2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: SYLVIA MELLO — CATEGORIA CRÔNICA
- Casa Brasileira de Livros
- 17 de jul.
- 4 min de leitura

SOBRE A AUTORA
64 anos, além de escritora, é psicóloga – analista junguiana –, e eutonista. Na Psicologia, é autora dos livros Maternidade e Profissão: Oportunidades de Desenvolvimento, Arquétipo do Caminho – Guilgamesh e Parsifal de mãos dadas, Venenos e Antídotos –ensaios sobre a clínica junguiana e mitologia grega, e coautora de Mitologia Simbólica – Estruturas da Psique e Regências Míticas, e Ulisses, o herói da astúcia. Em literatura publicou o romance Segunda Pedra (2012), além de contos em antologias, e o livro de contos Ganga (2018), todos pelo selo Edith.
A CRÔNICA SEMIFINALISTA
Abismo
Um sábado de céu azul me convida para uma caminhada pelo bairro. Gosto de andar nas manhãs de sábado em direção a uma padaria mais distante, já fazendo do exercício minha reserva de créditos calóricos para o pão fresquinho com azeite e sal. Ao sair do edifício, antes mesmo dos pés cruzarem a porta, vejo pelo vidro o rapaz que costuma dormir na calçada, logo à frente, ao pé da palmeira. Dois passos para fora e já é possível enxergá-lo com nitidez. Toda vez é a mesma coisa: me detenho uns segundos. Às vezes, o cheiro de muitos suores sobrepostos passa pelo vão da porta e prendo a respiração. Hoje me pego sorrindo, admirada com a lição de entrega com que aquele corpo esparramado me presenteia quase todos os dias, faça chuva ou sol. Nos dias de chuva e frio, ele se cobre com um daqueles plásticos pretos que impedem curiosos de saber com certeza o que há ali embaixo. Talvez seja esta a única situação de privacidade que uma pessoa em situação de rua possua; um plástico preto. Nossos turnos são trocados. Ele dorme de dia, e nos vemos apenas quando ele ajeita a cabeça sobre um trapo, ou outro improviso de travesseiro, em algum intervalo entre um lado e outro da posição do sono.
Uma vez, a primeira vez, ele estava acordado quando saí do prédio, e conversava com uma mulher. Pareciam um casal. Pareciam apaixonados. Falavam e riam, entre um pedido e outro de um trocado ou moeda, e voltavam a se olhar, falar, se cutucar, como fazem os amantes. Aquele amor me tocou. Imaginei a dificuldade cotidiana que o casal enfrentava para estar junto na intimidade. Um plástico preto seria suficiente? Eu subi ao apartamento e voltei com dois pratos de comida, um desodorante e um sabonete. Sorrisos para mim. Depois daquele dia, o rapaz – nunca mais vi a moça –, passou a me cumprimentar todos os dias em que calhava dos nossos olhares se cruzarem, sem pedir nada em troca. “Bom dia, dona”; “bom dia, moça, bom passeio”. Uma delicadeza.
Tudo isso para dizer que ao vê-lo dormindo na calçada, não me canso de admirar a entrega. O contraste entre uma vida miserável com provações como a fome, o frio, o desprezo de quem passa, as ausências todas – de família, de acolhimento, de conversas, de conhecimento das últimas notícias sobre a política, a inflação ou o aquecimento global –, tantas ausências, e o semblante plácido e relaxado como o de um gozo pós-coito; as pernas frouxas atrapalhando o trânsito dos pedestres, pernas terminando em solas pretas, cascudas e indiferentes ao solo, os braços jogados para cima como os de um bebê adormecido, e a boca semiaberta anunciando uma palavra que nunca chega. Levo a imagem do rapaz comigo no caminho à padaria.
Três ou quatro quarteirões adiante, outra cena me impacta. O que chega primeiro é uma voz de protesto: “Pouca vergonha, onde já se viu?” Em segundos, encontro o que causa tanta indignação à mulher esperando para atravessar a rua na faixa: outra mulher acaba de retirar seu vestido e, completamente nua, o sacode com força, como querendo expulsar possíveis pulgas invasoras. Ao longo da calçada vê-se todo o seu patrimônio. Parece ter sido dia de lavanderia; algumas roupas se esticam ao sol formando uma espécie de galeria, ou um pequeno brechó a céu aberto, como os que os ambulantes montam sobre um pano esticado em meio metro de chão, próximo a feiras e lugares de muita circulação. Observo seu corpo. Lindo. Uma mulher negra, alta, magra, com peitos empinados, jovem, com cabelos Black Power, tudo no lugar, como se diz. Só seu vestido que teima em descumprir a regra e sacode, sacode. Os olhos da moradora de rua não encaram ninguém que por ventura se sinta, como eu, atraída pela cena inusitada. Ela faz o que tem que fazer, concentrada em si. Meu segundo pensamento, após admirar seu corpo: “que liberdade!”. Diminuo o passo diante daquele momento de desprendimento absoluto. Me imagino naquela situação, mas é quase impossível, mesmo que por hipótese. A partir dali, o rapaz descamisado ganha a companhia da jovem na minha ida à padaria.
Encontro uma mesa na parte externa, minha preferida. Cumprimento a garçonete que costuma me atender e faço meu pedido. Baixo meus olhos para o celular para conferir mensagens e ouço um chamado: “senhora, senhora”. A princípio, a interrupção me irrita. Um homem na faixa dos cinquenta tenta ter a minha atenção e se desculpa. Seu rosto traz traços de alcoolismo, com inchaços, dentes faltantes e um aspecto de sofrimento que também se fazem notar na voz, meio suplicante, mas sem ser invasiva. Na sua educação, me pede um pão com ovo. Acho singelo. Um pão com ovo. Isso lhe bastaria. Eu lhe respondo que sim, e peço à garçonete que coloque na minha conta um pão com ovo para aquele senhor. Ele me agradece e diz que esperaria a encomenda na porta da padaria. Vejo, em minutos, o pedido sendo entregue, a primeira mordida adiada e o senhor se aproximando novamente de mim: ele na calçada, com algumas plantas fazendo a vez de uma cerca viva que falha em seu propósito, eu, sentada, sem pressa, tomando meu café da manhã. Ele vem para agradecer mais uma vez por eu tê-lo atendido em sua necessidade e me encanto com seu modo suave. Me volta à mente o contraste entre a penúria material e a riqueza da delicadeza, da liberdade, da gentileza dessas vidas invisíveis. Agora somos quatro ali à mesa, o rapaz adormecido, a mulher nua, o homem faminto e eu. Deixo o café pela metade e parto.
Comentários