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2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS VENCEDORES: BRÁULIO FERNANDES JÚNIOR — 1º LUGAR CATEGORIA CONTO

  • Foto do escritor: Casa Brasileira de Livros
    Casa Brasileira de Livros
  • 11 de jul.
  • 7 min de leitura

O autor autorizou a divulgação de seu texto, mas não disponibilizou sua bio e fotografia para reprodução.


O CONTO VENCEDOR (1º LUGAR)


O  imitador


Deitado na grama, os olhos fitavam o vazio do céu. Assim ele passava o tempo, jogado num sofá ou reclinado no quintal, esperando o dia em que tudo se realizasse. Afinal, lera num livro que, se fixasse o olhar no céu concentrando-se em não piscar ou semicerrasse os olhos numa atenção cheia de cuidados, pequenas formas geométricas surgiriam; bastões, círculos quase transparentes deslizando na nervura de um olho.

Às vezes se surpreendia com essa fauna discreta e simples que vivia à distância de uma retina. Às vezes, no meio de uma atividade, esquecia o que estava fazendo para lembrar-se de olhar: e entre o olho e o objeto visto havia essa coisa vasta e inexplicável chamada visão. Seus olhos tentavam seguir as pequenas formas que surgiam; era inútil: quanto mais rápido os movia para acompanhá-las, mais rápidas se tornavam. Sua experiência nesse assunto não enganava: sabia ser uma batalha decidida e já se acostumara a perdê-la. O que o livro prometia, no entanto, era muito maior. Se fitasse o céu por tempo suficiente e passasse o estágio inicial, depois de árduo e dedicado trabalho tudo se imobilizaria num espasmo: e, cruzando rápido o vazio do céu, um anjo atarefado surgiria em triunfo.

Seu mundo era povoado de quase-aparições: anjos, silfos, fantasmas. Porque em algum momento da história uma promessa fora feita ao homem; em algum momento, esse homem veria o que normalmente não vê, sentiria o que normalmente não sente, saberia o que normalmente não sabe. Nesse momento dourado e solene, o homem enfim reconheceria a riqueza de um mundo escondido. E ele queria essa riqueza, queria o extraordinário. Então sentava-se olhando em volta como quem tem fome: os cílios tocavam-se uma, duas, três vezes… nada acontecia. Levantava-se, um pouco desiludido, porém certo de que amanhã tudo poderia ser diferente.

E recomeçava o trabalho. Ligara um dia o gravador, esperando ansioso ouvir os sons que apenas uma máquina poderia alcançar. As copas das árvores comunicavam seu farfalhar seco; grilos roçavam a estridência de seus corpos; pássaros diziam em língua de pássaros aquilo que somente pássaros podem entender. E ao fundo, como uma grande tela onde cada som tomava forma, o grande silêncio estendendo-se sem limites. Ouvia tudo com atenção, pois somente quando se sentava para escutar um som é que podia dizer que realmente o escutara, que conhecia um pouco mais o mundo… O que ele queria de verdade, porém, estava além do mundo. Ele desejava o sobrenatural, e por isso estranhava a vida ao seu redor.

— Se existe algo ao invés de nada — dizia consigo —, é porque alguma coisa sempre existiu… Mas onde?

Então olhava para si e para os outros. Quando saía de casa, buscava no olhar do outro uma confirmação. E nessa busca, esbarrava num obstáculo ainda maior. Aprendera que uma pessoa é sempre o máximo e o mínimo que se pode ter — e se às vezes alcançava aquele ponto de contato onde cada palavra trocada é um pouco do outro que se oferece, nesse momento sabia que algo de extraordinário acontecera, pois quase sempre tropeçava num mistério inatingível.

Gostava dessa imagem; gostava tanto que um dia, tendo avançado em experiências e aprendido um pouco mais sobre si, escrevera num pedaço de papel: “Esbarrei mais uma vez no mistério do outro; o incomunicável”. Sabia que o que existe é muito vasto e jamais caberia numa palavra, mas demorara um pouco para perceber as gradações. Pedras, plantas, grilos, pássaros e cães nunca serão iguais a outros, mas serão sempre mais iguais na sua espécie do que um homem pode ser igual a outro homem. O humano não cabe na palavra humanidade. Pois dentro de cada pessoa há um jardim escondido, um oásis escuro onde brilha discreta uma luz; e, como uma semente escondida na terra à espera da chuva e do sol que a despertem, essa luz aguarda paciente no escuro da terra, pronta para o dia em que for chamada à superfície. Então cresce, cresce, cresce — até atingir seu destino de sarça ardente e queimar em suas folhas. Cada fogueira no entanto é única: e nem todas as sementes chegam a acender o seu lume.

Uma pessoa não se satisfaz em sua própria natureza, está sempre buscando. Então, deve haver algo que a faça queimar… precisa haver. E era isso que ele procurava; era isso que sustentava os seus dias e, mesmo que não soubesse o que estava fazendo, agia como um cão teleguiado procurando o seu dono. Seu coração então se inquietava olhando para todos os lados: os sentidos inclinavam-se para fora, o nariz farejava, os olhos enxergavam, os ouvidos escutavam… e o máximo a que conseguia chegar era isto: uma sensação. A semente que tinha em si acendia e apagava como um vagalume; a fome que sentia era real, tão real que devia haver — precisava haver — tinha de haver algo que a saciasse… ou alguém.

Antes, imaginava que o que quer que tivesse criado o mundo — Deus — fosse ao mesmo tempo indistinto do que criara; que, na verdade, criar fosse uma palavra vazia: Deus não teria criado nada porque tudo o que existe existiria desde sempre, e procurá-lo numa pedra seria o mesmo que procurá-lo no céu. Também precisaria ser muito amplo; tão amplo que se dissolvesse em todas as coisas como uma grande alma que habitasse o mundo. Esse Deus, porém, apesar de encarnado, era abstrato demais, impessoal demais, isento demais para querer uma pessoa.

E no entanto, o desejo que ele tinha de se entregar precisava de braços que o recebessem. Foi quando, numa dessas tardes de assombro, decidira ir à biblioteca do pai. Sempre o fascinaram as estantes pesadas de livros. Era atraído sobretudo pelo que não compreendia; por aquilo que, ainda não realizado, carregasse em si a promessa de realização. Admirava os títulos, as páginas amareladas, folheando cada livro como à busca de um tesouro. E embora já conhecesse o que havia ali, ainda podia descobrir uma novidade — então vasculhava, remexia, abria gavetas… E às vezes ocorria de não sair de mãos vazias.

Nesse dia, examinando o fundo de uma gaveta, encontrara um pequeno pacote pardo e, dentro dele, um livro minúsculo de capa lisa e azul com os dizeres: “A Imitação de Cristo”. Reconhecia o rosto de Cristo, mas não sabia quem ele era. Não compreendia o que lhe ensinaram quando criança sobre Deus. Para ele, o mundo precisava ser divino — desposara essa ideia ainda muito novo, e, como todas as ideias da juventude, não conseguia desligar-se dela facilmente. As coisas, porém, nunca lhe ofereciam o que buscava: como num rito de primavera e núpcias, ele, o rapaz, procurava Deus no mundo, mas o divino que habitava o mundo não se deixava raptar — fechando-se com o pudor violado, Deus permanecia inalcançável.

Olhando para o título do livro, entretanto, algo dentro de si começara a mudar. Talvez Deus tivesse um rosto, talvez Deus fosse reconhecível numa pessoa… E então… — então ele poderia aprender mais sobre Deus como se aprende a amar alguém. Deus deixaria de ser infinitamente amplo para caber na estreiteza de um homem. No fundo, sempre permanecera aceso nele o receio de se entregar a essa força eterna e isenta que o engoliria como se engole uma coisa. Se ele podia ver o rosto de Deus, no entanto, se podia escutar tudo o que fizera e dissera e saber mais sobre ele — então podia amá-lo, e esse amor podia ser recíproco. Já não amaria o mundo em sua vastidão, mas a concretude particular de uma pessoa; e, localizando esse amor num coração feito de sangue como o seu, podia ter a certeza de que Deus ama o homem — esse Deus que também era homem.

Pensara nisso tudo sem se dar conta, como quem sente uma dor mas não sabe onde dói. O que intuía era um caminho novo. Num instante, formara-se nele uma certeza; não trêmula como todas as certezas que se formam gradativamente, resultado de longa e difícil aproximação. Essa certeza tinha a solidez de uma verdade que se recebe pronta. E como um objeto estranho que lhe tivesse sido colocado nas mãos, ele tateava tal verdade como um cego tateando num quarto escuro. Pela primeira vez, experimentava a sensação de uma profunda calma. Sabia que Deus o chamava. Sabia que Deus se fizera homem por ele porque queria estar ao seu lado. E sabia que só poderia responder a esse convite de um modo: amando.

Esta fora a maior das revelações: chega-se a Deus não porque se deseja ardentemente. É Deus, ao contrário, que desce ao homem porque sempre o desejou. Envergonhado como Adão cobrindo a própria nudez, ele se deixava então cobrir pela nudez do Cristo morto na cruz. Esse Cristo que ele tantas vezes desprezara e que reduzira às dimensões de um simples homem, esse Cristo agora lhe surgia na sua grandeza de homem-Deus. E ao mesmo tempo, próximo, cheio de ternura para com o coração humano. Deus se fizera pequeno como ele… Lera mais uma vez o título: A Imitação… Seus olhos sorriram de alegria. Então é possível… é possível matar a fome de um homem.

Na noite desse mesmo dia, levara o livro para a cama e começara a ler. Rapidamente caíra no sono. Os próximos dias seriam diferentes? Tinha medo de não conseguir realizar a nova vida que lhe fora anunciada. Sabia, porém, que outros antes dele tiveram os mesmos medos e dificuldades, e que fora através desses medos e dificuldades que conseguiram o que buscavam… Afinal, não fora Cristo que vencera entregando-se à morte?… Ele sonhava…  e, nessa vida desperta dentro do sono, via ao longe um rosto iluminado. Mas, ao se aproximar, as feições humanas iam ficando cada vez menos nítidas, cada vez mais brancas… o rosto ia achatando-se até assumir a forma geométrica perfeita de um disco. Ao fundo, o vento dobrava a coroa dourada dos trigais… 


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