2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: WILLIAM KOOPMAN — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros
- 15 de jul.
- 8 min de leitura
O autor autorizou apenas a divulgação de seu texto, sem biografia e foto.
O CONTO SEMIFINALISTA
A Vistoria
Tinham dito na imobiliária que a vistoria seria às duas, mas, ansioso como estava, já me plantei na frente da casa à uma e meia. Tinha morado ali por um ano inteiro, embora quisesse ter saído bem antes. Se há lugar em que posso dizer que não fui feliz, é aquela casa. Claro, a culpa não é do lugar – nem das energias, como gostam de dizer os espíritas, que pra tudo têm uma explicação que se resume em dizer que as coisas que movimentam o mundo não são alcançadas por nossa vista –, mas é inevitável me lembrar da maré de azar que tinha caído sobre mim naqueles tempos sem me lembrar daquela casa. Só que eu não estava simplesmente saindo dali por razões psicológicas – na época eu nem tinha direito a esse tipo de coisa, se é que já tive um dia... É aquela coisa: você só vive num lugar de que não gosta se tiver um bom motivo, e só sai dele se tiver uma boa desculpa. Meu bom motivo era a multa; se eu quisesse sair antes de um ano, teria que pagar um valor que estava fora da minha realidade, por isso me conformei em estar preso ali até que se completasse o tempo necessário. A boa desculpa, aquilo que eu disse pra mim mesmo na época, era que, na situação em que me encontrava, tinha que sair daquele aluguel assim que possível, então juntei minhas coisas e fui para a casa de um amigo, na Vila Aparecida. Assim eu poderia, com o dinheiro que tinha guardado, procurar outro trabalho sem ter que me desesperar. Bem, era nesse pé que eu estava.
Depois de uns minutos, cansado de ficar ali esperando, sentei no meio-fio e acendi um cigarro. Olhei no relógio e vi que ainda faltavam dez minutos. Tentei me distrair observando os carros que passavam. Um conhecido passou num Astra, deu um toque de leve na buzina e acenou pra mim. Acenei de volta. O semáforo fechou, ele parou na fila. Atrás dele, bem na altura do meu portão, parou um Monza velho, fedendo gasolina. Terminei de fumar meu cigarro e ia jogar a bituca acesa no meio da rua, mas, com aquele Monza ali, tive o cuidado de apagá-la antes. O sinal abriu, meu conhecido seguiu adiante, o Monza virou à direita, em sentido à Vila Aparecida, bairro onde eu tinha me arranjado então.
Aqueles dez minutos se arrastaram; levantei e entrei pelo portão e fiquei na garagem esperando o sujeito. O cara chegou às duas em ponto; era um homem de estatura mediana, ou talvez mais para baixa, usava tênis de corrida, calças de feltro, uma camiseta com alguma frase motivacional já batida. Tinha já uns cabelos grisalhos, mas não parecia ser muito velho. Com certeza não era o tipo de cara que eu esperava encontrar. Ele me estendeu a mão.
– Prazer, sou o Flávio – ele disse. Apertamos as mãos. Ele pegou a prancheta que vinha segurando debaixo do braço.
– Prazer – respondi. Na hora não me ocorreu que, por cortesia, eu devia ter me apresentado de volta. Ou devo ter pensado que seria uma inutilidade, pois ele já sabia quem eu era.
– Vamos começar?
– Fique à vontade.
Ele primeiro examinou a pintura das paredes externas, então atravessou o hall até o quintal dos fundos e examinou o muro de divisa entre o meu quintal e o do vizinho, sempre consultando os papéis que trazia presos na prancheta e fazendo anotações a lápis. Deu uma olhada no quarto de despejo, único lugar em que não precisei pôr mãos quando me mudei, pois sequer tinha pisado ali nos meses todos em que vivi na casa. Eu ia seguindo-o, mas mantendo certa distância, pra não deixar parecer que eu estava nervoso ou querendo botar alguma pressão. Ele ia fazendo seu trabalho como se eu não estivesse ali.
– Muito bem – ele disse, depois de passar a vista na vegetação alta do quintal.
Voltamos pelo hall externo e entramos pela porta da cozinha. Ele passou direto pelo cômodo, primeiro foi examinar a sala.
– A pintura é nova? – ele perguntou.
– É, sim.
– Você pagou pra fazerem ou foi você mesmo que fez?
– Fui eu.
– Tá um pouco manchada.
Ele mostrou com o indicador um determinado ponto da parede. Confesso que não enxerguei o defeito que ele estava apontando ali.
– Bem, mas não é nada grave. Não vou anotar nenhuma observação pr’esse cômodo. Vamos prà cozinha.
Na cozinha, ele olhou o gabinete, abriu as portas e as gavetas.
– Aqui tá um pouco afundado – ele disse, apontando pro fundo do gabinete. – Houve vazamento? Cê chegou a mexer aqui?
– Não, nada.
– Bem, não vou marcar. Isso aqui é coisa pequena.
Ele foi pro banheiro. Apertou a descarga e passou a mão na parede.
– Precisava trocar a válvula Hydra, vê? Tá vazando um pouco de água.
– Já tava assim quando mudei.
– É, mas não consta aqui na descrição. Bom, mas acho que também não há necessidade de tomar nota disso. Vamos ver o resto.
E assim ele continuou; passava pelos cômodos, apontava um ou outro defeito e dizia que não ia tomar nota. Fiquei me perguntando o quê que ele queria com aquilo, se ele queria era sacanear o proprietário da casa e a empresa em que trabalhava ou se estava preparando o terreno pra me pedir um suborno depois. Eu me lembrava da outra vistoria pela qual eu tinha passado, de uma casa que eu tinha alugado por outra imobiliária. O vistoriador daquela ocasião, como é de praxe no trabalho deles, inventou tanta coisa que eu praticamente tive que reformar a casa inteira pra poder sair. E agora esse outro vistoriador via os defeitos e os deixava passar. Fiquei sem entender.
Depois de ver o último cômodo, voltamos prà cozinha. Ele pôs a prancheta em cima do gabinete e ali preencheu o resto da ficha, inclinado sobre o papel. Me mandou assinar, tirou o carbono e me deu a outra cópia.
– Tudo certo? – perguntei, meio apreensivo.
– Tudo certo.
– Posso já entregar as chaves, então?
– Sim.
Tudo foi tão fácil que cheguei até a duvidar. Então dei graças a Deus por me ver livre daquilo. O vistoriador já estava juntando suas coisas, quando parou e deu uma boa olhada na minha assinatura. Virou pra mim e disse:
– Zanini... Esse nome não me é estranho. Italiano?
– Sim, sou descendente de italianos.
– Quem é seu pai?
– Alberto Zanini. Falecido já.
Ele pensou um pouco.
– Alberto Zanini... Quê que ele fazia?
– Era comerciante.
Esperei ele perguntar mais coisas, pedir mais detalhes. Mas não perguntou. Em vez disso, começou a mexer nos bolsos da calça. Tirou uma paranga de fumo e um pedaço de papel de seda enrolado.
– Sabe dechavar? – perguntou.
*
Estávamos sentados ali no chão da cozinha. Ele disse, me olhando fixamente com seus olhos avermelhados, que não tinha agenda para o resto do dia e que, contanto que estivesse de volta à imobiliária às seis, não haveria nenhum problema se se demorasse um pouco ali. Disse também que já estava de saco cheio daquele emprego, que estava contando os dias pra sair daquele lugar. Tinha já algo em vista, isso tinha. Mas ele não contou o que era, ou contou e eu não lembro. Ouvi essas explicações quando já estava bastante chapado. Pra mim não faria diferença nenhuma se ele tivesse me contado essas coisas ou não. Eu só fazia rir de tudo. Tive a impressão de que o eco de nossas vozes estava ficando mais alto naquela casa vazia. Ele parou de falar por um minuto, então perguntou:
– Onde a gente pode arranjar alguma coisa pra comer?
– Tem uma padaria aqui na frente, só atravessar a rua.
Remexeu os bolsos e tirou uma nota de cinquenta.
– Tó, vai você lá. Compra uns sonhos, traz um guaraná também. E me traz o troco.
– Tá bom.
Levantei e fui. Na padaria, a mulher que me atendeu deve ter percebido que eu estava fumado. Eu sempre ficava com uma expressão meio besta quando estava sob efeito da erva, e ficava todo lerdo quando, chapado, tinha de falar com alguém. Dei o dinheiro a ela e juntei as sacolas e ia saindo, quando ela me chamou de volta.
– Moço, seu troco – ela disse.
– Nossa, já ia esquecendo – respondi, pegando o dinheiro. Se não me engano havia uns trinta e cinco reais ali. – Obrigado.
Já ganhando a rua, ri tanto que cheguei a soluçar. Depois olhei em volta, me certificando de que não estava sendo observado por ninguém. Enquanto olhava, aqueles arredores começaram a me parecer estranhos, parecia que eu nunca tinha estado ali antes. Aquela rua, aquelas casas, aquela padaria... Tudo era estranho pra mim. Não havia ninguém nas calçadas, nem carros passando. Era como se o tempo tivesse congelado.
Atravessei com as sacolas e entrei.
Ele ainda estava sentado no chão, no mesmo lugar. Abriu um sorriso quando me viu entrando.
– Opa, até que enfim – ele disse. – Se perdeu atravessando a rua, filho?
– Demorei tanto assim? – respondi, desatando a rir novamente.
– Não, tô só enchendo o saco. Dá essas sacolas aqui.
Reparei que ele não tinha pedido o troco de volta. Fiquei na minha. Ele abriu uma das sacolas, pegou um sonho e começou a devorá-lo. Seus lábios ficaram sujos de açúcar de confeiteiro.
– Senta aí, come também – ele disse.
A verdade é que eu não estava com fome. Em todas as vezes que fumei, acho que nunca cheguei a sentir aquela larica que a maioria dos que fazem uso da erva sentem. Mas sentei ali do lado dele e comi um dos sonhos mesmo assim.
– Trouxe copos? – ele perguntou.
– Ih, esqueci.
Eu tinha trazido um guaraná de dois litros. Como íamos tomá-lo sem nenhum copo, não sei.
– Volto lá buscar – eu disse.
– Não, deixa quieto. Tomamos no bico mesmo.
Desatarraxou a tampa, meteu o gargalo na boca e tomou quase a metade do guaraná. Claro, dei muita risada daquilo. Ele então me estendeu a garrafa.
– Toma aí, sua vez agora.
Peguei a garrafa da mão dele. Fiquei com um pouco de nojo de colocar minha boca naquele negócio todo babado.
– Não vai beber?
– Vou.
– Então bebe.
Bebi, estava com a boca seca. Matei quase todo o resto do refrigerante. Ele tomou a garrafa da minha mão, foi até a porta da cozinha e jogou ali pelo hall externo o restinho do guaraná.
– Esse é do santo – disse.
Eu já tinha rido muito, mas acho que nada me fez rir mais do que aquilo. Ele voltou a sentar do meu lado e devorou o resto dos sonhos. Acho que havia uns seis ou sete ali. Comeu todos sozinho. Fiquei olhando. Ele parecia um cachorro esfomeado.
*
A brisa foi passando, aos poucos fomos voltando ao nosso estado normal. Olhei no relógio. Já passava das cinco. Fui o primeiro a levantar.
– É, acho melhor irmos – eu disse.
Ele levantou e pegou suas coisas no gabinete.
– Por aqui já terminamos – ele disse, voltando a falar naquele tom de formalidade afetada. – Já podemos ir.
Saímos e transpusemos o portão. Apertamos as mãos e cada um seguiu por seu lado. Ele foi até o carro dele, que estava estacionado numa vaga a uns duzentos metros da casa, e eu segui caminhando até a Vila Aparecida. Já de carro, ele ainda passou por mim. Então fez um retorno e seguiu rua acima.
*
Depois de um tempo, consegui me arranjar, me estabilizei, conheci a mulher com quem estou casado até hoje, tivemos três filhos... Nunca mais fumei maconha, nem cheguei a encontrar de novo aquele sujeito.
Já depois de uns anos casado, me lembrei, sei lá por quê, dessa história. Contei à minha mulher, ela ouviu tudo sem me interromper. Depois que eu terminei de falar, ela disse:
– E você acha que eu acredito nisso? Que bobagem.
– Você acreditando ou não, é verdade, aconteceu – respondi.
Mas não fiquei chateado por ela ter achado minha história uma bobagem. Se outra pessoa tivesse me contado aquilo, eu provavelmente também não teria acreditado, assim como não acreditei quando um colega de trabalho que tinha cumprido doze anos na Casa de Detenção, empregado graças a um programa de ressocialização promovido pela empresa, me disse certa vez:
– No Carandiru, sim, eu era feliz.
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