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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: EDILEZ BRITO — CATEGORIA CONTO

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    Casa Brasileira de Livros
  • há 2 dias
  • 17 min de leitura
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SOBRE O AUTOR


Sou tocantinense "beradeiro", lá do antigo norte goiano. Nasci na Fazenda Itaboca, sertão de Pedro Afonso. Minha infância foi povoada de muitas e boas peraltices no Povoado do Lagedo, município de Guaraí. A adolescência e a juventude passei em Pequizeiro. Depois, destrambelhei pelo mundo até fincar raízes novamente em solo tocantinense.

Tenho 61 anos, casado, pai de três filhos e avô da Elis. Mestrando em Literatura pela Universidade Federal do Tocantins (UFT) e bacharel em Direito também pela UFT. Atualmente resido em Palmas e, em fase de preparação para o lançamento do meu primeiro livro de contos, intitulado Pequi 100 caroço, obra contemplada em edital público pelo município de Palmas, no estado do Tocantins.



O CONTO SEMIFINALISTA


A surpresa


Um sol de rachar mamona naquele início de tarde, após as fortes chuvas que haviam caído pela manhã. Era o período chuvoso na região. Sinfrônio, com as mãos no volante, mantinha os olhos fixos na estrada, acompanhando a extensão do asfalto que deslizava suavemente sob o carro. Trafegava a uma velocidade abaixo da máxima permitida para a rodovia, porém bem acima da mínima exigida por lei.

Os vidros das portas dianteiras abertos. Do lado do motorista, o quebra-vento, também aberto, direcionava o ar quente e abafado para o interior do veículo. Escorado na porta do passageiro com o rosto banhado de suor, o seu companheiro ressonava enquanto dormia.

Uma placa de sinalização indicava a aproximação do trevo de acesso a Pedro Afonso, cinco quilômetros à frente. Ao avistar o trevo, o coração de Sinfrônio bateu mais acelerado. Faltava pouco mais de quarenta quilômetros para chegar à cidade do seu coração, localidade onde pretendiam passar a noite. O trecho da BR 235 até Pedro Afonso era todo asfaltado, só o tapete, como diziam na região.

Sinfrônio acionou a seta indicativa de direção para a direita e posicionou o veículo na faixa de desaceleração para reduzir a velocidade. Sabia da importância da comunicação através da sinalização. No trânsito, entendia ser preciso dialogar, falar aos demais condutores o que pretendia fazer.

Percebia que muitos condutores, ao se prepararem para realizar esse tipo de manobra, em vez de reduzirem a velocidade dos seus veículos na faixa apropriada, permaneciam na via principal até a efetiva conversão, o que forçava os demais que vinham logo atrás a reduzirem a velocidade desnecessariamente ou, por vezes, até provocar um acidente.

Diante dessa realidade e das frequentes infrações, algumas absurdas, que presenciara, refletia sobre a quantidade de acidentes evitáveis se houvesse mais consciência e respeito às normas de trânsito. Enquanto ponderava sobre essa questão, considerava a sucessão de tragédias que haveria, em seu campo de atuação, caso não se atentasse para a observância de regras elementares.

O sol, que antes batia na lateral esquerda do veículo, passou para a parte traseira. Deixaram o sentido norte e agora trafegavam em direção ao leste. A próxima parada seria na beira do rio Tocantins. Sem o agito do intenso movimento na BR-153, Sinfrônio pôde acompanhar, cuidadosamente, a transformação na vegetação ao longo da rodovia.

As moitas de capim, as árvores baixas e tortuosas, muitas frutíferas, deram lugar a enormes campos de plantações. Sinfrônio passava em frente ao que antes era um imenso buritizal dentro de uma área de vereda, agora rodeada por uma vastidão verde e homogênea, símbolo de riqueza e prosperidade. A lavoura, com seu tom verde escuro, se perdia na imensidão.

Surpreendentemente, as palmeiras de buritis se reduziam a pouco mais de uma dezena, enquanto outras tantas sucumbiam lentamente. Apenas algumas folhas amareladas e secas resistiam, prestes a se desprender uma após outra com a primeira rajada de vento. No mesmo espaço, centenas de troncos secos e apodrecidos permaneciam de pé, como se quisessem denunciar e testemunhar a própria morte.

O progresso, sob a batuta do estado, batia à porta do antigo norte goiano. Em nome do desenvolvimento, não pedia passagem nem cortava voltas. Havia incentivos e polpudos recursos públicos. E os moradores do cerrado? Questionava Sínfrônio, em silêncio, perdido em suas confabulações e olhar atento na rodovia. Sem árvores, sem sombras e sem frutos, ficaram à margem dessa voracidade de crescimento a qualquer custo. Simplesmente foram convidados a se retirar sob o ronco intrépido dos motores das máquinas. Autodespejados, que fossem inquilinos em outras plagas.

O amigo acordou quando se aproximavam do campo santo de Tupirama, um pedaço de terra ainda intocável. Um pouco mais à frente, avistaram ao longe a casa dos padres em Pedro Afonso e uma porção das águas do rio Tocantins.

Torciam para que a balsa não estivesse do outro lado do rio, pois, caso contrário, seria ao menos quarenta e cinco minutos de espera. Apenas uma embarcação fazia o transporte de veículos de um lado para o outro.

Tiveram sorte. Na margem do rio, a balsa realizava as últimas manobras para atracar. Foram ainda surpreendidos com uma segunda balsa que se posicionava do outro lado. Sinais dos tempos. O movimento de veículos, principalmente de caminhões, aumentara bastante com as novas frentes de trabalho na região.

Em Pedro Afonso, hospedaram-se na Pousada dos Viajantes, localizada na Rua Barão do Rio Branco, ao lado da Igreja Matriz e próxima ao Tiro de Guerra, unidade do Exército Brasileiro responsável pela formação de atiradores, reservistas de segunda categoria que serviam durante nove meses, a fim de cumprir o serviço militar obrigatório.   

Sinfrônio resolveu rever alguns lugares que marcaram sua adolescência. Seu companheiro, muito cansado, preferiu descansar. Deixou o hotel e foi até a sorveteria do Didi. Uma caminhada de apenas cinco minutos.

A sorveteria funcionava em novo endereço, em uma esquina, bem perto do mercado municipal, onde Sinfrônio a conhecera e trabalhara quando garoto. Pediu um sorvete e deixou o local.

Atravessou a avenida e já estava com o pé na praça central da cidade. Um espaço arborizado, aconchegante e muito bem cuidado. O movimento de pessoas no local era pequeno. Também não era nem sete da noite ainda. Procurou um dos vários bancos vazios e sentou-se. Começou a viajar no tempo, em direção ao passado.  

Deixara o sertão para estudar em Pedro Afonso após concluir a quarta série numa escola rural. Fizera a prova de admissão e fora aprovado para matricular-se na quinta série ginasial do renomado Colégio Cristo Rei. Seus pais comemoraram. Morou com os tios a quem muito devia a sua formação. Repentinamente olhou para o lado sul da praça e lembrou-se que ali não havia moradias. O local serviu como campo de aviação da cidade.  

Ao menos uma vez por semana era presença obrigatória, ao lado dos amigos, acompanhar a aterrissagem e decolagem dos aviões da Varig, chamado carinhosamente no meio aeronáutico brasileiro de avrinho. Era um modelo Hawker Siddeley 748, um avião turboélice, equipado com dois possantes motores Rolls Royce de fabricação Inglesa. Tratava-se de uma aeronave destinada ao transporte de passageiros para médias distâncias, com capacidade para quatro tripulantes e até quarenta passageiros.  

Os voos ocorriam sempre as terças e quartas-feiras. Na terça-feira um voo saia de São Paulo com conexões em Goiânia, Porto Nacional e Pedro Afonso, em Goiás. Depois seguia para Carolina e Imperatriz no Maranhão e finalmente para a capital paraense. Na quarta-feira o trecho de volta.

Presenciar esse evento era uma atração à parte. Sinfrônio adorava ver o desembarque e embarque de passageiros. Eram homens chiques, vestidos de ternos, gravatas e sapatos sociais. As mulheres, algumas com vestidos longos, outras de saias e blazers, luvas, chapéus e outros adereços que dava mais brilho à beleza feminina. Todas muito elegantes.   

Nessas ocasiões, a diversão da meninada era aguardar o momento da decolagem para serem empurrados pelo impacto do vento, provocado pela força das turbinas do avião. Embora mantivessem uma distância de segurança, o perigo era iminente. Todos ficavam de costas ao lado do alambrado, mas, além da forte corrente de ar, grãos de areia e pedregulhos também eram arremessados, machucando, por vezes, um ou outro garoto.  

Os pensamentos pretéritos continuavam a fervilhar na mente de Sinfrônio como um forte turbilhão. Recordava-se do dia em que entrou pela primeira vez em um avião. Uma experiência incomum. Curiosamente nada tinha a ver com um voo, mas sim com uma tragédia que abalou a cidade e região.

O fatídico evento ocorreu numa terça-feira de junho. Lembra bem que naquela tarde, não houvera aula de educação física no colégio. Era também início do período das praias nos dois rios que margeavam a cidade. Uma agradável brisa, típica da época, contrastava com o clima de tristeza que abatia a população local.

Após a decolagem da aeronave, foi necessário a realização de um pouso de emergência. O avião, no solo, não conseguiu parar, atravessou o alambrado que cercava a pista, passou pelo local onde atualmente é a praça e invadiu uma casa na esquina, do mesmo lado, contígua à sorveteria do Didi. Três pessoas residentes no imóvel e o copiloto morreram. Foi uma comoção na pequena cidade de Pedro Afonso, que jamais vivera algo parecido.

Quase um mês após o acidente, uma equipe da companhia aérea esteve no local para retirar a aeronave do interior da residência destruída. O avião estava com a frente enterrada no imóvel e a traseira levantada, bem alta.

O responsável pela operação, por não dispor de equipamentos apropriados para o serviço, conclamou os presentes que acompanhavam a operação para entrarem no interior do avião e se aglomerarem na parte traseira. Isso funcionaria como contrapeso, permitindo que, em seguida, com o apoio de dois guinchos, a frente do avião ficasse mais leve e assim, pudesse ser levantada.

 Com a ajuda da população, foi possível suspender a frente da aeronave e escorá-la, o que permitiu a substituição do trem de pouso danificado. Em razão desse terrível acontecimento muitos em Pedro Afonso viveram a experiencia de conhecer o interior de um avião pela primeira vez.   

Sinfrônio voltou o olhar para o local, completamente habitado, onde há quase vinte e cinco anos atrás acompanhava a descida e subida de aviões, semanalmente, numa pista encascalhada. Eram linhas regulares operadas por uma companhia aérea privada. Começou a conjecturar sobre o que entendia ser um retrocesso, a suspensão do transporte aéreo pelo interior do Brasil.

Lembrava das viagens que fizera, a trabalho, em alguns países da américa do sul. Conhecera várias cidades pequenas, menores até do que algumas do recém-criado estado de Tocantins, que recebiam até quatro voos comerciais diariamente. Não compreendia bem essa lógica, mas sabia que qualquer atividade comercial certamente passava por uma criteriosa avaliação de viabilidade econômica. Desconhecia os parâmetros, custos envolvidos, interesse social e certamente tantas outras variáveis importantes para definir a escolha de uma rota aérea. 

Sinfrônio, imerso em seus pensamentos, voltou-se para a realidade. Olhou para o mostrador do velho relógio de pulso, um oriente automático, à prova d’água, presente do seu pai durante a festa de formatura. Quando ganhou o relógio, ainda nem completara dezoito anos. Sabia bem o sacrifício que o pai fizera para adquirir aquele objeto de luxo.

Permanecem gravadas na memória as palavras simples do pai, no momento da entrega do pequeno pacote, devidamente embrulhado e amarrado com uma fita vermelha e dois lacinhos: É para você não perder as horas, numa referência a não perder os compromissos.

Observou em volta e esboçou um leve sorriso emocionado, pois toda vez que conferia as horas, enquanto divagava sobre a vida, a lembrança forte do seu pai vinha a mente, com o seu jeito pacato, conciliador e cuidadoso. O relógio era muito mais do que um objeto de utilidade, tinha um valor sentimental e simbolizava a presença viva do seu pai, separados pela distância na maior parte de sua vida.

Percebeu que já passava das dez da noite. Decidiu retornar à pousada, pois pretendia ser o primeiro a deixar o hotel no dia seguinte. Planejava atravessar o rio do Sono antes do amanhecer, pois queria chegar na morada dos seus pais ainda durante o dia. A distância não era longa, mas sabia dos desafios que o aguardava do outro lado do rio.

No alvorecer do dia seguinte, após uma breve noite mal dormida, iniciaram a jornada. A travessia do rio, sobre uma ponte, foi a primeira etapa do trajeto. Sinfrônio não esperava por isso, pensava que a passagem seria sobre a velha balsa, firmada por um extenso cabo de aço que ligava uma margem a outra do rio. Uma grande carretilha corria sobre o cabo e um mecanismo fazia com que a força da correnteza se encarregasse de empurrar a balsa de um lado para o outro. Ganharam tempo.

Pouco mais de uma hora de percurso se passara naquela manhã de tempo fechado, mas sem chuva. A velha Toyota Bandeirante 4x4, em alguns momentos, parecia gemer e refugar frente ao terreno cheio de buracos, escorregadio e enlameado daquele dezembro chuvoso. A viagem, no entanto, transcorria sem nenhum contratempo.

O trecho mais difícil ainda estava por vir: transpor os longos e perigosos aclives que compõem as serras da região. A distância encurtava a cada curva e o desejo de reencontrar a família tornava tudo mais fácil e recompensador.

O barulho do ronco do motor a diesel era dividido com o som do rádio. Foram sucessivas tentativas, por meio da busca automática, para localizar uma estação de rádio em frequência modulada e ondas médias, porém sem sucesso.  

 Ao mudar de faixa para ondas curtas, e acionar novamente o buscador, Sinfrônio conseguiu sintonizar a rádio Nacional da Amazônia. Som limpo, local. No momento transmitia um programa de notícias. Um especialista em tecnologia, concedia uma entrevista.

O tema em pauta era o “bug do milênio”. Havia uma grande inquietação e a preocupação quanto a virada do milênio e os riscos de falhas nos equipamentos de computação, além das medidas que seriam adotadas para não haver interrupções em serviços essenciais. 

Sinfrônio explica ao amigo que havia muito sensacionalismo em relação ao assunto trazido na reportagem. No seu ambiente de trabalho, onde a presença e utilização de avançados equipamentos tecnológicos eram imprescindíveis, o setor responsável pela área já havia assegurado que tudo estava sob controle.

Desinteressado, abaixou o volume do rádio como se quisesse acompanhar o que viria no programa seguinte. Foi quando iniciaram a subida. Um trecho de muita lama e valas. O carro começou a patinar e a deslizar. Sinfrônio parou o veículo e acionou a tração 4x4 reduzida e iniciaram esse novo percurso bem devagar. 

Enquanto conduzia o veículo em primeira e segunda marcha, dizia ao amigo que naquele recanto de mundo, em tempos idos, sinal de rádio só se fosse com uma boa antena. Lembrava que seu pai utilizava duas grandes varas de tabocas, uma em cada canto da casa. Cada vara possuía entre oito e dez metros de altura. 

Lá no alto, um cabo se estendia de uma extremidade a outra da vara, e no centro do cabo, uma espécie de receptor de onde um fio saia e era conectado ao rádio. Recordava que o aparelho funcionava com quatro grandes pilhas Rayovac, a única disponível na região. 

Excepcionalmente ligava-se, o rádio, em alguns momentos, tão somente para saber as horas. Eram imperdíveis o programa do Zé Béttio, a partir das cinco da madrugada, pela Rádio Record de São Paulo e a voz do Brasil, pontualmente às sete da noite.   

A condução do veículo exigia muita atenção e cuidado. Sabia que, se houvesse algum problema, o socorro seria demorado. Após alcançarem o topo da serra, falou ao amigo que, durante as estiagens, o sofrimento era com a poeira e as costelas de vaca, pois provocavam uma forte trepidação sem fim. A sensação do motorista e dos passageiros era de estarem cavalgando no lombo de um burro brabo.

Aproximava-se do quarto dia de viagem desde que a dupla deixara a capital paulista, uma jornada que se revelava uma verdadeira aventura para Jacob, que jamais saíra de São Paulo. Nascera na maior metrópole do país e, aos trinta e quatro anos, além da sua rotina de trabalho no aeroporto de Guarulhos, pouco conhecia do seu próprio estado. Ocasionalmente, arriscava-se em alguma cidade do interior paulista.

Sinfrônio conhecia bem a região, apesar do longo tempo ausente. Aquela paisagem natural lhe era familiar. Gostava de sentir o cheiro do mato, daquele pedaço de chão cravado na divisa com o sul do Maranhão e pertencente ao estado caçula da federação.

A viagem, em sua reta final, devagar quase parando, proporcionava a Sinfrônio o prazer de contemplar o ambiente que o rodeava. Cada árvore que reconhecia remetia-o a várias lembranças. O frondoso jatobazeiro e o seu fruto, que além de servir de alimento, era também transformado em vacas e bois dentro dos currais feitos da tala do buriti, nas brincadeiras infantis.     

Avistaram um imponente pequizeiro, à beira da estrada, carregado de frutos, algo incomum. Por ali, Sinfrônio não se recordava de catar pequis nas proximidades do natal. Encontrava um ou outro pé com alguns poucos frutos. Pararam o carro. No chão, apenas frutos roídos por formigas, sinal de que o pequi era bom. Alguém passara mais cedo e fizera a colheita. 

Sinfrônio recordava sua infância, quando saía cedo com sua mãe e irmãos para catar pequis. Cada um levava um cofo para trazer os frutos. Na capanga de couro, a mãe levava as facas e a farinha para comer com o pequi debaixo dos pequizeiros. Nessas ocasiões, essa era a alimentação matinal de todos.

Em cada árvore, realizava-se um teste de qualidade para determinar se o pequi seria para consumo ou para fazer sabão. Se o pequi estivesse rançoso, era destinado à produção de sabão, fabricado em quantidade suficiente para uso durante boa parte do ano.

Mostrou ao amigo um pé de mangaba, com seu sabor adocicado e leve acidez. Um fruto delicioso. O que mais o marcava, no entanto, era a lembrança de quando criança, ao lado dos amigos, fazer a própria bola com o leite da mangaba. Quando a família ou vizinhos matavam um porco ou carneiro, a bexiga do animal era separada. Antes, a garotada saía em direção ao cerrado, ainda escuro, para extrair o leite nos troncos das mangabeiras.

Ao chegarem com o látex, esparramavam-na em tabuas, devidamente lixadas com folhas de sambaíba até ficarem completamente lisas. Nessas tábuas, o leite era levemente secado ao ar livre, em local sombreado. Pouco tempo depois, quase seco, o leite formava uma película pegajosa e impermeável, momento em que alcançava o ponto ideal para o processo de confecção da bola. 

Em seguida, soprava-se a bexiga por meio de um canudo de mamão até enchê-la. O passo seguinte consistia em revestir e envolver a bexiga uniformemente em todos os seus lados com a película do látex que estava sobre as tábuas. Várias camadas da goma de borracha da mangaba eram sobrepostas uma à outra, até a bexiga ficar bem encorpada. A bola estava pronta. Algumas duravam até seis meses. Jacob, boquiaberto e atento ao que o amigo falava, parecia não acreditar no que ouvia. 

Sinfrônio não cansava de exaltar a exuberância do cerrado. Adorava os doces feitos caprichosamente do fruto do buriti, do cajuí e da própria mangaba. Continuou enumerando as frutas trazidas pelo seu repertório de lembranças: dos pés de puçá, bruto, chamado de araticum; a castanha de burro, muito procurada nos grandes centros pelo seu valor nutricional e conhecida como baru e cumbaru. Quando silenciava, ficava a pensar na generosidade do cerrado, considerando-o uma grande mesa ao relento, repleta de frutas durante todo o ano.

Enquanto contemplava os arredores do seu torrão, com a sua vegetação nativa, lembrou-se do estado em que morava e do trecho que percorrera na véspera, entre o trevo da BR 153 até próximo à cidade de Tupirama. Extensões gigantes de lavouras. Em alguns pontos, contavam-se nos dedos das mãos uma ou outra árvore que havia sido poupada. Cada uma poderia simbolizar a cruz de um grande cemitério do que antes fora um cerrado.

Sabia que precisava aproveitar cada momento e usufruir das belezas naturais de sua terra natal. Rever e sentir o ar, o clima daquele meio era algo que dinheiro nenhum poderia pagar. Aquele sossego, aquela tranquilidade, aquela brisa fresca e pura que soprava em seu rosto suado realmente não tinham preço, mas tinha tempo certo para existir. A abertura de novas fronteiras agrícolas rodeava o seu quintal o que definitivamente parecia ser um caminho sem volta.

Estavam a menos de uma hora para chegar ao destino. A última parada antes do fim da viagem seria na bodega de Dona Prucidônia, uma senhora viúva, de sessenta e poucos anos, ativa. Ela tocava os negócios iniciado pelo esposo, morto ao ser picado por uma cascavel.   

Dona Prucidônia contava com a ajuda e o apoio de dois filhos dos onze que tivera. Os outros nove estavam esparramados pelo mundo. Ao receber os visitantes, não contou conversa, perguntou o que precisavam e iniciou-se uma verdadeira sessão de indagações. 

— Para onde estão indo? São de onde? Estão a passeio? Vão passar o Natal e o Ano Novo na região? São conhecidos do seu Bertolino? Pergunto logo, pois esse arremedo de estrada acaba na terra dele. Ali é o carretel. Emendou Dona Prucidônia. 

 Está me conhecendo não Dona Prucidônia?   

— Vai me dizer que é o filho de seu Bertulino... aquele que foi para São Paulo, bem uns vinte anos atras? É o Sinfrônio? E correu para abraçar o filho do seu vizinho.   

Pois é Dona Prucidônia...  eu mesmo. Faz exatamente vinte e um anos que fui embora e nunca mais voltei, gosto muito desse fim de mundo, mas achei que precisava procurar um rumo na vida. Quero dar um susto nos velhos, sei que eles não sofrem do coração. Respondeu Sinfrônio.   

A conversa fluía solta e agradável, remoendo os tempos passados, as boas coisas do lugar e como era a vida em São Paulo. Sinfrônio sempre muito receptivo, respondeu aos questionamentos de Dona Prucidônia e disse que não via a hora de rever os pais.     

A conversa foi interrompida pela chegada de um grande amigo do pai de Sinfrônio, Seu Gelásio. Foi uma festa ao descobrir que um dos moços presentes no barzinho era filho de seu Bertulino e de dona Serafina. Gelásio já foi logo inquirindo:   

Estão visitando o pai e não irão levar nenhum litro de água que passarinho não bebe? Perguntou seu Gelásio  

Passei aqui para comprar dois litros... da boa. E o senhor está convidado para logo mais, à boca da noite, tomar uns goles conosco. Respondeu Sinfrônio, ao mesmo tempo em que convidava o amigo.  

 Moço e eu vou perder uma oportunidade dessa. E o seu amigo? Gosta de molhar a palavra?  Perguntou Seu Gelásio.   

Desta aqui ele não conhece não Seu Gelásio. Disse Sinfrônio.  

Esse povo lá da capital só bebe um tal de uísque, cerveja.  Adiantou Seu Gelásio  

 — Pois venha cá que eu vou ensinar a não se afogar nessa água. Vou explicar direitinho como se deve beber uma cachacinha e não ter nenhum desentendimento com ela. E prosseguiu:   

Ali pelo final da tarde, quando vocês forem tomar banho no rio Bonito, tem que levá um litro para animar o caba a entrar n’agua fria. Deu uma respirada e pegou um litro de pinga que estava sobre o balcão e fez uma demonstração para Jacob:  

  Olha aqui, presta atenção que vou revelar um segredinho ao amigo para não ter nenhum desavença com a pinga, pois ela é traiçoeira com quem não sabe beber. Em seguida juntou os três dedos: médio, indicador e anelar; todos juntos e deitados, encostou no litro cheio que estava sobre o balcão, bem onde estava o nível do líquido, próximo a boca da garrafa. Posicionou o dedo médio, de modo que todos ficassem abaixo do nível, e disse:    

Daqui para baixo, até o limite desses três dedos você pode beber à vontade, sem problema nenhum. Aqui a pinga é fraquinha, fraquinha... não faz mal a seu ninguem e traz uma alegria danada para quem bebe. Em seguida apontou para o fundo do litro e disse:   

 Agora meu amigo ... se você insistir em beber até chegar nesses três dedos, aqui no fundo do litro, aí a coisa desanda... você está perdido. Essa parte que está no fundo do litro é perigosa, é braba, se chegar até aqui ela derruba o pião... eu mesmo não bebo até chegar nessa parte de baixo do litro nem que a vaca tussa. Finalizou Gelásio.   

A conversa foi encerrada seguida de risos por todos. Ambos compreenderam a brincadeira do amigo, que fazia alusão ao exagero. Jacob agradeceu a Seu Gelásio pela brilhante e elucidativa explicação, finalizando que depois daquele alerta tomaria todos os cuidados e jamais tomaria cachaça até aquela zona proibida, pois não queria correr o risco de ser derrubada pela malvada.  

Despediram-se e retomaram a estrada. Não conseguiam conter a alegria por estarem se aproximando do destino. A expectativa era muito grande. Jacob ansiava por mergulhar e conhecer as belezas do rio Bonito e apreciar as maravilhas da região vista do alto das serras. 

Sinfrônio, rindo por dentro, imaginava a felicidade estampada no rosto dos seus familiares ao revê-lo. A última vez que estiveram juntos havia sido na festa de formatura, quando concluiu o ginásio no Colégio Cristo Rei. Não tinha dúvidas que seria uma bela e agradável surpresa. Ninguém o esperava. A cada quilômetro percorrido aproximava mais da pequena fazenda dos seus pais.  

Outra vez foi tomado por uma nova onda de pensamentos. Lembrou-se de quando deixou o sertão com quatorze anos incompletos. Sua mãe, com os olhos marejados de lágrimas, próxima do fogão a lenha, na pequena cozinha de chão batido, o envolveu num demorado e caloroso abraço. Mais afastado, encostado na forquilha central do rancho, coberto de folha de piaçava, o pai, com o inseparável chapéu de palha na cabeça e o facão embainhado na cintura, observava-os em silêncio, com os braços cruzados.

Um filme continuava a passar em sua cabeça. Voltava ainda mais no tempo. Recordava-se de quando bem pequeno, ao ouvir o barulho de um avião, corria desvairadamente para o terreiro da casa. Com a mão direita aberta à frente do rosto, na tentativa de esconder os olhos da intensa luz do sol, buscava acompanhar o movimento da aeronave no céu do sertão, fincado nas proximidades do povoado do Prédio.

Sua mãe o fitava atentamente e com um olhar afetuoso afirmava: Quando você crescer vai avoar igualzinho um passarinho. De repente, sentiu um leve ardor nos olhos e um gosto salgado na boca. Lágrimas escorriam pelo rosto. Sinfrônio sentiu que precisava se recompor. Discretamente, passou as costas das mãos de um lado e outro do rosto e pensou qual seria a reação dos seus pais ao descobrirem a sua ocupação. Jamais imaginariam que ganhava a vida pelos ares. 


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