2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS VENCEDORES: LYRA FRANKLIN — 3º LUGAR CATEGORIA CRÔNICA
- Casa Brasileira de Livros
- 14 de jul.
- 4 min de leitura

SOBRE O AUTOR
Layra Franklin, ou Lyra, tem 30 anos, é mineira, casada e mãe. Escreve desde que se entende por gente, mas acabou ficando um bom tempo sem escrever. A crônica premiada, que conquistou o terceiro lugar, foi a primeira que escreveu após longos anos. Pra ela foi uma confirmação de que alguns sonhos não foram feitos pra ficar na gaveta.
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A CRÔNICA VENCEDORA (3º LUGAR)
Quando a Vida te Dá um Pote...
Era um domingo de um sol impiedoso, cozinhando tudo naquele verão de capitalismo tardio. Pelo menos a cerveja estava gelada. A família se reunia ao redor da churrasqueira que crepitava. Será que, se conversassem um pouco mais sobre tudo aquilo que não entendiam, o mundo finalmente faria sentido? Sei que havia claramente uns três ou quatro consultores da ONU falando sobre o Oriente Médio ali, e aquilo não me interessava em absoluto naquele momento. As palavras, tão pequenas, tão sem sentido, tentando, como eu, escapar de algo maior. Encontrava-me alheia às previsões geopolíticas, digitando algo irrelevante no notebook, apenas observando a fauna ao redor. Mais um animal naquele habitat.
As crianças pulavam na piscina, sem ligar para o destino da ordem mundial, até que uma delas, num grito ancestral e primitivo, bradou: — Eu quero sorvete!
Um murmúrio de busca espiritual começou. Haveria sorvete? Quem teria coragem de levantar-se para buscar? Alguém murmurou que talvez houvesse um pote no congelador. Seu Luiz, um grande adepto das tarefas de baixa complexidade e alto prestígio, se voluntariou. Heroicamente, abriu o congelador e encontrou o pote. Ele não era exatamente um especialista em etiqueta e bons modos à mesa e, talvez por isso, tenha optado por um copo de vidro enorme — porque conceitos como "criança" e "fragilidade" também lhe escapavam. Sem qualquer auditoria sensorial, começou a cavar com a colher e esculpir seu presente gelado. O conteúdo, resistente como uma pedra, não ofereceu resistência lógica a Seu Luiz. Ele simplesmente acreditou: isso é sorvete. Se não desliza suavemente pelo metal, é porque está muito congelado. Se não cheira a baunilha, é porque, oras! É um sabor exótico, desses que estão na moda.
O copo foi entregue à criança, e ficou ainda maior em suas mãozinhas. O que se sucedeu ali foi um espetáculo de perseverança. Eu não via uma cena de tanta dedicação desde Rocky Balboa subindo as escadarias do Museu de Arte da Filadélfia ao som de Gonna Fly Now. A pequena guerreira tentava, com a colherinha, perfurar a muralha congelada do que acreditava piamente ser um sorvete. Sua expressão alternava entre determinação e desespero, até que ela desistiu da colher e foi direto com a boca. Mastigava, sugava, abocanhava tal qual uma leoazinha dilacerando sua presa, e aquela coisa no copo parecia cada vez menos um sorvete.
— Eu acho que isso não é sorvete, não — disse alguém mais atento, franzindo a testa.
Silêncio. Todos se aproximaram. Os olhos semicerrados como um detetive noir... Pega um pedaço, examina a textura...
— Isso é… carne.
A comoção foi ins-tan-tâ-ne-a. A casa veio abaixo em risadaria. O mito do sorvete caiu por terra, e a criança, perplexa, segurava o copo com um misto de nojo e incredulidade. Seu Luiz poderia ter aceitado a comicidade involuntária daquilo tudo, dando uma risada, um tapinha na própria testa e seguindo com a vida, mas não: ele precisava de culpados. “Quem coloca carne num pote de sorvete!? Isso é pegadinha? Não tem lógica!!!!” Ele entrou no modo defesa e só fez tudo ficar ainda mais engraçado. Condenou quem congela comida, quem coloca comida congelada em potes de sorvete e, se desse tempo, provavelmente chegaria a culpar quem inventou o freezer e até a Revolução Industrial. Era apenas a carne que sobrou do Natal, reaproveitada e guardada com eficiência, mas esquecida no fundo do congelador.
É fato. Tão certeiro quanto o termômetro marcando 38º naquele dia: os erros esculpem as nossas gélidas certezas. É parte indissociável da condição humana. Então, por que diabos um ser humano não poderia se confundir?
Minha vontade era perguntar: “Seu Luiz, por que se negar ao direito de falhar numa coisa besta dessa? Faz parte! A gente se confunde, fazer o quê?” Mas eu sei que o nosso medo é que um erro bobo revele algo mais profundo sobre nós: somos falíveis, não somos tão espertos assim, até um sorvete pode nos enganar. E não é o mundo, o freezer, o cosmos... É a gente. A gente que erra mesmo. É universal, somos um amontoado de tentativas e falhas.
Não há por que encontrar um bode expiatório para o ridículo. É ridículo e pronto! Somos frágeis, tropeçamos o tempo todo, empurramos quando era para puxar, falamos “bom dia” quando o certo é “boa noite”, colocamos o celular no ouvido e ficamos esperando o toque, esquecendo que ainda nem discamos. Nosso orgulho nos diz que devemos ser implacáveis, mas a vida insiste em nos provar o contrário: somos deliciosamente falhos.
Não resta nada, Seu Luiz, a não ser rir de si mesmo, como crianças que caem e riem de suas quedas. O riso é o que salva a gente. É uma espécie de redenção. O erro se dissolve no riso, como a neblina sob a luz do sol. Talvez a maior sabedoria resida não em evitar o erro, mas em aprender a dançar com ele.
A criança, então, tirando o pedaço de carne congelada da boca, entregou-o nas mãos do Seu Luiz e disse: — Não gostei de sorvete de carne, não. O da sorveteria é mais gostoso.
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