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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: BRUNO D'AFFONSECA — CATEGORIA CRÔNICA

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SOBRE O AUTOR


Vindo de Barreirinha no interior do Amazonas, Bruno é um aficionado pela exploração de ideias sobre o eu, a individualidade, o acaso, e o amor, e sempre buscou isso nas artes. É um apaixonado por literatura desde a infância, e sonha em escrever o que para ele, é belo, verdadeiro e bom, sempre tentando inventar novas maneiras de contar histórias. Seus textos refletem as tensões entre o indivíduo e a sociedade, entre o idealismo e a realidade concreta da vida, gosta de mergulhar nos estados interiores de seus personagens, na tensão entre presença e ausência, fé e dúvida, vida e morte. Possui contos publicados em diversas coletâneas, como a "Terra" do selo editorial Off Flip. Foi menção honrosa no 1º Prêmio de Poesia Jovem Thiago de Mello realizado em 2025.



A CRÔNICA SEMIFINALISTA


"Não se preocupe, eu estou bem" 


Ao contrário do que muitos afirmam, o universo não é uma entidade cruel e sádica fazendo experiências com seus ratos de laboratório. Nem a vida é uma sucessão de dores e fracassos que condenam o homem ao sofrimento eterno. O mundo existe como ele é, nem bom, nem mau, mas neutro. Cabe a nós entendermos a realidade e sobreviver nela. 

As experiências de uma vida têm o poder de moldar quem somos de maneira significativa. Por meio delas, podemos confrontar nossas fraquezas, reavaliar nossas prioridades e buscar um sentido significativo para nossa existência. A pandemia de coronavírus de 2019 foi uma dessas experiências transformadoras. Levou o mundo moderno a enfrentar um mal que não surgia desde o avanço da Gripe Espanhola. Cidades pelo mundo entraram em colapso enquanto as pessoas eram obrigadas a encarar a sua mortalidade de frente. Minha cidade e minha vida foram o microcosmo dessas mudanças.

Manaus é uma metrópole no coração da floresta Amazônica. Um labirinto de concreto, cujas ruas e vielas intermináveis nos envolvem deixando-nos com a constante sensação de estarmos perdidos. É um mundo onde o passado e o presente se mesclam em um equilíbrio delicado, e onde o futuro é tão imprevisível quanto as águas do Rio Negro.

Desde o início da pandemia, Manaus vivia uma espécie de sonho letárgico. Assistimos às notícias nos jornais, usávamos máscaras e álcool em gel em abundância e respeitávamos, no limite do possível, o toque de recolher. No entanto, a negação continuava a ser o nosso fio condutor. Todos sabíamos que se tratava de algo grave, mas era difícil acreditar por completo naquelas previsões alarmistas, cenários catastrofistas e no suposto apocalipse que se avizinhava. Afinal, a doença era grave, mas atingia principalmente pessoas idosas e com complicações preexistentes. Era doloroso perdê-las, sem dúvida, mas também era inevitável pensar que a vida funciona assim, as pessoas mais frágeis se vão em algum momento. O que nos cabe é honrá-las e continuar a viver.

E quando a natureza não segue seu fluxo natural? Era abril de 2020, lembro de estar em casa assistindo jornal na companhia da minha esposa, quando vimos a notícia de que contêineres frigoríficos estavam sendo instalados ao lado dos principais hospitais públicos da cidade. Eram caixas metálicas enormes, frias e escuras, quando abertas, expeliam uma tênue fumaça branca, que deixava claro sua natureza mórbida. Essa era a única maneira, diziam as autoridades, de retirar e guardar os corpos que estavam se amontoando nas salas das UTIs

Levava em torno de 14 dias para um corpo ser identificado e liberado para o enterro. A família era informada, mas não podia se aproximar, os corpos estavam infectados, então, obrigatoriamente, eram lacrados em sacos plásticos cinzas. Não havia velório e nenhuma espécie de “última despedida”. Valas comuns eram escavadas em um cemitério recém-criado. Os caixões eram enfileirados com um sistema falho de identificação, e então enterrados. O ambiente era árido. Um campo enorme com um chão de terra vermelha batida que se transformava em um lamaçal em dias chuvosos.

A imagem dos enterros coletivos estampada nos jornais foi o ponto de inflexão no comportamento dos manauaras. Em momentos de urgência, o medo acaba se tornando um conselheiro eficaz e confiável. A negação então cedeu lugar à aceitação, e a vida, antes banalizada, tornou-se uma prioridade. 

No final daquele ano, o cenário pareceu melhorar. Os números de casos diagnosticados de COVID caíram em todo o estado, o número de mortes também. Os leitos de UTI, apesar de ainda lotados, estavam menos pressionados e a normalidade parecia bater à porta. O toque de recolher foi suspenso, os estabelecimentos foram abertos e as ruas voltaram a ser como sempre foram. O que batia na nossa porta, no entanto, não era a normalidade, e sim a morte.

A variante P.1 do Coronavírus foi identificada em Manaus no início de 2021 e foi a responsável pela chamada “Segunda Onda” de infecções no estado. O número de casos aumentou de forma tão assustadora que os hospitais colapsaram em poucos dias, não havia mais leitos e as pessoas começaram a ser barradas nas portarias. 

Foi numa quinta-feira que o ar acabou. Devido à alta demanda, o estoque de oxigênio da cidade se esvaiu. As cenas de desespero das equipes médicas e de parentes ao redor dos centros de atendimento se multiplicaram. O que já estava ruim, se transformou em horror. Em um único dia, dezenas de pessoas fora e dentro dos hospitais morreram agonizando com falta de ar. 

Enquanto saía amparada pelas portas de um hospital, uma enfermeira contou que o oxigênio havia acabado ainda na noite de quarta-feira, e que para manter vivo um dos pacientes, ela passou oito horas em pé ao lado do leito manuseando o balão manual de oxigênio. A ajuda não chegou e quando o paciente morreu, ela foi carregada, pois, exausta, não tinha forças para andar.

Um mercado informal de balões de oxigênio se formou nos bairros da cidade. Pessoas compravam cilindros nas ruas, dos mais variados preços, e levavam, desesperados, para seus familiares nos hospitais. 

Médicos foram obrigados a escolher quem vivia e quem morria. Não havia oxigênio para todos e a escolha era inevitável. Apenas aqueles com maior chance de sobrevivência ganhavam mais tempo para respirar. Essa é uma escolha que a consciência jamais vai se permitir esquecer.

Nesse ponto da pandemia, a doença já não distinguia pessoas doentes e saudáveis. Velhos, crianças, jovens, gordos, magros, ricos e pobres, ninguém estava a salvo daquele pesadelo. Todos estavam morrendo como moscas abatidas. 

Enquanto isso, eu e minha esposa continuávamos tentando viver, ela costumava sair com mais frequência, era professora e, por diversas vezes, era chamada na escola onde trabalhava. Tentávamos tomar o máximo de cuidado com essas saídas.

Na primeira segunda-feira do mês de abril, pela manhã, eu tomei um delicioso café da manhã com ela, ouvimos Nina Simone e dormimos abraçados. Pela tarde, comecei a me sentir mal. Tive febre, tosse e dores no corpo. Como nenhum outro sintoma grave surgiu, acreditei que se tratava de uma gripe. Ela cuidou de mim como pode, tentava baixar minha febre com compressa gelada, fazia sopa e procurava, pelo celular, informações de algum hospital que não estivesse superlotado. Na manhã de terça-feira, comecei a ter uma leve falta de ar.

Decidi que era a hora de ir a um Serviço de Pronto Atendimento (SPA). Já estava há várias horas sem conseguir ser atendido, imaginei que seria algo rápido e que logo voltaria para casa. Minha esposa havia saído para almoçar quando finalmente fui chamado. Um Raio-X de tórax foi o suficiente para diagnosticar uma pneumonia, 20% dos meus pulmões já estavam comprometidos. Fiquei internado por algumas horas. Não podia mais receber visitas, pois havia sido diagnosticado com a variante P.1 Logo fui transferido para um recém-inaugurado Hospital de Campanha para infectados. 

Na minha última lembrança confiável, eu estou chacoalhando dentro de uma ambulância enquanto envio uma mensagem para minha mãe, “Não se preocupe, eu estou bem”. 

Quando cheguei ao Hospital, fui para enfermaria e fiquei em observação. Descobri que, em menos de 5 horas depois do meu primeiro raio-X, cerca de 80% dos meus pulmões estavam comprometidos. Minha saúde estava se agravando, e uma das médicas decidiu me levar para a UTI. Foi durante essas últimas horas na enfermaria que vivi o pior momento da minha vida. Ou é o que acho. Não lembro de nada. Pelo que me contaram, dei autorização para ser entubado em meio ao desespero da falta de ar. Minha família recebeu a notícia por telefone.

Diariamente, às 16 horas, o médico responsável ligava para minha esposa para dizer se eu estava vivo ou morto. Foram 31 ligações. Sim, passei 31 dias entubado, ora em coma induzido, ora sendo submetido a uma extubação fracassada. Estava incomunicável e isolado de todos que eu amava. Nesse período eu vivi em um mundo particular, angustiante, triste, alegre, louco e interminável. Sonhos se misturavam com a realidade, os sons a minha volta iam moldando, como um escritor molda seu livro, o enredo dos meus sonhos. 

Sonhei com minha família, coisas banais do dia-a-dia, conversas, momentos de alegria. Joguei pingue-pongue com meu sobrinho na lua, imaginei uma programação inteira de TV. Sonhei com amigos da faculdade, do ensino médio e até do fundamental.

Em boa parte da internação, mesmo sem estar lúcido, acreditei piamente que a equipe médica estava me manipulando e tentando me matar. Isso levou a sonhos e mais sonhos de desespero e angústia. Pesadelos que, na verdade, eram resquícios alterados do que acontecia do lado de fora.

Em um momento, sonhei que estava preso por correntes em um caixão. O desespero me dominava, eu chorava e me debatia violentamente. Enquanto isso, do lado de fora, no mundo real, eu estava amarrado na maca para que, em um momento de rompante, eu não arrancasse os equipamentos que me mantinham vivo.

Em uma das muitas tentativas de extubação, acordei por uns minutos, e implorei para que não me amarrassem de novo. Aceitaram meu pedido. Horas depois, quando estava tendo outro pesadelo, arranquei o meu acesso venoso central. O sangue escorreu pelo pescoço e impregnou os lençóis. Meu estado se deteriorou, fui entubado novamente.

Curiosamente, sempre chegava um fatídico momento em que meus sonhos e pesadelos se apagavam. Era como um blecaute na minha consciência. As imagens desapareciam, as cores iam embora, a programação saía do ar. Sobrava eu, flutuando em um vazio.

É inevitável sentir angústia ao lembrar dessa sensação. Eu sabia que estava ali, mas não existia nada ao meu redor. Eu me perguntava se aquilo era a morte, se finalmente eu tinha morrido. Após horas, no entanto, a programação voltava ao normal. E assim o ciclo foi se repetindo durante muito tempo. 

Dos momentos de vazio eu lembro bem, talvez tenhamos alguma facilidade em guardar lembranças de angústia, ou o subconsciente seja mais eficaz na guarda de memórias. O que importa é que hoje eu sei o que é estar verdadeiramente sozinho e conversar cara-a-cara com o nada. Em vez de olhar para o abismo como Nietzsche dizia, fui jogado dentro dele.

Ninguém esperava o que aconteceu. Éramos fortes e autossuficientes demais para imaginar que o nosso fim poderia vir de uma forma tão banal e súbita, ou que a ideia de mortes coletivas e toques de recolher não eram apenas roteiros de filmes e séries de TV.

Quando acordei do coma, estava sem voz, havia perdido 30 quilos, minha cabeça estava confusa e não podia andar. Levei alguns meses para me recuperar de tudo que passei, mas consegui. Desde então, mudei radicalmente meu estilo de vida. Minha alimentação, saúde e cuidados com o corpo melhoraram. Toda experiência me fez reafirmar meu amor por esta existência e lembrar de que é preciso zelar ativamente por ela, mas a neblina dessas memórias demoraram a desaparecer 

De maneira curiosa Manaus também levou um tempo para se recuperar de tudo que passou. Nunca vou esquecer aquela terça-feira, 2 de novembro de 2021, dia dos finados. Acordei pela manhã e saí para respirar um ar fresco na varanda de casa. Algo estava diferente. Senti o peso do ambiente. Cheirava a tristeza. Quando fui à padaria, podia notar a angústia no olhar das pessoas, aquele era o dia onde todos eram obrigados a relembrar aquele pesadelo.

Manaus parecia uma cidade fantasma. As pessoas caminhavam com passos pesados, como se cada movimento fosse um esforço descomunal. Todos estavam lamentando algo maior, uma perda coletiva que não se limitava apenas aos indivíduos, mas à própria essência da cidade. 

Como sombras que se alongam e se encurtam ao capricho da luz, os sofrimentos moldam nossa jornada. Embora passageiros, eles tecem a tapeçaria da nossa existência. Talvez, no fim, o vazio das ruas em toque de recolher e o da minha mente em coma, seja um lembrete constante de que, mesmo nas piores tempestades, há algo em nós que insiste em continuar, em respirar, em encontrar significado, mesmo quando tudo ao redor parece desmoronar.




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