PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: FELIPE OLIVER — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros

- 13 de ago.
- 6 min de leitura

SOBRE O AUTOR
Olá, chamo Felipe.
Nascido no Uruguai e criado no Brasil. Escrevo contos e crônicas. Sou formado em jornalismo e filosofia, duas áreas que alimentam minha curiosidade. Experiências que ampliaram minha percepção e reforçaram meu interesse por temas universais como identidade, deslocamento e linguagem.
O CONTO SEMIFINALISTA
Vicente, o tolo
Vicente era mentecapto. Demente. Era também esquálido, feio e torto. Do ponto de vista psicológico, era criança no corpo de um homem. Pessoa de boa alma que padecia de juízo virado sem culpa. Não era louco de encarcerar. Nada disso, até tinha seu ganha-pão. Tinha emprego e o exercia com afinco, esmerava-se ao máximo varrendo os corredores do Hospital Vita Nova.
Era querido por todos: médicos, enfermeiros, recepcionistas, motoristas de ambulância e, quando não muito passageiros, pelos próprios pacientes do hospital. É verdade que dava trabalho, perguntem à pobre Diana, gerente do setor de limpeza, que vivia repreendendo o tolo, sempre lhe perguntando se havia tomado os remédios dele, e perguntava com razão, posto que Vicente esquecia com frequência. A condição de Vicente era por demais excêntrica, pueril e divertida para os antigos conhecido do hospital, mas desdenhosa e incômoda para os recém-chegados que, inadvertidos quanto à condição patológica, encontravam na sua conduta muitíssimo despeito.
Vicente tinha a estranha e defensiva mania de afastar grosseiramente qualquer homem. Se um homem se aproximasse, não! Se atravessasse o corredor no caminho ao banheiro e passasse perto, não! Se passasse sequer muito perto… Vicente desferia alguma destas desmesuras: “tá olhando o quê?”, “perdeu nada aqui, não!”, “cai fora, rapaz!”, “sai pra lá!” e, às vezes, concluindo com um malfadado “eu mato mesmo”. Entoava estas ofensas de maneira frenética e impessoal, quase maquinal. Permanecia cabisbaixo, com o olhar perdido no infinito de sua demência e num murmúrio pouco inteligível, tal era o pavor que tinha dos homens. Poucos ouviam o desaforo. No geral, passava desapercebido, mas de tempo em tempos aparecia algum paciente mais atento que, inconformado com a inexplicável hostilidade do funcionário, demandava explicações. Mas tais convalescentes eram logo postos a par da situação, pondo carinho e piedade no lugar do despeito. Tão querido era o demente!
Cabe esclarecer, Vicente era alegre e simpático e essas desmesuras eram seguidas de súbita mudança de postura. Havia certo padrão. Primeiro vinha a grosseria e o desacato, depois era tomado por repentino e inexplicável carinho, seguido de gracejos e declarações como “grandes saudades de ti” e “como anda a família?” ― dirigindo-se a pessoas por ele nunca vistas.
Muitos pacientes curiosos inquiriam sobre sua condição. “Mas ele nasceu assim?”, “Não acredito!”, “O que foi que se deu com essa pobre criatura?”, “Não pode ser!”, “É mesmo?”, “Como sabe?”, “E quem cuida?”, “Conhece como?”, “Mas não tem mais família, então?”.
Não se conhece muito sobre sua infância, a não ser por via de sussurros e rumores nunca confirmados. Criança tímida e reclusa, dizia-se que crescera num orfanato, lugar onde fora violentado e ferido por dois homens, supostamente, cuidadores das crianças. Coisa de naquele tempo ficar “doidinho” e desenvolver antipatia “pelos machos”. Falava-se em dois homens no começo, com o tempo virou três, depois quatro, e agora se fala em cinco ou mais. Sua mãe falecera de algum câncer, o pai fora enforcado (morte tão horrível quanto misteriosa), dois irmãos o abandonaram, e tinha uma irmã que o visitava somente se a consciência pesada berrasse em demasia.
Cuidar mesmo era D. Rosa que o fazia (com “r” fortemente pronunciado, pois era espanhola). Amor de pessoa, também querida por todos os funcionários do hospital. Adotou Vicente já maduro e só sabe Deus como foi parar nas mãos dessa mulher, santíssima! “La Madre Teresa de Calcutá” (como a chamavam alguns funcionários não muito instruídos, acreditando estar fazendo alusão a uma Santa de origem espanhola, e não albanesa…). D. Rosa foi a única pessoa que se dispôs a pôr fim ao desamparo do “retardadinho”, com ela mesma o chamava, com aquele “r” de fazer tremer a língua. Era santa, mas não meiga.
Vicente era igual criança. D. Rosa lhe mandava tomar banho e ele bufava, batia pé, dizia que não quer e mentia que já tomou. Até finalmente obedecer. Rapidinho, ela pegava a roupa suja dele, porque senão el retardadinho usa la misma de nuevo. De manhã, dava-lhe contado o dinheiro do ônibus para ir e voltar do hospital ― e como demorou a coitada para ensinar-lhe qual era o ônibus correto, santa paciência!
― O retardadinho ― dizia D. Rosa ― , uma vez foi parar lá donde Cristo perdió el gorro! Para achar ele… não imaginam o trabalho que foi!
Recentemente, Vicente vinha passando por certas mudanças, incrementando seu repertório de desmesuras. O mui didático porteiro do prédio onde Vicente morava com D.Rosa, um tal de seu Edinaldo, mostrava-lhe revistas dengosas ao mentecapto, pois, segundo o porteiro, “aos cinquenta anos já é hora de conhecer a vida!”. Vicente pegara gosto pela coisa, despertando nele, assaz tarde na vida, a paixão pelas belas moças. E agora era coisa de um “sai pra lá” aos “macho” e um “vem pra cá” às “muié”.
Por conta dessas novas aquisições, Vicente acabou perdendo o emprego dele no Hospital Vita Nova. Fato que ele comentava com despeito com qualquer pessoa que encontrasse na rua, difamando injustamente (por ocasião de ser sem-razão e não por malícia) sua antiga gerente, a pobre Diana, que tentou mantê-lo na equipe apesar da crescente inconveniência.
Passou a desfrutar a companhia do porteiro de manhã, durante o expediente dele, e, finda a labuta, nos bares de São Paulo à noite. Seu novo amigo fazia cerimónia a toda imprudência cometida por Vicente.
― Ó, garoto, você está é no cio, né, garanhão? Também… cinquenta anos e nada de… não tem quem aguente! ― dizia rindo ao lado de um dos garçons no bar. E continuou: ― Vou ao banheiro, não vai se enlaçar com nenhuma dessas moças, não! Muié é bicho cruel, tens é só que atiçar, elas ficam doidinha igual você!
― É isso que elas gostam, né? Eu sei, eu sei, eu falo “vem pra cá, coisa linda”, falo assim mesmo, só pra fala que falo ― respondeu Vicente.
Edinaldo riu e foi ao banheiro com dificuldade, embriagado. Nesse tempo, Vicente avistou uma moça num belo vestido de verão entrando no bar e decidiu fazer graça. Para quem? Não se sabe, pois o porteiro continuava trôpego na empreitada ao banheiro. Vicente fez como aprendeu, soltou obscenas lisonjas sobre as acentuadas curvas e as belas ancas que a “coisa linda” portava.
O pobre idiota, embestado pela glória dos passados festejos dos colegas, não dera atenção à presença do cônjuge da moça das belas ancas, que caminhava feito touro na direção dele, empurrando-o para fora do bar. Homem mau, homem bruto, macho que não atura desaforo alguma. A mulher dele implorou: “por favor, não”, “não há necessidade”, “já chega”, “deve estar bêbado, amor” e “por favor, vamos embora!”.
Mas nada. Estava surdo, imerso na exibição da virilidade, completamente possesso. “Como ousa um troço feio desses, miúdo e torto… e na minha presença! Sem o menor receio!”, matutava o bruto. Acertou-lhe violentas pancadas no rosto. O pobre tolo, apavorado, invocou todos seus traumas, berrou e gritou! Chorava e gemia, soltou a bexiga, o intestino e o pranto. E como era de se esperar… entrou nas velhas desmesuras patológicas de sempre.
― Tá olhando o quê? Perdeu nada aqui, não! Cai fora, rapaz! Sai pra lá! ― gritou feito desatinado, sem parar, igual papagaio, emitindo impropérios cujos significados exatos lhe escapavam. Culminando num ameaçador e mal-afortunado: ― Eu mato mesmo!
O agressor ficou atônito, incrédulo perante o audacioso caráter do idiota. As pessoas presentes, e alheias a condição mental de Vicente, enxergaram no desacato dele a nobreza da incauta coragem, vindo, é claro, de homem tão mirrado e abestalhado, sobretudo diante a brutalidade da impiedosa fera. E que fera! Encolerizado pela insolência e ultrajado pelo medo que supunha impor, arrematou três derradeiros golpes, agora com canivete em mãos, rasgando-lhe o ventre.
A moça bonita berrou, num timbre estridente e agônico, quebrando o silêncio dos incrédulos espectadores. O assassino correu assustado. Ela debruçou-se sobre Vicente, lacrimosa.
Entrementes… Edinaldo saiu do banheiro, ainda ébrio e confuso pelo ambiente funesto, achando aquilo muito cômico e descabido. Dirigiu-se ao garçom para averiguar a causa, mas no caminho compreendeu tudo, tornando-se lúcido num átimo. Correu até Vicente tropeçando por cima de cadeiras avulsas. Também se debruçou sobre o pobre demente.
― Chame a ambulância, seus inúteis! ― desferiu ao garçom que estava ali parado, ainda em estado de pânico. ― Que diabos aconteceu, Vicente!
Mas vicente só conseguia repetir de forma mecânica aquelas velha e tolas injúrias, num tom decrescente, definhando. No fim, o desatino dele parecia diluir-se no ambiente, buscando alguma justificativa.
― Fiz como… seu Edinaldo, eu juro! Desculpa, desculpa. Não queria… eu não queria… ― vociferou com dificuldade.
Gemeu suas últimas palavras, incompreensíveis, e fechou os olhinhos. Sua alma escapava, escorria-lhe a vida a cada suspiro, deixando a insânia para trás. A violência marcara o começo e o fim da sua loucura.




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