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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS FINALISTAS: LARA HAJE — CATEGORIA CONTO

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    Casa Brasileira de Livros
  • há 7 dias
  • 11 min de leitura
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SOBRE A AUTORA


Jornalista e mestre em Políticas de Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), Lara Haje trabalha como repórter na agência de notícias da Câmara dos Deputados. Co-autora do livro Paúra - um mergulho na síndrome do pânico (2018), publicou seu primeiro livro de ficção Eu não disse pela Cachalote (2024). Foi quinto lugar no Prêmio Off Flip 2023 na categoria crônica, com Tijolos de isopor, e uma das autoras classificadas do II Concurso Literário Philos Mulher 2024, tema “Ser mulher na América Latina”, com o conto Como se sobrevive a uma coisa destas.



A CRÔNICA FINALISTA


Você


Há uma presença que se mantém depois de qualquer partida. Talvez até a verdadeira presença dos seres e das coisas só comece depois de seu desaparecimento. Não acha? Não acredito em ausência. Só acredito no rastro.

(Mohamed Mbougar Sarr, A mais recôndita memória dos homens)



No dia seguinte ao seu enterro fiz ginástica. Quase não tinha dormido mesmo com o rivotril, como se dorme depois de uma coisa dessa, a casa toda num silêncio acordado, assustado e solene. Achei melhor malhar, ia fazer o quê, meu corpo já todo duro, eu reajo alerta ao pavor. E depois de malhar, melhor comer um ovo, tenho que ficar forte, tomar vitaminas, vou insistir pros meninos tomarem própolis, quem sabe descer, respirar no gramadão um pouco de sol. Vou comprar no verdurão um suco verde, a depressão também é falta de nutrientes. Nutrientes: a casa cheia, isso, fiquem com seus amigos, a gente pede uma pizza, coca-cola, sete colheres de açúcar em cada copo de 300ml, o açúcar espalhando pelo sangue um prazer imediato, o único possível num lodo de dor. Chocolate, vamos comprar um chocolate? Beto, traz um chocolate e dorme hoje comigo, por favor. O amor gentil. Mas eu não durmo, porque preciso te escrever tudo que não te disse, dizer pro amor antigo, o amor que morreu, o amor que nunca morre, porque ressuscita no trejeito do filho, na entonação da filha, eles têm tudo de mais bonito seu, me fazem lembrar que tinha coisa bonita, mesmo eu vendo tudo esgarçado. Não via mais nada de bonito em você. Nem de humano.

Em algum momento, sempre vai chegar este momento, mesmo quando eu de novo achava que não chegaria, chegava pelo lugar mais inesperado, em algum momento ele vai achar que tem o direito de bater com força a porta, eu posso acabar o casamento mas ele ainda vai achar que tem o direito de me xingar, aí vai passar, vou deixar passar, porque tem aniversário de filho, tem festa da família na escola, mas depois de um tempo eu vou estar no trabalho, no meio de um relatório, eu vou ter que sobreviver com uma enxurrada caindo do meu rosto no meio de um relatório, sem poder falar sobre a decadência longa de um homem, da miséria humana, quando souber que ele ameaçou a minha mãe, empurrou o próprio filho ou chutou o carro onde a filha está. Eu vou estar com febre de covid quando ele trancá-la pra fora de casa, não consigo te buscar, filha, pega um uber agora. No final, te reduzi a este pavor, a esta catástrofe iminente.

Todo o ódio contido, crescente, todo esse ódio que senti por você pelo cenário de dor, de violência, a que você submeteu a mim, nossos filhos, seus filhos todos, outras mulheres, todo esse ódio apagou para mim o todo. O todo que de fato te constituiu. O cenário de amorosidade que você também ergueu. 

Minha filha posta nas redes sociais fotos lindas com você, de você, que você fez, ela pendura na parede, e tem saudade deste você, ela consegue guardar este você. Você pode ter vários homens, mãe, eu só tenho este pai. João e Maria do Chico para ninar, massagem no pé, uma casa borbulhante, transitando produtor, diretor, quadros, vinho tinto, muito vinho tinto, sorvete de tapioca, câmeras, rolo de filme, CDs, mirtilos e amoras, cidades de dinossauros, barracas feitas de lençóis. Uma camada fina de pó sobre tudo, sob tudo, imperceptível. Até aparecer. 

Peço pro meu namorado me abraçar bem forte (tenho fixação por repetir nos homens o abraço seguro do meu pai), porque meu corpo é gélido de quatro às seis da manhã, o Beto me diz pode sempre me acordar às quatro da manhã. É quando eu percebia que você não tinha voltado e meus olhos ficavam abertos como se eu quem tivesse cheirado pó. Guardei na minha cama um lugar pro vazio de te perder. De te perder para o pó. 

Às vezes acho que culpo o pó pra não reconhecer minha incapacidade de ter te amado propriamente. De modo que tivesse preenchido qualquer pedacinho do seu buraco. De modo que você não tivesse se matado. Vinte anos depois de um beijo sabor alho numa boate escura do Plano Piloto, dezenove anos depois de você segurar abobalhado e satisfeito um bebê roxeado, nosso primeiro filho, onze anos depois do nosso término. Ah querida, se você soubesse grandes coisas sobre pôr um jeito na cabeça das pessoas não estava aqui arruinada: aproveito a insônia para ler Não fossem as sílabas de sábado. 

O e se persegue as pessoas atropeladas por um suicídio. A forma inapropriada como eu então sabia amar aprofundou o seu buraco. Eu queria um caminhão duplo de terra. Mas era uma menina boba, rígida onde não devia ser, contas, contenção de dinheiro, de gestos, de sonhos; tolerante no intolerável, vingativa. Seus berros repentinos entravam por todos os meus poros, células, tímpanos, cílios, me impediam de ouvir passos no seu alçapão, enxergar o tapete grosso cobrindo, perscrutar sua fragilidade. É possível preencher de terra o abismo? No fim, era um mesmo abismo, o seu buraco. Só no fim a gente entende por completo uma vida. 

Se eu pudesse voltar no tempo, lamberia sua dor até que você se sentisse um filhote frágil mas aconchegado, terreno, sem o abismo escuro te tragando. Mas você, pra mim, era tudo menos um filhote ofegante por afago. Um rotwiller enorme. Um pouco por conta da baba escorrendo da sua carranca, um pouco porque todos os homens pra mim são de fato maiores do que são: cheios de privilégios e poder, inclusive o de me enfeitiçar e depois me estraçalhar.

Nunca te enxerguei todo abismo, todo doença, nunca te desresponsabilizei, te enxerguei um homem com um vício, vários vícios, um transtorno bipolar, e tudo imbricado à personalidade estrepitosa, à misoginia, à empáfia, à sedução, gosto de vinho na boca, ao abraço protetor e galvanizante ao mesmo tempo. Não conheci seu abismo nos nove anos em que estivemos juntos. Você mesmo não reconhecia seu transtorno nem sua doença. Você nunca disse: eu tenho um vício; aliás, negou veementemente. Era sua responsabilidade dizer, sua responsabilidade tentar. Impossível que você não soubesse. O ser humano é até certo ponto desconhecido de si, na mesma medida em que enxerga muito do outro. Mas não a esse ponto, depois de três mulheres seguidas acabarem a relação com você pelos mesmos motivos, impossível, bem talvez um pouco possível; o outro, pra você sempre a culpa era do outro. Pessoa sórdida, você me chamou de sórdida na carta que deixou. E-mail, era um e-mail programado, a carta suicida foi atualizada tecnologicamente. Não sei se o conteúdo mudou, mas hoje ela nem sempre traz redenção e conforto. 

São quase seis horas, não vou cutucar o Beto, é a hora do sono pesado dele. Quero é te chacoalhar, ainda quero, para que você entenda que é preciso viver só para sentir a doçura calma do abraço do seu filho, do nosso filho. (Que contentamento repentino: meu filho ainda tem um abraço doce e calmo depois de tudo.) Eu tentaria tudo: por esse abraço. Tenho muito ódio porque você não tentou. Tenho o direito de dizer que você não tentou? Tenho. Mas já não sei mais. 

Foi só quando meu corpo deixou de ser todo uma úlcera de raiva e temor, foi só quando tive de novo uma pele com machucados secos, quando senti, ainda de espreita, o sopro da leveza, a leveza de não viver em estado de violência latente, foi só aí, sem eu mesma ser uma ferida purulenta, que pude tocar a sua. E minha barriga e meu peito tremeram juntos de desespero. O seu suicídio, o exemplo perfeito de como um mesmo acontecimento pode gerar emoções igualmente violentas e contraditórias, não apenas de um indivíduo para o outro, mas no interior de uma mesma pessoa. A tristeza se misturava à cólera, a contenção à eclosão, a prece à injúria, e contudo todos esses impulsos pareciam legítimos. Um turbilhão de indignações, críticas, pavor, estupor, vontade de acertar as contas, de fazer justiça, de se fazer ouvir.

O trecho é do Mbougar Sarr, o homem que disse tudo que não sei dizer. Uma pessoa que te faz mal morre. Passei mais de ano digerindo a morte de uma pessoa que me fazia mal. Até perceber que faltava engolir uma morte que ainda espumava pela boca: a da pessoa que me fez bem, fez meus dois filhos, fez de parte da minha melancolia a alegria de um jardim de jabuticabeiras. 

A noite em que você chegou de colete de nylon amarelo neon. Eu escandalizada e eletrizada. Você não cabia dentro daquele café-livraria, não cabia em nenhum lugar de discrição e murmúrio. Você preenchia o ar com cheiro de molho de macarrão, passos ritmados, voz de barítono, Jorge Ben Jor. Quem ama quer casa, quem quer casa quer criança, quem quer criança quer jardim, quem quer jardim quer flor, e como já dizia Galileu, isso é que é amor. Tenho saudade de acreditar no amor assim. Na conexão inquestionável, inescapável, eu ocupada inteira. Nunca houve entre nós o médio, só o neon. Ouvi de um psicólogo que todo casamento bem sucedido é mediamente bom ou mediamente ruim. O nosso, não. 

O ar sem gosto de bolonhesa, ocupado com o fedor de gritos. Eu acuada na minha casa e no meu corpo. Foi assim que quase desaprendi a falar e me desfiz em palavras escritas borradas em um caderninho. Violência: letrada. 

A sua amorosidade barulhenta transformada em berro escarrado. É uma doença isso? Eu te sabia doente, mas não te sentia doente com minha pele. Meu ser inteiro te sentia um monstro irreconhecível, o bicho que você virava. O transtorno em que a pessoa vira um monstro. (O transtorno do monstro misógino?) Ele adoeceu, foi adoecendo. Não fui eu que me enganei, não fui eu que provoquei. Ele estava doente. Repito de propósito, às 4h35 da manhã. 

Me abraça, Beto, meu amor, com toda a sua doçura (que alívio, outro homem doce), porque só isso pode me curar, um homem pode me curar de todos os homens (escolhi um analista homem), assim como outro homem pode esmigalhar o já destroçado. Tenho um pouco de medo de você, o seu ex-marido se matou, meu namorado enfia o dedo na ferida purulenta e gira um pouquinho feito parafuso. O medo da minha figura instaurar nele os mesmos ânimos suicidas, uma mulher tão cheia de motivações, qualquer um se esgotaria, qualquer um se mataria ao seu lado, você suga para si o pouco que os fracos têm: Mariana Carrara, Não fossem as sílabas de sábado. Me abraça, por favor, continua me abraçando, não posso me dar ao luxo de não ter seu aconchego, mas.

Ouço o barulho da água do filtro caindo no copo, quem será, quando me levanto, já não tem ninguém na cozinha, volto pra cama, tento chorar sem barulho, não acordo o Beto às 3h56, não quero que me veja totalmente líquida, t(r)emendo escorrer pelo ralo; se falar da dor dos meus filhos, escorro pelo ralo. Me compaixonei, tenho que inventar um verbo. Qual o verbo para virar geleia, derretida mas espessa? Geleifiquei-me. Se pudesse envolver meus filhos, olho para eles como um cão olha para o dono. Mariana Carrara me fala: é um perigo, somos cadelas dos nossos filhos, o olhar de súplica a pata mais ou menos erguida sem coragem de completar o gesto no ar, pelo amor de deus não saiam nunca daqui. 

É sempre ela que devemos seguir: a vida e seus caminhos imprevisíveis. Todos apontam para o mesmo lugar, nosso destino comum, mas para chegar lá seguem itinerários que podem ser belos ou horríveis, cobertos de flores ou de ossadas, caminhos noturnos que frequentemente percorremos sozinhos, mas nos quais temos a oportunidade de pôr a alma à prova. Mbougar Sarr de novo. Eu só sei dizer que a tragédia é algo que se vive sozinho, ela traz consigo a ilusão de que nossas feridas são únicas. Só os livros me fazem uma companhia completa, serena. 

Não fossem as sílabas de um sábado: duas mulheres sobrevivendo juntas a um suicídio, à maternidade solitária. O livro me caiu nas mãos um mês depois do seu suicídio, eu sobrevia colada a sua outra ex-mulher, mãe da sua caçula. Passo a acreditar na mágica das engrenagens do mundo, na morte a gente fica mesmo místico. O acaso é apenas um destino que se ignora, um destino escrito com tinta invisível, me diz Mbougar Sarr de novo. 

As letras, a companhia das letras, engulo e também vomito palavras, sem contar direito a história, atrapalhada pelas emoções fortes, não é assim que se escreve, não pode dar certo contar uma história assim, suco gástrico na boca. Mas o que fazer do que é inenarrável, inesquecível e irredutível ao silêncio? Eu não sei, mas sei que o homem sofre por aquilo que ele não pode esquecer, nem contar, nem calar, e acaba morrendo; eu não tinha vontade de sofrer nem de morrer. Então contei o que sabia, pouca coisa, afinal, mas quando terminei não me senti aliviada ou triste, antes dolorida de corpo e alma, como se aquele fragmento de existência pesasse toneladas, milênios, e a massa de sua idade se abatesse sobre meu ser enquanto eu tentava contá-lo. 

Eu não poderia reescrever Mbougar Sarr, só mimetizá-lo, transcrevê-lo. Porque não sabia nada, não sabia mais o que fazer no mundo, exceto escrever, sem esperança, porém sem resignação fácil, com obstinação e ardor e alegria, com o único objetivo de terminar o melhor possível, ou seja, de olhos abertos: ver tudo, não perder nada, não piscar, não se refugiar sob as pálpebras, correr o risco de ter os olhos arregalados à força para querer ver tudo, não como vê uma testemunha ou um profeta, não, mas como um sentinela deseja ver, o solitário e trêmulo sentinela de uma cidade miserável e perdida, escrutando contudo a sombra de onde vai surgir o lampejo da morte e o fim de sua cidade. 

Sentinela, vou até as portas fechadas dos quartos, colo o ouvido, será que dormem. Meus filhos, se eu pudesse envolvê-los como bebês, mas são jovens, quase adultos. Tomem própolis, meninos. Façam exercício físico, fortalece também o psíquico. Por que não quer fazer terapia, é ignorância isso, você é ignorante? Vamos pedir hambúrguer hoje?

Eu não dormia mesmo envolvida pelo abraço do amor novo, o abraço do amor doce que poderia curar todos os anteriores, porque só lambida e tempo curam mesmo ferida, a verdade-chavão universal. Mas o que as rachaduras no chavão mostram é que o passado não passa, o passado não cessa sua presença. Não lamento o que foi. Lamento o que será para sempre.

Se eu pudesse te envolver. Fui insuficiente. Tudo que eu toco pode se tornar miserável.

Mas você já reparou na covinha que se forma na bochecha esquerda da nossa filha quando seus olhos firmes ficam brandos e sorriem? Um beijo nesta covinha valeria uma vida inteira. Se isso não foi o suficiente, nada seria. O que me corrói é que você sabia disto, que era o suficiente. Não conseguir se controlar, não conseguir conter os próprios gestos, as palavras, a bílis derramada. Virar outro. O mais assustador devia ser para você mesmo. Você se desmaterializou, te re-humanizei. 

O dueto de Você, de Tim Maia, filha na voz, filho no piano. Como você não viveu para ver isso? A sua musicalidade imperar sobre a violência, a dor musicada em nostalgia, que poderia ter sido um futuro. 

Levantamos um alçapão de tristeza, e a literatura faz uma grande risada emergir do buraco. Você entra em um livro como num lago de dor escura e gelada. Mas no fundo do lago, de repente, você é surpreendido pela melodia alegre de uma festa: tangos de cachalotes, zouks de cavalos-marinhos, twerks de tartarugas, moonwalks de cefalópodes gigantes. Mohamed Mbougar Sarr, o nome todo dele, acho que já posso chamá-lo de Mohamed, tão próximos estamos

Encontro, no meio dos álbuns que você fez das nossas crianças, um vazio. Mando imprimir fotos da Bolívia, onde estivemos às vésperas do aniversário de um ano da sua morte, onde na vastidão você se fez mais presente, onde tive um pouco de temor até de você morto, é este o tamanho do meu próprio buraco, me faz sentir fantasmas, mas aos poucos também senti, mesmo sem entender: você queria estar suavemente com a gente, você conseguia finalmente estar suavemente com a gente de novo. Colo no álbum as fotos das nuvens espelhadas na fina camada de água no deserto de sal, flamingos, lagunas rosa e verde esmeralda, formações rochosas lunares, foto do nosso abraço triplo, a força vinda de nós mesmos, dessa corrente elétrica, dessa junção de músculos, ossos, vísceras, amorosidades herdadas que nos constituem. Mistério do Planeta no som, como você gostava. 


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