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2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS VENCEDORES: VIVIANE VOLTOLINI — 3º LUGAR CATEGORIA CONTO

  • Foto do escritor: Casa Brasileira de Livros
    Casa Brasileira de Livros
  • 14 de jul.
  • 7 min de leitura
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SOBRE A AUTORA


Viviane Fernanda Voltolini nasceu em Curitiba e tem 37 anos. É graduada em Letras e trabalha como editora de textos. Desde cedo a palavra escrita despertou seu interesse e os livros sempre foram seus objetos preferidos. A literatura e as outras artes sempre exerceram fascínio sobre ela.  



O CONTO VENCEDOR (3º LUGAR)


Gota a gota


 Não chovia canivete nem gatos e cachorros. Não desaguavam do céu cântaros ou alabardas. Também não parecia que se precipitava um rio rompido ou que qualquer um lá do alto entornasse bacias da área de serviço das esferas superiores. Dentro de seu monza azul-marinho desbotado, lataria descascada, estacionado a duas quadras de casa, Renato não era capaz de aplicar abstração idiomática de qualquer língua que fosse às gotas de água que já haviam sido parte de corpos hídricos muito maiores, depois, expandindo-se, dispersando-se, misturaram-se ao ar em forma de vapor e ascenderam, alcançando altitude em que recobraram seu estado líquido até unirem-se a outras como elas e, pesadas, serem atraídas pela gravidade, dando início a um novo ciclo. Naquele momento, fechado em seu automóvel, absorto, não pôde alcançar a beleza daquele fenômeno. 

A semana havia sido das mais difíceis. Na segunda, Mauro, o supervisor do setor de vendas, havia reunido seu pessoal para informar que a empresa estava mal das pernas. Com essa história dos novos celulares que permitiam tirar fotos, as câmeras fotográficas digitais que no ano anterior eram moderníssimas já não interessavam aos consumidores. O chefe tentou acalmar os ânimos dizendo que no ano seguinte passariam a importar aparelhos de ginástica e pipoqueiras que novamente atrairiam os clientes, mas até lá seria necessário fazer cortes, os quais seriam oficializados na sexta-feira. O grupo, obviamente, não compreendeu por que o cara tinha decidido fazer essa tortura psicológica em vez de simplesmente usar a catapulta alocada no RH para lançar para a rua os eliminados. Crueldade? Pode ser. No entanto, o chefe do chefe tinha exigido que assim fosse feito para incentivar a equipe a render mais na expectativa de que a definição de quem seria mantido ou catapultado pudesse ser revertida. Isso o chefe não revelou, mas assim garantiam que os desesperados cedessem sua força de trabalho por mais quatro dias. Para o deus do capital, é pecado não explorar toda e qualquer gota de suor. 

Ao contrário dos colegas, Renato ficou animado, torceu para que seu nome fosse o primeiro da lista. Há muito desejava abandonar aquela empresa, mas não tinha coragem de tomar a decisão e contar pra Fabíola que ele havia resolvido voltar a fazer mímica na praça. Quando a sexta chegou, durante a tarde, Mauro chamou seis pessoas em seu escritório. Todas elas voltavam em silêncio, recolhiam seus pertences e, com os olhos procurando o bico dos sapatos, falavam tchau aos demais. Renato aguardou até 17 h para ser chamado. Às 17 h 05 min chegou um e-mail do chefe. Ansioso, começou a ler: "É com pesar que oficializamos hoje o desligamento dos nossos prestimosos colaboradores...". Com ansiedade, Renato seguiu a leitura, passando mais rapidamente os olhos entre as justificativas até parar no fechamento: "Por essa razão, continuamos contando com seu costumeiro comprometimento para retomarmos nosso caminho de sucesso.". Aquilo foi um balde de água fria em sua espinha. Já se imaginava chegando em casa com cara de desiludido para contar que na segunda não teria trabalho. De fato, buscaria a bendita recolocação, mas por falta de sorte não seria aprovado na entrevista por ter muitas qualificações praquela vaga. Em poucos meses se veria obrigado a voltar a fazer trabalhos como ator para promover lojas populares vestindo-se de mascote e, pra completar a renda, passaria as tardes na praça fazendo pantomimas e trajando uma lânguida cara branca. Isso permitiria a ele observar todos os transeuntes sem precisar revelar sua identidade. O dinheiro seria curto e incerto, mas ele poderia ir, vir e ver. Como isso lhe fazia falta trancado naquela sala bege! A gravata ajustada que lhe tirava o fôlego daria lugar a uma flor pendurada em sua cartola furada, a qual arejaria seus pensamentos. A mesa do escritório em que ficava atolado seria substituída por um caixote-palco que lhe possibilitaria arranhar o céu. Sua esperança era que Fabíola se revoltasse com a situação e que agisse como uma vaca abandonando-o nesse momento difícil da vida dele. Na quarta-feira eles já tinham discutido porque ele era extremamente relapso com a vida prática. Boletos e faturas não lhe chamavam atenção por mais que ele gostasse de ter água no chuveiro e de esquentar o prato de macarrão no micro-ondas quando chegava tarde em casa. As palavras que ela usou para expor esses e outros argumentos carregavam, digamos, uma energia mais visceral. 

Não que não gostasse de Fabíola; algumas vezes até a desejava não só por obrigação. Na verdade, em algum momento ela deu sentido a tudo o que ele mesmo era, mas agora ela só fazia cobranças para que ele fosse tudo o que ele era incapaz de ser. Embora não enunciasse, as manias e certezas retas dela também o desagradavam. Há algum tempo caminhavam juntos, mas cada um de um lado da rua. Ele ia observando cada bêbado, cada velho, cada criança, cada bolsa de mulher, cada pasta de negócios, cada mochila escolar que flutuava no caminho. Ela, sem virar a cabeça para o lado, só mudava a direção do corpo quando se ejetava da calçada para a porta do banco, depois na entrada do mercado e, na sequência, no acesso da farmácia. Ela era, irremediavelmente, denotação pura.

Quando, na segunda, o Mauro tinha acendido a tal esperança, Renato pensou que aquela sua vida estaria deliciosamente acabando no fim de semana que se aproximava. Seu rosto mostraria um descontentamento falsamente comedido, mas no peito guardaria – porque não queria martelar isso nas paredes de ninguém – um grito de grande alívio. 

Ali dentro do carro, parado a duas quadras de casa, Renato não tinha forças pra terminar de chegar sem ter uma decepção nova e definitiva para entregar pra Fabíola, uma daquelas que fosse a gota d'água que faz o balde transbordar. Seria tão mais fácil ser vítima da situação! Ao ver que sua vida continuaria exatamente igual, no mesmo emprego, no mesmo relacionamento, no mesmo horário de acordar, no mesmo endereço, no mesmo trajeto, no mesmo macarrão, sentiu que estava afundando. O pior é que isso não era o que mais o incomodava. O que o perturbava era que seu corpo não se debatia, não buscava a superfície, embora seu espírito a ansiasse. Havia um abismo entre o que seus pensamentos intencionavam obrigar seus músculos a fazer e a mensagem que chegava ao aparelho fonador e ao sistema musculoesquelético. Suas sinapses seguiam freneticamente, mas seu corpo era catatonia, e sua boca, mudez. Era sempre assim quando precisava encontrar uma solução para sua vida. 

Ali trancado no carro, as gotas pulando uma atrás da outra do lado de fora como se sentissem a delícia de se lançar no abismo, Renato não compreendia que estava presenciando a trajetória de milhares de vidas hídricas. Cada gota daquela era parte de um todo, e era o todo de tantas e tantas partes. Seguindo a maré, repetindo o curso do rio ou represadas no lago, as gotas não conseguem definir os limites de seu corpo. Sentem-se oprimidas, como se seus braços estivessem atados e isso as impedisse de visualizar as pontas dos dedos. De que adianta ter materialidade se não podem vislumbrar seus contornos? Buscando o ar e o alto, as gotas, cada uma, permitem-se entrar em um novo status. Elas não se contentam em ser empurradas pelas demais, precisam se desprender. Para isso, tomam a decisão de ser vapor. Isso é imprescindível. Mais e mais leves pela satisfação de guiar a si mesmas, elas ascendem. Lá em cima, se surpreendem ao encontrar tantas outras que fizeram o mesmo percurso, cada uma a seu modo, cada uma a seu tempo. Por afinidade, uma e outra mesclam-se. A leveza de seus não corpos faz as moléculas se misturarem, buscarem recorrências. Miscíveis, coalescentes, as gotas, inchadas de seu gozo de serem donas seus narizes liquefeitos, começam a pesar fazendo a nuvem sofrer com tamanha agitação interna. Percebendo o desconforto que causam na nova morada, sem precipitações, no momento exato, as gotas resolvem se lançar ao ar novamente, mas agora fazendo o caminho inverso. Ou seria a nuvem que fica a chorar a falta de mares e rios que já lhe eram íntimos? As gotas também experimentam alguma tristeza sob o cinza do céu, pois sabem que ao longo do percurso terão de se separar; mesmo assim, se fazem resolutas – e é daí que tiram sua alegria – porque agora, tendo conhecido os segredos da hidrosfera, sabem que esse ir e voltar é extremamente prazeroso pela simples experiência de ser em diferentes estados. 

Naquele entardecer, porém, Renato não pôde apreender nenhuma dessas realidades. Sua letargia, longe de um indicativo de uma ataraxia firme, era denúncia de sua incapacidade de ser gota, de ser ar. Seria medo de despencar lá de cima? Está certo, não é possível ser nuvem pra sempre. Tudo bem. Afinal, o choque com o chão não era o fim, era somente mais uma oportunidade de ser parte de outros todos, de penetrar na terra, escorregar pelos lençóis freáticos e ser rio, mar e céu mais uma vez. 

Ali, com o carro estacionado a duas quadras de casa, Renato ignorava o exemplo fluido dado por aqueles pequenos seres, que de repente se assossegaram se conformando ao asfalto, à grama, as janelas, aos óculos dos passantes. Sem saber que sempre será possível se debater, se contrair e se espichar pra se desvencilhar das correntes de água invisíveis que o impedem de ver as pontas de seus dedos, ele deu partida, fez o carro se arrastar até o portão do edifício, deixou-o na vaga 25, abriu a porta do apartamento, cumprimentou Fabíola com um beijo insosso protocolar e foi esquentar o macarrão no micro-ondas.


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