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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS FINALISTAS: LUÍS PIMENTEL — CATEGORIA CRÔNICA/SEMIFINALISTA CATEGORIA CONTO

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    Casa Brasileira de Livros
  • há 7 dias
  • 7 min de leitura
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SOBRE O AUTOR


Luís Pimentel é escritor e jornalista. Tem mais de 50 livros publicados em variados gêneros (romances, contos, crônicas, poesia, infanto-juvenis, música e teatro), por diversas editoras.

Por sua obra literária recebeu prêmios nacionais como o Literatura Para Todos, do MEC, Cruz e Souza, da Fundação Catarinense de Cultura, Prêmio Cidade de Belo Horizonte de Dramaturgia, e o 200 Anos de Independência, do Minc. Em 2021 recebeu em Sintra, Portugal, o Prêmio Ferreira de Castro de Ficção Narrativa pelo volume de contos Ainda tem sol em Ipanema, recém-lançado lá e aqui, pela Editora Faria e Silva.

Em 2024 lançou o volume de crônicas O carioca de Feira de Santana, pela Editora Mondrongo, e A viagem e outros contos (Editora Patuá).

Tem títulos para crianças e jovens selecionados nos Programas Federais PNBE e PNLD Literário. Ministra oficinas de criação no Rio de Janeiro e em feiras, festas e festivais literários.

Baiano do sertão, tem 71 anos, foi criado em Feira de Santana e mora no Rio de Janeiro.



A CRÔNICA FINALISTA


O ganha-pão do cronista


     A bolsa treme com o barulho do celular e a moça, no Metrô, revira tudo até encontrá-lo.

     Aciona o botãozinho e começa a ronronar:

     – Sei. Compreendo. Está bem. Eu compreendo, sim. Não faz mal. Tudo certo, deixa pra lá. Entendo, entendo. Fica pra outro dia. Tchau. Um beijo.

     Desliga e, enquanto guarda o telefone no fundo da bolsa, murmura entre dentes:

     – Cachorro...

     Uma crônica pode nascer assim. A gente escuta o diálogo (no caso, monólogo, pois só ouvimos as falas dela) entre a moça que está ao nosso lado, no Metrô, e alguém que liga para o seu (dela) celular. Quem terá ligado? Quem é o cachorro? O marido? O namorado? Um amigo? E o que ele fez para ser tratado com tamanho desprezo? Algo há. Não sabemos, claro, mas podemos e devemos tentar decifrar (pelo menos para o cronista e seus leitores) esse enigma. Correr atrás do personagem oculto e encontrar o “cachorro”. 

     Ou, no caso, “o mote” da crônica.

   O mote de uma crônica pode ser a oscilação climática, a passagem ou permanência do tempo, as estações do ano, o amor perdido, o amor renascido ou recém-encontrado, a rua, o bairro ou a cidade onde a gente vive, o excesso ou a falta de assunto, o trabalho ou a ausência dele, a dor ou a alegria (a dor costuma dar mais samba), os filhos, os pais, o time do coração e até “o cachorro” que liga para a moça.

     Definição escolar e convencional diz que a crônica “é uma narrativa histórica que expõe os fatos seguindo uma ordem cronológica”. A se apegar à origem da palavra, garantindo que vem do grego chronos e significa “tempo”, faz todo o sentido. Mas por que “histórica”, se a narrativa pode ser atemporal, mundana, momentânea, circunstancial ou mesmo leviana – a depender, claro, do mote? 

     Instado a oferecer uma definição para o gênero no qual foi mestre maior, Rubem Braga mostrou-se crônico e definitivo: 

     “Se não é aguda, é crônica!” 

     Aconselho que se evitem as definições apressadas, pois a boa e velha crônica, como está dito, tem como matéria-prima o tempo. E ao tempo (até para que os contratempos sejam evitados) deve ser dado todo o tempo necessário. 

     Depois que se encontra o mote, é só dar asas à imaginação (se possível, evitando usar expressões manjadas como “asas à imaginação”) e deixar que contraiam doenças agudas e exibam sintomas ou manifestações que se tornem crônicas. Na história que imaginei, mas que não tive coragem de escrever, a moça do Metrô desce na estação mais próxima e vai atrás do cachorro do telefonema, disposta a pegá-lo na mentira. Antes do encontro, para e se pergunta: 

     “E se ele falou a verdade, com que cara eu fico? Não seria melhor deixar essa história inacabada?”

     Claro que seria. Para que estragar o dia dele, o dela e o ganha-pão do cronista?



O CONTO SEMIFINALISTA


O cheiro bom da enorme barriga


     Bateu a porta do quarto com violência e se retirou, a malcriada, deixando um maço de cigarros e a calcinha lilás em cima da mesa de cabeceira.

     Telefonou dez minutos depois, do bar da esquina:

     – Vem aqui. Vamos tomar um chope e esfriar a cabeça.

     Embolei a calcinha com a mão e enfiei de qualquer jeito no bolso do paletó.

     Esperava numa mesa de canto, sorrisinho sonso:

     – Magoado comigo?

     – Toma. Vai ao banheiro e coloca isso.

     – Não fica bravo. Só você sabe...

     – Vai ao banheiro colocar isso, Elisa.

     – Não leva tão a sério. Foi só para provocar.

     Elisa é do tipo explosivo, porém compreensiva. Repensa as brigas, reconsidera e até se desculpa vez ou outra. Não tenho esse espírito e empaco com qualquer bobagem. Mas sou como sou, o que posso fazer? 

     O que você faria no meu lugar?

     O analista que ela me convenceu a frequentar vive a repetir que algo em mim arquiteta as crises conjugais. Que não vivo sem elas. 

     – Nem sem ela – insisto.

     A culpa é dos meus pais. Pobres meus pais. Pobres pais, que de um jeito ou de outro acabando pagando pelas cabeçadas dos filhos.

     – Péssima criação – pontifica, com a superioridade dos bem pagos.

     Isso livra um pouco a minha cara. Depois, meus pais já morreram mesmo.

     Elisa é desembaraçada. Fala coisas originais e perturbadoras na cama, diz palavrão, morde o lençol e eu morro de inveja. Não consigo sequer abrir a boca. Um “ai” ou “ui” de vez em quando, espremido, reprimido, para o travesseiro.

     O analista continua deitando falação, enquanto me estiro no sofá que ele chama de divã e às vezes cochilo, entre uma interpretação e outra.

     Descubro que Elisa não se realiza sexualmente comigo há muito tempo. “Descubro”, na verdade, é força de expressão. Apenas desconfio. Quem me conhece sabe que jamais tive talento para descobertas. Inseguro, não sei o que dizer. E, como era de se esperar, também não sei o que fazer. Fica por isso mesmo.

     Você faria diferente?

     Me arrebento, mas não volto ao freudianista enganador. Dizer o que para ele? “Minha mulher não sente prazer comigo?” 

     Eu?

     Um amigo me aconselha a arranjar uma amante, para ver direitinho como é, ter condições de comparar, ponderar melhor. Primeira mulher aos trinta, sem experiência nenhuma, só poderia mesmo dar no que deu: paixão desenfreada e dependência física, mental e moral.

     Como não sei me equilibrar sozinho, nunca soube, levo o assunto para casa. 

     – Esse amigo seu deve ser veado – diz Elisa.

     E me aconselha a voltar à maldita análise.

     Nem morto. Você voltaria?

     Nem outra mulher nem analista. Elisa, batendo portas e saindo de casa sem calcinha. 

     Há outro homem na vida da minha mulher. Parece título daquelas antigas fotonovelas, não parece? Mas é para valer, infelizmente.

     Espero a traidora na saída do trabalho e a acompanho, escondido entre os transeuntes, até o ponto do ônibus. Depois tomo um táxi e vou tocaiá-la perto de casa.

     Bebo dois cafezinhos e um conhaque no bar em frente. Compro cigarros e entro no elevador, ao mesmo tempo em que ela:

     – Onde você esteve até essa hora? – pergunto, com a cara amarrada.

     A frieza dos insensatos:

     – Não seja estúpido, querido.

     Dei para frequentar bares depois do horário de trabalho, coisa a que não estava habituado. Bebo com amigos, conhecidos e desconhecidos. Arrumei alguns companheiros de bebedeira e uma gastrite. Conseguir fazer Elisa pensar que estive com amantes, que é a minha intenção, não consigo. Oferece leite gelado e comprimidos contra a ressaca, a sonsa, me aconselhando a tomar cuidado para não fabricar uma úlcera.

     Úlcera. Como se não bastassem os inimigos. Esses vampiros traiçoeiros que os espelhos não refletem.

     Acordo tarde e sozinho. Ciúme e dor de cabeça. Um bilhete pendurado na porta do guarda-roupas me avisa que Elisa foi ao ginecologista. Costureira, cabeleireiro, depilador, compras, casa da mãe, ginástica, tudo mentira. Ginecologistas não passam de uma grande mentira. 

     Escovo os dentes fazendo caretas para conter o vômito. Faço um esforço e cuspo na pia a poça escura de nicotina e resíduos de cachaça. “Por que será que todos te enganam, infeliz?”

     Nenhuma resposta. O espelho conspira.

     Encontro Elisa radiante. Transpira felicidade por todos os poros. Voltou do médico com a notícia de uma súbita gravidez. Me aperta contra o peito e coloca minha mão sobre o ventre:

     – Está aqui, ganhando corpo, o nosso filho.

     “Nosso?”

     A desconfiança cresce dentro de mim, como o filho no bucho de Elisa. Se ela tem mesmo um amante, como diz o meu coração, esse inocente pode ser fruto da traição. Ou será que é mesmo fruto do veneno que sai do meu sangue, através do meu sexo, nas poucas noites em que fraquejo diante do fascínio e das artimanhas de minha mulher?

      Seja como for, se essa barriga não parar de crescer eu vou fazer uma besteira.

     Um pequenino berço dentro do quarto, ao lado da cama. Roupinhas de criança, presentes dos amigos e da família. É o filho que se aproxima e invade os meus pesadelos, que me espera no banheiro, sobre a mesa de trabalho, entre as complicadas companhias noturnas. Um filho que se diz meu filho, mas que não sabe nada de mim nem dos labirintos escuros da alma.

     O pesadelo e o delírio me transportam para uma sala enorme, onde estou rodeado de inimigos. As máquinas fotográficas despejam fachos de luz em meus olhos:

     – Dei um tiro no ventre. Apenas um tiro. No ventre – é só o que consigo repetir.

     Os repórteres insaciáveis querem saber de tudo, com riqueza de detalhes. O delegado encarregado do terrível homicídio faz pose para os fotógrafos e repete que cometi um “duplo delito”. Que devo responder pelas mortes da mulher e do filho de oito meses de gestação.

     O canalha do analista aparece no noticiário da televisão, falando em defesa da vítima. Pobre e infeliz mulher que dedicou tanto amor e atenção ao monstro em potencial que mais cedo ou mais tarde faria o que fez.

     Médicos e a sociedade têm certeza de que sou um alucinado sem cura, por isso serei transferido para um manicômio judiciário de segurança máxima. Homens e mulheres escrevem para jornais e promotores de Justiça, implorando pela minha execução sumária, para que possa servir de exemplo. Eu, que nunca dei qualquer exemplo na vida.

     Tenho pouca coisa a fazer no cativeiro. Por isso, passo os dias e as noites a folhear revistas coloridas, recortando fotografias de crianças para decorar as paredes da cela.

     Acordo nos braços de Elisa, com o corpo ardendo em febre e a camisa molhada de suor. A cabeça descansa suavemente em seu colo. E o cheiro bom da enorme barriga me faz dormir novamente. 



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