PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: CARLOS SCHLESINGER — CATEGORIA CRÔNICA
- Casa Brasileira de Livros

- 13 de ago.
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SOBRE O AUTOR
Carlos Schlesinger - Advogado no Rio de Janeiro, Carlos tem 71 anos de idade, embora acorde todo dia com 18 anos e durma com 180. É autor do livro "Criando Caso Todo Dia", publicado pela Editora 7 Letras, no ano de 2012, organizador da coletânea "Chuva Miúda", de autoria de sua mãe, Flora Machman, pela editora Garamond, em 2011, e publica seus textos eventualmente no Clube dos Escritores 50+. Filho de uma jornalista, frequentou redações desde criança. Acompanhou a mãe em várias entrevistas que fez para as revistas O Cruzeiro, Manchete e Fatos e Fotos. Foi assim que conheceu Cecília Meirelles, Erico Verissimo, Clarice Lispector e outros. A palavra sempre me fascinou, em sua solidão e em suas harmonias, ele diz. Torce para o Flamengo e é apaixonado pelo Rio de Janeiro.
AS CRÔNICAS SEMIFINALISTAS
Quando o carnaval chegar
E a gente se guardava para quando o carnaval chegasse, como dizia a música. Evocava a Musa. E Baco, principalmente. Alguns partiam para as ruas e escolas de samba, outros tantos, mais afortunados, para os bailes de carnaval nos clubes. Os primeiros Cubas Libres, me lembro bem agora, nas asas, não da Panair, mas da liberdade permitida e de hora marcada. E lá íamos, já não sei se hoje ainda vão.
Na primeira infância, as marchinhas do passado, as meninas vestidas de bailarina, com purpurina no rosto. Um cheiro de lança-perfume no ar, as bisnagas douradas Rodouro, então consideradas inofensivas, as serpentinas multicoloridas, as bandas mambembes do clube tocando Mulata Bossa Nova, aquela que caiu no hully gully, A Cabeleira do Zezé, que trazia dúvidas ingênuas sobre o gênero do personagem.
Pérolas, as marchinhas, e entre estas, uma das minhas preferidas, a de Nuno Roland, que gravou a impagável, Mag, Ines e Ana, três mulheres com as quais passaria o carnaval, só de água e não de cana inspirada na então famosa água mineral Magnesiana.
O tempora, o mores! Oh, tempos, oh, costumes!
A adolescência frenética conduzia aos mesmos salões, mas a esta altura já com sambas mais animados, um Pega no Ganze, Pega no Ganzá aqui, Segura esse Samba Não Deixa Cair acolá, que se pulava agarrado com uma ex-colega de escola, a irmã desavisada de um amigo, transmutada em princesa oriental, pela visão perturbada por uns copos de plástico cheios de whisky Drurys, ou Hi Fi (vodka com Crush). E falando em Crush, como não mencionar que Ulalá, Ulalê, você é mais você, com o umbiguinho de fora, garota de Saint Tropez.
Jorge Veiga decantava o erotismo sutil da calça Saint Tropez, que deixava o umbigo de fora e interpelava a moça tecendo a comparação bizarra: laranja da bahia, tem umbiguinho de fora, por que é que você, Maria, escondeu o seu até agora?
Pó de Mico, Me dá um Dinheiro Aí, Mulata Ie Ie Ie, eram para fazer bagunça. Mas a beleza estava nas marchas-rancho que as bandas tocavam para o folião descansar, às vezes melancólicas, mas melódicas e líricas. Entre elas, uma das minhas prediletas, a Avenida Iluminada. O meu amor vai desfilar, e o autor só vendo seu amor sorrindo, ganhando aplausos da multidão, sem saber que estão rolando as lágrimas do seu coração.
Emoção, admiração ou rejeição? Jamais saberemos.
Para descansar, trôpego, o remédio vinha da banda, atenta aos movimentos do salão, que diminuía o ritmo, acenando com uma Bandeira Branca, Máscara Negra, e Avenida Iluminada…
Passa o tempo, passa a vida, e em frente à televisão ou na própria passarela…
Vejam, ilustres leitores, essa maravilha de cenário, é um episódio relicário que o artista, num sonho genial, escolheu para esse carnaval. E o asfalto, como passarela, será a tela, o Brasil em forma de aquarela.
A tela da beleza, das evoluções mágicas, das porta-bandeiras, mestres-salas e passistas. De Paulinho da Viola, sentindo o coração apertado, todo seu corpo tomado e a alegria voltar, cicatrizando um desengano que só um amor poderia apagar.
E a tela de Chico Buarque, com seu pincel amargurado, seu olhar decepcionado com a mais bonita das cabrochas daquela ala, onde ele era mestre-sala, constatando que quem não a conhece não pode mais ver pra crer, quem jamais a esquece não pode reconhecer e olha que ele todo ano a fazia uma cabrocha de alta classe e de dourado a vestia para que o povo admirasse.
E o pobre Benito de Paula? Levou uma volta, depois de ter gastado tudo em fantasia que era só o que ele queria ver, em retalhos de cetim. Mas chegou o carnaval e ela não desfilou , chorou na avenida e tudo. Mas fez um samba lindo.
No final o Chico Buarque terminou bem, depois de também ter sido toureado pela ingrata. Encontrou uma linda mascarada, quis saber seu nome, ardeu no seu fogo, e, seresteiro, poeta e cantor como ele só, deixou o barco correr, o dia raiar e mandou um carnavalesco seja o que Deus quiser.
O, tempora, o, mores!
Tempus fugit, as lembranças por vezes trazem contraditórias emoções etc., mas hoje eu não quero sofrer, hoje eu não quero chorar, quem quiser que sofra em meu lugar!
Esse texto é dedicado a Donga, Cartola, Ary Barroso, Zé Keti, Jorge Veiga, João Roberto Kelly, Irmãs Batista, Dalva de Oliveira, Lamartine Babo, Silas de Oliveira, Cartola, Mano Décio da Viola, Roberto Ribeiro, João Nogueira, Alcyone, Adoniran Barbosa, Marlene, Emilinha Borba, Beth Carvalho, Luiz Ayrão, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Neguinho da Beija Flor, além dos já citados e, mais que tudo, aos anônimos sambistas e carnavalescos de todos os matizes sociais que constroem nossos carnavais de todos os tempos e fazem as águas rolarem.
Ave, Ave, Evoé!
A vendedora de queijos
O menino se fazia, às vezes, de telefonista da casa, no nicho existente no longo corredor. Ali, uma mesa aramada, com tampo de fórmica azul imitando mármore, sustentava o aparelho telefônico. Embaixo, duas prateleiras organizando os três catálogos telefônicos da CTB, Companhia Telefônica Brasileira. O de assinantes, grosso, trazia por sobrenomes todos os telefones do Estado da Guanabara. A cada ano, eram trocados por outros e a sua chegada era um acontecimento na casa. Novas cores de capa, novos textos de introdução, contando a história do Rio de Janeiro.
Mais contido, o catálogo de endereços era também menos popular; dificilmente alguém saberia o endereço de uma pessoa desconhecendo-lhe o sobrenome. Já as Páginas Amarelas se constituíam em um manancial de novas informações e possibilidades. Dividido por assuntos, o grosso volume alinhava empresas, fornecedores de produtos e serviços que iam de A a Z. Recheado de anúncios e figuras, proclamava a existência de vendedores de arame farpado, casimiras inglesas, goiabadas e automóveis. Tudo era informação nas páginas amarelas.
Inventadas em 1886 nos Estados Unidos, eram um padrão internacional, um conceito de marketing encontrado em muitos países. Um fascínio. E era sobre esses tijolos de folhas de papel aglutinadas que repousava o telefone de galalite preta, com um dial de metal e a ostentação de um disco de papelão protegido por na capa transparente e seguro por um o de metal. Ao centro, o dístico da Companhia Telefônica Brasileira e o número da linha, escrito à caneta.
Pois era nesse telefone que o menino exercitava seus incipientes talentos de atendente, que lhe proporcionariam, uma década depois, seu primeiro emprego. Atendia ao telefone ao lado do inefável caderno de telefones organizadíssimo, que era mantido na parte de baixo da mesa de fórmica azul, na grade aramada. Telefonavam o pai, o tio, a tia, a prima de todo dia. Telefonavam do jornal, telefonavam as amigas e amigos da família e às vezes, uma tal de D. Cecília.
A mãe do menino dirigia-se a ele usando o imperativo, hábito nordestino indeclinável. E nesse jargão, numa tarde talvez de sábado, determinou que descesse para buscar um queijo que D. Cecília trazia de presente. O menino atendeu, mais por tédio que por curiosidade, embora o nome do marido que lhe fora informado fosse insólito. Este sim, era um nome ou sobrenome que devia ser difícil de carregar. Grilo. Com quem se pareceria o Grilo, perguntou-se o menino, quando se aproximou o pomposo automóvel conduzindo sua carga: Grilo, D. Cecília e um queijo.
O carro parou e abrindo a janela lateral, alguém que lhe pareceu um ser angelical chamou-o pelo nome. Era D. Cecília, uma senhora de cabelos brancos e olhos azuis translúcidos que nunca esqueceria por sua vida. A voz, já a conhecia, do telefone, e chamando-o pelo nome,
D . Cecília entregou-lhe o queijo, com as recomendações enviadas à família. D. Cecília, estava desbaratado e entendido o mistério daquela personagem. Por um tempo que não pode precisar, o menino juntou voz e corpo, olhos e mãos generosas a ofertar o presente e a compreensão de que ela, D. Cecília, vendia queijos, talvez produzidos pelo Grilo. D. Cecília, a vendedora de queijos. Dona Cecília Meirelles.




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