2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS VENCEDORES: ANA CLÁUDIA RODRIGUES — 2º LUGAR CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros
- 14 de jul.
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SOBRE A AUTORA
Ana Cláudia Rodrigues nasceu em Palmeira das Missões, RS. É Medica, graduada na Furg, com residência em Pediatria e Endocrinologia Pediátrica na UFPR. Tem contos publicados em coletâneas e composições nativistas que participaram de festivais. O amor pelos livros surgiu cedo; mãe professora de português, pai jornalista, tem uma herança transgeracional de elo com as palavras e com as coisas da terra.
O CONTO VENCEDOR (2º LUGAR)
Uma carta para Deinha
É diverso, muito diverso, o modo de viver a mesma vida. E o querer é quem faz uma vidinha tecida em pano ordinário ganhar diferente feitio.
É o que vejo assistindo ao rebuliço de Deinha em volta da pitangueira. Chega a assustar a passarinhada que pia-pia enquanto o sol se deita. Ela roda a saia, cantarola suspirosa, ergue-se nos galhos, balança, salta longe fazendo gritaria.
Reprimo, reprimo. Menina despropositada.
Ela ri e se põe a girar em torno da árvore, como se a pobre fosse o parafuso que lhe falta. Tonga, você é tonga, Manuela! É o que me diz.
Tonga? E bobeira não é desfiar inventos em um passar de hora que não cansa de tanto passar? Tonga tem parecença é com a caduquice dela.
Eu sei é desse meu quinhão de céu alaranjado que cruza sobre a mangueira, a criação entrando ao final do dia, das linhas costurando esperas nas barras de estopa branca, do tempo vagaroso da querência. Mas o tempo da Deinha é outro, caborteiro.
E assim é que penso o que pensei. Vivemos nós duas, pai, mãe e o cachorro, num esconderijo de mundo. Uma casinha aqui, outra depois de muito subir e muito descer, longe da cidade um quarto de dia. E aqui existimos, cevando os mesmos mates todas as manhãs, levantando a mesma poeira ao varrer o chão, ouvindo os mesmos causos, comendo o mesmo feijão, dando o mesmo milho para as mesmas galinhas, bebemos do mesmo olho d´água, dormimos até na mesma cama, eu e ela. Tiramos as mesmas letras na escolinha da Zefa, vimos escondidas as mesmas revistas de novela. E sendo tudo igual, se mostra tudo diferente.
Deinha é descabida, o que ela quer é encantamento. Na cozinha de fogão a lenha, enxerga toalhas de renda, castiçais, criados a lhe servirem. E fala. Fala com a tal governanta para polir a prata que hoje é o dia de seu noivado. Na escada tosca da varanda ela estende seu tapete de ilusões, bonito, vermelho, e sobe os degraus com o terço nas mãos, para esposar seu invisível noivo. No quarto, veste-se e despe-se, dança diante do espelho quebrado, por bailes e alegrias que só ela vê. Pensa que apenas a cidade é colorida. A mãe pensa que ela é tantã. E o pai não pensa, faz trabalhar a cinta nas pernas da Deinha. Moça que chora não inventa safadeza.
Aconselho que esfregue os olhos dessa fantasia, que somos assim, gente simples. Sossega, Deinha! Ela retruca. Tonga, Manuela. Você não vê que o tempo está passando, Manuela? Não vê? Mas ele está vendo, ele está vendo tudo. Ele passa e me deixa aqui, desbotando. Eu me vou, um dia eu vou, que é para não me findar. E chora, chora, até dormir.
Certa feita, o galo cantou com uma novidade. Acorde, Manuela, acorde! A noite me trouxe um sonho muito feliz! E Deinha me contou de um rapaz, todo de branco, que lhe escrevera uma carta de amor. Paixão graúda! Mas, mas eu perdi, Manuela! Eu perdi cada letrinha! Jogou-se na cama em pranto medonho, desconsolado. Ela não lembrava das letras, não sobrou uma só palavra da carta em sua extraviada memória.
Não pude abafar aquela choradeira. Acendeu-se toda a casa no fogo da confusão. Até o cusco latia para a desvairada sonhadora. E das linhas esquecidas, a cinta do pai não olvidou nenhuma na caligrafia das pernas da Deinha.
Tanta lágrima engolida não lhe caiu bem. Acendeu vela atrás de vela para o Negrinho do Pastoreio, que encontrasse a lembrança perdida da carta sonhada. E mais velas para São Longuinho. A casa fumaceava na manhã destemperada. A mãe se espantava, temia pelo juízo e pelo couro da filha. Dona Candinha, a benzedeira, era a salvação. Que eu fosse com Deinha.
Estrada afora já nos desencontramos. Eu buscando as rezas que abrandassem aquele desatino, ela campeando nas pedras algum sinal, um nome que assinasse as declarações jamais declaradas. Olhe, Manuela! Aquelas ali desenharam um S! E roçava os lábios na pedra, suplicando. Sergio, Silvio, Samuel, Solano, Simão, diga-me, diga-me, quanto amor aquela carta carregava? E assim se repetiu com o G, o L, o Z, por três quilômetros e quarenta sujeitos. Quando beijava Miguel, chegamos à benzedeira.
Dona Candinha enxotou espírito com rosa branca, recomendou banho de mel e alecrim, e que colocasse uma folha de papel embaixo de uma imagem de Santo Antônio para que ele escrevesse ideia certa em sonho torto.
Tudo feito e ela só minguando, irresignada. Decidiu-se por leva-la ao médico antes que a anemia a consumisse em brancuras.
As léguas sacolejavam a condução e os nervos da minha adoecida irmã. Com a expectativa da cidade, Deinha avolumou a gemência e os tremores.
Lá, foi ao quarto, aos exames e ao soro. Foi quando se deu a revelação.
Ela abriu os olhos e deparou-se com um moço todo de branco segurando sua mão direita. A face esmaecida ganhou rubros ardores. É você! Deinha gritou e lançou-se sobre o enfermeiro. Ele tentou conter seus punhos sem lastimar tão débil criatura, mas ela revirava os olhos e agitava-se inteira, coisa feia! Escreva, escreva mais uma vez! O coitado olhava em torno sem entender nada. Desvencilhou-se do achaque e disparou corredor afora.
Tudo apaziguado, procurei pelo moço para explicar-lhe a vergonha. Recomendei, por todos os santos, que não revelasse sua graça. Ganhasse nome e aquele sentimento perenava. O enfermeiro abrandou seus temores, mas redobrou os cuidados, inominado. Afinal, Deinha era jeitosa e o sangue em mormaço parecia lhe dar nova beleza. Eu só espiava.
Não encontraram nadica nos exames de Deinha. Eram ansiedades de moça, disse o médico. Levassem-na, a cura eram calmantes e afazeres.
O pai a depositou na cozinha, dia após dia areando panela, mexendo tachos de marmelada. Deinha cumpria para fugir da cinta, mas à mesa não comia, o sono era de uis e ais. Arruinou. E caprichava na moléstia. Eu via que aquilo era um propósito ao despropósito. Ela queria era voltar para o hospital. Uma birra pior do que cruzeira.
E era. Tanto fez que perdeu as forças e deitou o doce por pernas e pés. Acudam! Para a cidade com a pobre emarmelada. Quanto estrago pode fazer uma vontade, esta tinhosa.
Cobriram Deinha de curativos, sem que ela murmurasse qualquer queixa. Mas na ameaça de alta, decaía. Queimava mais o peito do que as feridas. Amava e amava, olhos vidrados no enfermeiro. A carta, meu querido, a carta. E ele gostava! Pensa que eu não via? Ninguém nunca o olhara tão apaixonadamente, por certo.
Eu escutava os cochichos, os risos abafados e maliciosos das mulheres. Mesmo ele já se encolhia em vexame. Aquilo estava demais. Aviei ressábios.
Duas luas passaram e a pele de minha irmã foi endurecendo cicatrizes. Veja, mãe, a cabeça de Deinha está desenganada. Ficar no hospital é expor sua alma a traiçoeiros fantasmas, um atraso de cura. Embora com ela!
Em casa, invalidada para a lida, pediu-me papel e caneta. Entregue a uma dor sem nome, escreveu linhas vazias da lembrança do único amor que se faz eterno, que se finca na gente para nunca mais morrer: o perdido.
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