmente atraídos pela gravidade. Por um lapso de tempo, houve entrega, abertura — apenas verbos, sem sujeitos. Estavam prontos para ouvir as estrelas? Tive medo daquela atmosfera, para além das palavras algo de misterioso estava em suspensão naquele telhado. Parecia já um prenúncio do que estava por vir.

De repente, aos poucos ouviram miados, que foram aumentando sem aumentar, qual despertador que paulatinamente traz à vigília âqueles que perderam-se em sonho.

— Ouviste, é Farid de novo... Mais uma cerveja? Ela disse.

— Desçeram a escada... de onde? Já não sabiam ao certo. Recompuzeram-se e voltaram pra mais perto do céu.


V

— Nublou bastante — disseram em uníssono, como se as palavras tivessem brotado de um pensamento compartilhado.

— Gosto das nuvens, moça — disse ele, após um instante de silêncio. E, com um sorriso bobo, acrescentou: — Já quis ser fotógrafo de nuvens! Bobagem minha, claro. Nem mesmo as imagens conseguem perpetuar o finito que habita o infinito. O eterno, afinal, é o brincar das nuvens: o desfazer-se e refazer-se, a cada instante.

— Ei, moça. Não chegue tão perto da beirada! É perigoso! Exclamou ao vê-la levantar-se.

— Senta aqui, de novo — convidou ele, olhando para o céu. — Falavas-me do teu lamento. Prossiga, se quiser.

Foi então que, de súbito, algo se deu — um desses fenômenos em que a realidade e o sonho se confundem, sem que possamos distingui-los com precisão. A brisa, antes morna, agora parecia ter textura, como se roçasse a pele com dedos invisíveis. O silêncio era outro – não um simples cessar de sons, mas um vácuo denso, carregado de algo não dito. A luz das estrelas tremulava diferente, como velas ao vento, e a cidade abaixo... estava lá? Ou havia se dissolvido? Ambos se viram enredados por uma nuvem densa, que até então era apenas nuvem, mas que, numa metamorfose silenciosa, transformou-se num imenso barco.

As estrelas acenderam-se, uma a uma, como lâmpadas de bordo, compondo uma constelação de caminhos. Sírius, Prócyon, Aldebaran... todas pareciam traçar rotas no firmamento. Contudo, eles, perdidos entre o assombro e o mistério, não souberam segui-las.

— Moço, vê o barco! — exclamou ela, com a voz embargada de maravilha.

Ele fitou a visão, os olhos semicerrados, como quem tenta decifrar um enigma.

— Vejo um barco sem porto, sem rumo, navegando no vazio do céu.

Ela gritou sem elevar a voz, num ímpeto que era mais alma do que som:

— Que é um barco sem porto? — Que é o movimento sem destino?

Mas o que viam era apenas isso: um barco à deriva no vasto oceano dos astros.

— Será um símbolo que o céu inventou? — indagou ele, pensativo. — Ou uma projeção confusa da nossa alma?

— Um barco sem porto... — murmurou ela, como quem fala consigo mesma. — Talvez seja o espelho de mim mesma.

— Talvez — concedeu ele, com um olhar que parecia conter todas as dúvidas e nenhuma certeza.

Foi quando de súbito, notaram que o barco não era apenas barco. Era pulsação, era vértice, era um redemoinho de algo inominável que os tragava para dentro de si. O céu se contorcia ao redor, as estrelas giravam em movimentos dissonantes, como notas errantes de uma melodia que ainda não sabia se era harmonia ou desespero.

Os corpos deles começaram a se mover sem comando, como se a gravidade os dissolvesse para além do toque e os fundisse em uma só matéria. O ar entre eles já não era ar – era uma espécie de membrana vibrante, uma tensão invisível que os unia sem que pudessem resistir. Sentiram os limites de seus corpos cederem, suas formas oscilarem entre o sólido e o etéreo, como se, por um instante, tivessem deixado de ser dois para se tornarem algo “Uno”, uma única existência dobrada sobre si mesma, sem começo ou fim.

O tempo perdeu o ritmo, expandindo-se e contraindo-se em pulsos irregulares. As constelações eram agora rastros líquidos, derramando-se pelo firmamento como tinta diluída em água. Os olhos dela estavam nos dele, mas não eram apenas olhos – eram um abismo de luz e sombra, algo que os atravessava e os consumia de dentro para fora. Não havia chão, nem céu, nem corpo. Apenas um movimento sem direção, um arrasto para dentro de uma vastidão que não pertencia a este mundo.

Foi quando veio o grito das entranhas.

— Pare! Meu coração não aguenta tanto! — explodiram em uníssono, num desespero ancestral, visceral, como se estivessem sendo rasgados em dois outra vez, separados à força de algo que nunca deveria ter sido dividido.

O barco tremeu. O universo tremeu. E então, tudo ruiu.

E, num ímpeto comum, como se uma força invisível lhes arrancasse as palavras, gritaram novamente:

— Pare! Meu coração não aguenta tanto!

O barco, então, dissolveu-se em nuvens. Foi um instante breve, um risco luminoso cortando o céu, como uma estrela que cai sem destino, mas cai com uma beleza que desafia a lógica. No rastro deixado pela luz, uma sensação estranha se espalhou — algo que parecia inverter a própria substância da existência.

Foi então que ele sentiu – não apenas viu – o barco. Não apenas viu, mas esteve nele. E no instante seguinte, como um sopro, já não sabia se havia subido ao telhado ou descido do céu. Como se, ao piscar os olhos, tivesse sido expulso de um lugar que nunca deveria ter conhecido.

— Viver é que é preciso, navegar não é preciso! — sussurrou uma voz ao longe, uma melodia misteriosa em tons menores, ecoando como um segredo do universo.

A moça inclinou-se levemente, buscando os olhos dele, e os dois permaneceram ali, imóveis, por um tempo que nenhum relógio poderia medir. O céu, que fora cenário e interlocutor, interveio por fim, com sua voz vaga e serena:

— Notastes vós?

Eles não souberam o que responder.

A voz riu suavemente, como quem compreende o silêncio de um amigo, e disse:

— Talvez não tenhais notado as estrelas porque vossa vista encantada... viu a luz que o olhar de Deus contém.

Ele piscou. A noite pareceu inclinar-se ligeiramente, como se o céu os observasse de volta. 

A moça virou-se devagar, mas, por um instante, sua silhueta pareceu oscilante, esfumada contra o escuro – como se, em vez de carne, fosse feita de um fragmento do próprio céu.

O vento sussurrou algo incompreensível. E então, como uma lâmina fria atravessando o tempo, o moço sentiu um vazio estranho no peito.

Algo lhe escapava. Algo que ele nunca mais saberia nomear. Piscou outra vez.

E estava sozinho.

A escada ainda estava ali, imóvel, exposta ao relento. Farid, sentado ao lado, o olhava fixamente, os olhos duas esferas impenetráveis. Nenhum sinal da moça. Nenhum sinal do barco. Nenhum sinal de que aquela noite fora real. O telhado continuava no mesmo lugar. Mas o moço já não tinha certeza de que ele próprio ainda era o mesmo. Nem se ela existira.


VI

Fiquei ali, imóvel, sentindo o frio da margem subir pelas pernas, infiltrando-se nos ossos. O rio, em seu ritmo de sempre, passava. E, no entanto, algo parecia diferente. Como se o tempo tivesse se reconfigurado no seu fluxo, como se cada gota trouxesse de volta um pedaço daquela noite impossível.

Não sei quanto tempo passou até que me dei conta de que falava sozinho. Contava, explicava, repetia — como quem tenta encaixar uma peça numa engrenagem invisível. O telhado, o barco, a moça, a dissolução... Tudo jazia ali, nas minhas palavras, mas sem forma, sem bordas que me permitissem tocá-los de novo.

O rio, cúmplice antigo dos que se perdem dentro de si, escutava.

— Não há sentido nisso tudo, rio meu — confessei, por fim, com um riso sem graça, encharcado de exaustão. — Se vi, por que não entendo? Se vivi, por que me escapa?

As águas não pararam, mas o ritmo pareceu mudar. Um redemoinho formou-se rente à margem, e uma folha seca rodopiou dentro dele antes de seguir viagem, como um pensamento que hesita antes de se desprender da mente.

E então, como se o próprio silêncio se fizesse voz, eu ouvi.

"Sigo meu curso sem pressa, e ao me deparar com uma pedra, não a destruo. Acolho-a, porque reconheço, na dureza imóvel, algo que já era sem saber. Não é que eu pare, nem que ela me detenha—ao contrário, curvo-me, entrego-me, sem deixar de ser o que sou. Ela, imóvel, se deixa tocar, e nesse toque, descobre-se parte de mim. Não há conquista, nem rendição, apenas um vislumbre — súbito e silencioso — de que eu e a pedra compartilhamos uma mesma essência, anterior a nós, fundação oculta que nos irmana. Deslizo sem apagá-la, ela resiste sem me expulsar. E no encontro, preservamo-nos e nos transformamos, como se, por um breve milagre, o tempo se suspendesse para que eu soubesse ser pedra, e ela se descobrisse rio. O assombro do encontro não está na colisão, mas no ato de rememoração súbita que ocorre na dobra imprevista do caminho, no breve instante em que o açude subsumido sob a pedra encontra seu sentido de ser no toque do meu fluir."

O murmúrio da água se dissolveu de volta na noite. Pisquei. Toquei a margem úmida com a ponta dos dedos, como se buscasse uma prova da voz que acabara de escutar. Mas não havia voz, não havia nada. Apenas o rio, apenas eu. E, no entanto, não era mais o mesmo.

A pedra estava ali, intacta, como sempre. O rio corria, como sempre. Mas algo em mim tinha sido dobrado, deslocado, transformado. Não porque entendi, mas porque senti. O assombro daquela noite voltava a enroscar-se em mim. Mas agora, não como um enigma a ser desvendado. Era um silêncio, uma dobra no tempo. Uma pedra no curso do rio.



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