2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: PABLO PARREIRAS — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros
- 14 de jul.
- 11 min de leitura

SOBRE O AUTOR
Pablo Parreiras é mestre em Estudos Literários na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e estudante de doutorado em Literatura de Língua Portuguesa na Indiana University (EUA).
O CONTO SEMIFINALISTA
Anti-Édipo
Para a interiorana Tamires Batista Silveira
As pessoas começaram a desconfiar dos devaneios e das atitudes duvidosas do fazendeiro Geraldo Montalvão no dia em que ele encomendou a morte do filho por uma desavença de 30 anos. No interior é assim: todo mundo conhece todo mundo, até que finalmente descobre-se que ninguém conhece ninguém.
Da porta pra fora, os Joãos, as Marias, os Antônios e as Anas são bons cidadãos, tementes a Deus e vizinhos exemplares. Da porta pra dentro, a vida privada das pessoas, teoricamente, não é acessada por ninguém. No entanto, esta história só é possível de ser contada porque os acontecimentos se tornaram públicos e sujeitos ao escrutínio mais perigoso: o interiorano.
E Geraldo Montalvão não conseguiu esconder a página mais tenebrosa já lida em praça pública na cidade de Água Boa. Havia tentado assassinar o próprio filho e agora isso era um fato indubitável e audível. O ocorrido já estava completando sete dias, prazo da morte e da missa derradeira do contratado para matar, que em decorrência do destino, foi quem acabou morrendo.
Inicialmente, houve um burburinho sobre o assunto por parte de um comerciante local com fama de fofoqueiro e contador de estórias. O senhor Eustáquio Figueiredo, dono do sacolão Verdura Boa, jurou de pés juntos que na noite do dia anterior do acontecido havia, ele mesmo, socorrido Mateus Montalvão.
“O Doutor estava com a perna machucada. Ou algo assim. Parecia estar mancando. Minto, veio correndo e o Corvo estava com a pata machucada. Achei que tinha visto um balaço, coisa de tiro de espingarda, mas era um fim de tarde, início de noite sem movimento e não reparei direito. Engraçado que não ouvi barulho nenhum. Só vi o rapaz se aproximando do meu estabelecimento e como ele viu que eu tinha visto ele não deu tempo de ir cuidar da minha vida. Fui cuidar da vida do Doutor, estilo salvador mesmo. Tem horas que a gente tem que fazer o que é necessário”.
Dizendo assim, parece até que Eustáquio de fato salvou Mateus, o filho jurado de morte. Isso era o que ele gostava de retratar, com seu jeito de herói caipira, sem capa e com cigarro de palha preso à orelha. Porém a verdade era outra. Quando o jovem alcançou o sacolão pedindo por ajuda, era porque seu algoz estava morrendo. Esse episódio macarrônico de violência entrou para sempre para os anais da história aguaboense.
Reginaldo, o ocasional-matador, trabalhava para Geraldo. Era uma espécie de homem de confiança. Já tinha sido visto fazendo de tudo pelo patrão. Quando precisava patrulhar a região da Fazenda Helena Montalvão, nome em homenagem à falecida esposa de Geraldo e mãe de Mateus, podia ser visto pelas manhãs de longe com seu traje característico: o chapéu era preto, o colete mais preto ainda e as botinas pareciam sempre novas. Diziam que esse homem nunca descia do cavalo, que por sinal era um belo alazão cor caramelo e de crina lisa e escovada.
O cavaleiro estava em todo lugar carregando o estandarte da Família Montalvão. Com a cara de mau, assustava crianças levadas que pulavam a cerca da fazenda pra roubar goiaba ou jabuticaba. Com o facão que carregava pra cima e pra baixo desbravava áreas extensas dos matagais. Quando o assunto era pontaria, levava muito jeito com a pistola em mãos. Com esse jeito de valente e sisudo, Reginaldo ganhou o apelido de Corvo do Mato, animal que nem se via naquela região de maritacas.
Era um contraste grande vê-lo junto de seu chefe. Um estava sempre todo de preto e montava um cavalo caramelado; o outro estava sempre de branco, com fivela e joias de prata em seu cavalo igualmente branco. Não havia um cidadão aguaboense que não reconhecesse a dupla quando chegavam trotando no centrinho da cidade. Existia uma sensação de que andavam sempre perfilados, em uma ressonância de igualdade. Somente olhares mais atentos percebiam que Geraldo Montalvão estava sempre um quarto de passo à frente, como se ele dissesse “este é meu homem de maior confiança, depois da confiança que tenho em mim mesmo”.
E o Corvo morreu.
Morreu de forma estúpida, cumprindo uma ordem inacreditável e tomado de cegueira. Se especula aqui e ali o que Geraldo haveria prometido a Reginaldo quando pediu a ele que fizesse uma das coisas mais desumanas pensáveis: simplesmente não se manda matar o próprio filho. Uma parcela dos curiosos dizia que um terreno de mais de 100 hectares, não muito longe de Água Boa, já teria sido até transferido para o nome do lacaio. O tabelião da cidade disse algo assim. Outra parcela de interessados de língua afiada dizia que o patrono dos Montalvão não ofereceu nada, apenas mandou e Reginaldo obedeceu por uma lealdade muito íntima e particular.
Três ou quatro pessoas também propunham uma outra verdade: Geraldo não pediu ao funcionário que ele matasse Mateus. O Corvo do Mato teria agido por conta própria, com inveja. Essa especulação tinha uma certa profundidade conspiracional e um verniz de veracidade típica do interior: envolvia sexo às escondidas.
Há 40 anos circula um rumor que vem ganhando muita força sobre um suposto caso de Geraldo com uma moça sem posses de uma cidade vizinha. Na época, ele teria 20 anos e ela 18 recém completados ou quase isso. Fugiram para um matinho, dizem, e ali mesmo fizeram a bobagem. O patriarca naqueles tempos, Régis Montalvão, sumiu com a menina das vistas de todos. Em suma, a especulação geral é de que ela ficou grávida, pariu um filho indesejado e seja por homenagem infantil ou para tripudiar diante da desgraça, chamou-o de Reginaldo, uma honraria composta. Quando Régis morreu, poucos dias depois, Geraldo moveu mundos e fundos para resgatar o garoto que seria seu primogênito bastardo e desde então os dois não haviam se separado, bem como o Corvo não se separava de seu cavalo. A suposta mãe de Reginaldo estava supostamente morta há anos.
Isso é o que dizem!
E suposições postas de lado, é fato verídico que quando Reginaldo morreu, tinha 39 anos, como atestado em seu óbito. A idade era convenientemente próxima do resultado da sacanagem no matagal. Sobre a inveja que motivaria a ação individual do homem, era uma questão lógica e psicanalítica: enquanto Mateus era prole legítima e de bom casamento, Reginaldo era adulterino e um filho da Mãe Sem Nome.
Teorias que não se concretizaram cem porcento em materialidade. Geraldo foi o mandante no fim das contas. Agora estava preso na delegacia para não ser morto nas ruas. Não falava nada, como se tivesse perdido a língua. Ficou isolado.
“Eu mesmo encontrei a prova cabal”, dizia o senhor Eustáquio complementando suas honrarias. “Eu digo isso e ninguém me ouve: quando salvei Mateus Montalvão, já sabia que o culpado do quiproquó era o pai dele. Nunca fui com a cara daquele homem”.
Não foi o dono do sacolão que matou a charada.
Quando Mateus clamou por ajuda e ele atendeu, não muito satisfeito com o pedido, correram por uma estradinha de terra por alguns minutos até acharem o Corvo-caído-no-Mato, com o alazão se debatendo e esmagando a perna direita e metade do corpo do homem. Eustáquio disse que nunca havia visto as botas de Reginaldo sujas, mas dessa vez estavam imundas e embebidas de sangue. Isso era verdade!
Em seu relato, provavelmente a fonte mais fidedigna e científica desta história, Mateus disse que fazia naquele dia uma caminhada no limiar vespertino. Estava nos arredores da Fazenda Helena Montalvão e entre suas observações se assustou quando notou uma movimentação estranha e sombria vindo de longe. Quando apertou os olhos, enxergou Reginaldo. Aliviado, acenou e gritou para ser percebido.
“Ah oooh ah!”
O Cavaleiro Obscuro não reagiu. Continuou vindo lentamente como se ignorasse a presença de, para alguns, seu suposto irmão mais novo. Era a própria Penumbra Encarnada trotando por entre os últimos raios perdidos de sol de uma quarta-feira de cinzas.
Mas Mateus era desses rapagões altos e vistosos. Como Reginaldo não o teria notado? Ficou muito encucado e esperou. O herdeiro Montalvão estava no auge da forma física e como fruta madura, aos exatos 30 anos, chamava atenção de quem fosse que o fitasse. Não é porque não visitava sempre sua cidade natal que não seria reconhecido, ainda mais pelo Braço Direito do Pai.
Aliás, é bom dizer que toda Água Boa secava Mateus Montalvão. Não existiam dúvidas sobre quem seria o maior partido da cidade: ele era o partido. Chapa Única. Mas como dito, e para desespero da mulherada, não era sempre que aparecia nas redondezas. E mesmo que vivesse ali, não tinha olhos para nenhuma aguaboense. Nunca teve. Foi na Capital que acabou se apaixonando por um colega de laboratório e esse era o seu maior segredo: gostava mesmo era de rapazes.
O primeiro que amou foi o próprio Reginaldo, antes da fama de Corvo do Mato.
Depois apareceram Carlos Pimenta, Júlio Faria, Celso Pimenta – irmão mais novo de Carlos – e Silas Figueiredo, herdeiro do frondoso varejão Verdura Boa. Amou a todos em silêncio e ao mesmo tempo. Desde os 9 anos percebeu que amava a eles e não a elas. Pensava estar errado, ou melhor, sabia que estava errado. Culpava a mãe que sem querer matou no parto e que não permitiu que ele se apaixonasse nem ao menos por ela. Culpava o pai que nunca se importou o suficiente com ele para questioná-lo sobre namoradas e nem quis levá-lo a um cabaré. Esse sentimento de culpa foi o afastando de Água Boa.
Nunca imaginou que a maior briga que teria com o pai seria sua escolha de partir para a Capital. Foi-se embora contra a vontade de Geraldo e decidiu estudar ao invés de ser preparado para herdar os negócios da família. “Era o natural!”, todos diziam inconformados pela escolha descabida de Mateus. Mas são exatamente as coisas que escapam à naturalidade que causam esses problemas que se tornam graves com o tempo.
Mudou-se, concluiu os estudos aos 23 anos e há sete primaveras trabalhava como biólogo. Fez seu mestrado em botânica e agora se empenhava no doutorado. Ninguém em Água Boa o chamaria de doutor quando se laureasse novamente, já chamavam-no pelo simples fato de ser herdeiro de Geraldo Montalvão.
“Doutor”, disse o senhor Eustáquio quando encontraram Reginaldo esmagado, “como é que isso acabou assim?”
Mateus não sabia nem por onde retomar a história. Como não foi reconhecido de primeira pelo Corvo do Mato, esperou e esperou o trote lento que se avizinhava. Gritou novamente:
“Ah oooh ah! Reginaldo!”
Nenhuma reação da parte do cavaleiro.
Quando finalmente Mateus reparou, no fusco do lusco-fusco, que Reginaldo estava carregando uma espingarda, reparou também o zunido dos primeiros disparos em sua direção.
O alazão cabreou e relinchou.
Apesar do choque inicial, Mateus Montalvão correu instintivamente na direção oposta, procurando a estrada para ir rumo ao centrinho. Seria um caminho longo, mas não conseguiu pensar em nada mais. Correu e ouviu novamente os disparos. Por algum motivo, Reginaldo não o perseguia com velocidade: continuou trotando na medida em que o sol deixava de existir no horizonte.
Enquanto escapava, o rapaz pensou em uma centena de coisas, mas aquela que mais afligia era seu desentendimento com o pai. A mágoa completava 11 anos e as feridas abertas ainda doíam. Estava em Água Boa naquele fim de carnaval porque fora convidado pelo pai para conversar e precisavam de fato conversar com urgência, mas cada um com suas justificativas. Ah, o quase-crime premeditado! Mateus queria colocar pingos nos is, Geraldo queria colocar os pingos em seu próprio filho.
Quando estava sem fôlego e conseguiu olhar rapidamente para trás, o rapaz sentiu falta dos tiros e do barulho da relva se mexendo. Imaginou estar morto pois não fazia sentido Reginaldo ser tão ruim na pontaria dessa maneira, não era a fama que o precedia. Sentiu as pernas fraquejando e o sangue escorrendo em suas calças. O chão parecia sair do lugar e a cabeça estava leve e zonza. Era tudo coisa de sua cabeça: se mijou todo e agora sentia o baque da adrenalina lhe devolvendo os sentidos mais humanos. As mãos tremiam como se estivesse num estado de degeneração de décadas.
Silêncio no matagal.
As batidas do coração eram os únicos tamborins no encerramento da carneia.
Onde estava Reginaldo? Mateus se agachou e observou cuidadosamente o ambiente onde estava. Era princípio de noite e podia ver algumas luzes de Água Boa a sua esquerda e um suave movimento vindo do lado oposto. Não era um movimento em sua direção, estava estacionado. Gritou pela terceira vez:
“Ah oooh ah! Reginaldo? Tá me ouvindo?”
“So-socorro”, ouviu de volta o clamor sem forças.
Enquanto trotavam atrás de Mateus, o Corvo do Mato e seu alazão foram vítimas de um buraco relativamente pequeno, mas perigoso. Estava ao lado de um bocado de lama acumulada. Quando o cavalo errou os passos, escorregou e as patas deslizaram. Era bom de mira, mas nunca atirou em ninguém de verdade. Estava naquele momento lutando contra si mesmo, lutando contra seu meio-irmão. Ele não tinha certeza sobre essa informação, mas não era bobo. “Bang” com uma mão ele atirava. “Bang” com a outra mão enxugava as lágrimas.
Mas o cavalo escorregou, errou o passo por causa do Buraquinho. “Bang” na orelha da montaria e, sem querer, “Bum” no chão. Mais de quinhentos quilos esmagaram uma parte do cavaleiro e os espasmos de dor do cavalo se encarregaram de fazer com que o sofrimento de Reginaldo virasse agonia.
“Vou buscar ajuda!”, Mateus Montalvão recuperou as forças e correu.
E foi assim que achou o senhor Eustáquio no sacolão Verdura Boa, às 18:33, para tentarem salvar Reginaldo. Quando voltaram ao lugar da tragédia, o Corvo tinha pouca vida e o cavalo pouca energia. Não foram capazes de empurrar ou puxar o animal e, sem forças, Reginaldo não era capaz de se mover.
“M-Mateuzinho”, falou uma maritaca que voava sem rumo ou alguma coisa assim, “M-Mateuzinho” e lentamente Reginaldo deixou de ser. Isso aconteceu há 7 longos dias.
***
Geraldo Montalvão teve a prisão preventiva decretada quando veio à tona a informação da compra do terreno de 100 hectares nas redondezas de Água Boa, terras prometidas a Reginaldo. Isso e as conversas encontradas no telefone do falecido Corvo do Mato. A quantidade de mensagens de áudio que incriminavam o idoso era infindável. A que chamou mais atenção quando foi publicada na internet e amplamente encaminhada por toda a região continha os grunhidos e devaneios gagás de Geraldo falando com clareza:
“Se Mateus matou a própria mãe dele 30 anos atrás, Reginaldo, quero que você, que foi tirado da sua por culpa do meu pai, mostre a ele quem será o único herdeiro derradeiro da Família Montalvão. Meu remorso não vai ter fim enquanto meu filho continuar respirando o mesmo ar que respiramos” – macabro.
Mas Reginaldo não teve a coragem necessária quando chegou a hora.
***
Anos e anos se passaram até que Mateus Montalvão se interessou por visitar seu pai moribundo quando soube que, já muito acabado, estava com os dias contados. Aquele colosso de homem estava agora preso na enfermaria do presídio onde cumpria sua pena. Ninguém gostava dele à medida em que definhava, parecia afastar de si até mesmo até a própria sombra.
Quando o médico os deixou a sós, o rapaz ainda frondoso sentou-se ao lado do pai e o mirou com medo. Estavam calados e nenhum dos dois parecia ter vontade de começar a falar. Mas foi Geraldo quem se pronunciou primeiro e tudo se resolveu tão brevemente que parecia ficcional, engenho da mente de alguém ocioso!
O Velho, quase sem forças, disse:
“Espero que me desculpe, Mateus, pelo menos o seu perdão vai me permitir morrer em paz”.
O rapaz gelou e ficou em silêncio. Sentiu-se como um padre prestes a conferir a extrema unção a um enfermo pecador. Pensou por alguns segundos e não conseguiu dizer nada. Lembrou-se do Corvo do Mato e dos tiros de espingarda. Lembrou-se do amor que nunca recebeu e do amor que nunca pôde dar e, ainda que quisesse ou conseguisse emitir algum som, teve as elucubrações interrompidas pelo pai. Geraldo, em um último ato de soberba, digno dos tempos prateados aguaboenses, balbuciou sem conseguir olhar nos olhos do filho que um dia quis ver morto:
“Primeiro você matou minha mulher, depois abandonou sua terra. Agora... Agora recusa as desculpas de seu próprio pai. Eu errei, mas fui o responsável por te permitir possuir um Legado”, pronunciou como se fosse nome próprio com primeira letra em caixa alta.
Mateus não se aguentou e finalmente respondeu ao pai velho, decrépito e algemado à cama hospitalar daquele ambiente que era branco como Geraldo Montalvão um dia fora:
“Prefiro a miséria do que prolongar o seu legado”, dessa vez o som era minúsculo de diminuto.
Foi-se para sempre, mas nunca foi de fato miserável. Apesar do drama familiar, terminou seus estudos, casou-se com o supracitado colega de laboratório e hoje vivem tranquilos, felizes e distantes de Água Boa.
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