top of page

PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: FÁBIO PALÁCIO DE AZEVEDO — CATEGORIA CRÔNICA

ree

SOBRE O AUTOR


Fábio Palácio de Azevedo, ou simplesmente Fábio Palácio, nasceu no Rio de Janeiro e, ao final da infância, mudou-se para São Luís do Maranhão. É jornalista e escritor, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP), com estágio doutoral na University of Reading (Reino Unido). É professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão, onde ministra a única disciplina de Retórica ofertada em uma cidade de grande tradição literária e humanística. É também professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da mesma Universidade. É autor do livro "Sob o céu de junho: as manifestações de 2013 à luz do materialismo cultural" (Ed. Autonomia Literária) e organizador de outros títulos. Possui artigos publicados na imprensa nacional e é colaborador do caderno "Ilustríssima", da Folha de S.Paulo. Atua prioritariamente nas interfaces entre Comunicação, Filosofia, Sociologia e Artes.


 

A CRÔNICA SEMIFINALISTA


Crônica musical em Lisboa


“É brasileiro, já passou de português”

Noel Rosa


Recentemente, ao retornar de um compromisso na Espanha, tive a oportunidade de visitar Lisboa. A capital portuguesa, sempre enigmática e surpreendente, brindou-me com um episódio que não me poderia furtar a narrar.

Aconteceu em uma casa de espetáculos de fado que me tinha sido muito bem recomendada. Naquela noite, entre as apresentações que se sucediam, acompanhei com especial atenção um trio composto por cantora fadista — de aparência, aliás, tão bela quanto o timbre de sua voz — acompanhada de um violonista (eles diriam guitarrista) e de um executor do instrumento chamado guitarra portuguesa. 

A guitarra portuguesa é talvez o mais lusitano dos instrumentos musicais. Descende do cistre renascentista, que teve forte presença nas cortes de toda a Europa, mas também nos desafios e algazarras típicos dos ambientes populares. O cistre é ele próprio o elo perdido de uma antiga família de instrumentos de braço com cordas que inclui a cítola medieval e a cítara grega, ambas, por seu turno, ancestrais distantes do alaúde turco e, também, do bandolim — este velho conhecido da música brasileira.

Ao lado da técnica vocal dos fadistas — com seus vibratos, apogiaturas e outros ornamentos que traem a influência dos cânticos mouriscos —, a guitarra portuguesa confere ao fado sua sonoridade característica, capaz de tocar no íntimo os espíritos dotados de sensibilidade musical e poética.

E lá estava eu, em silêncio, a saborear uma sequência de fados quando achei que um deles, interpretado magistralmente pela vocalista, e cujo título não posso agora precisar, parecia-se em sua melodia com o Fado Tropical, de Chico Buarque e Ruy Guerra.

No intervalo do espetáculo, ao passar pelo lugar em que os músicos se apresentavam, passou-me pela cabeça perguntar:

— Vocês conhecem o Fado Tropical, de Chico Buarque?

A cantora fez sinal negativo com a cabeça. Já o titular da guitarra portuguesa decretou:

— Conheço, sim, mas o Fado Tropical não é um fado.

Clima grave. Fiquei olhando para ele um pouco desnorteado, sem reação. Limitei-me a perguntar:

— Por que não?

Ele não se fez de rogado.

— No Fado Tropical, a estrutura melódica e harmônica assemelha-se à do fado, mas a estrutura poética não é de fado. Por dois motivos: primeiro, o fado, na sua estrutura poética, não possui refrão; além disso, no fado a música é feita para a poesia.

Pensei primeiro no último argumento.

— Mas a primazia da poesia sobre a música realmente singulariza o fado? Não há outras músicas que são feitas para a poesia? Veja, por exemplo, o gênero que no Nordeste brasileiro denominamos repente: nele, a prioridade da letra sobre a música surge cristalina.

Ele não respondeu, incomodado. Enquanto isso eu pensava no primeiro argumento, que me parecia realmente desafiador. Puxei de meus alfarrábios mnemônicos algo dos antigos estudos de teoria literária, e logo lembrei que o formato não apenas dos versos, mas também das estrofes e refrães, é basilar para a definição da estrutura poética. Por ali nenhum questionamento seria frutífero. Joguei então, meio que à queima-roupa, talvez para ganhar tempo, um pedido de confirmação:

— Então não existe nenhum fado com refrão?

Ele balançou a cabeça negativamente, depois me olhou e galhofou:

— Te peguei, hein?

Foi então que a cantora fadista, que assistia a tudo em silêncio, resolveu entrar na conversa, felizmente em meu socorro. Se eu houvesse apelado à Imaculada Conceição, pensaria estar diante de um milagre.

— Pensando bem — disse a vocalista do grupo —, acho que existem, sim, alguns fados com refrão.

O guitarra portuguesa voltou-se a ela:

— Tem razão, mas não são fados tradicionais, só fados.

E eu, fênix rediviva:

— Mas não disse que o Fado Tropical era um fado tradicional, só um fado. Seria até difícil ser um fado tradicional se não é de Portugal.

Ele assentiu com a cabeça. Aproveitei para baixar a temperatura:

— Mas entendo seu ímpeto em defender a cultura portuguesa. Você está certo!

Ele gostou e retribuiu:

— Agora... Quer saber? Tem um compositor brasileiro que compôs um fado tradicional.

Mais do que eu, parecia que a abóbada celeste indagava:

— Quem?

— Um tal de... Vinícius...

— Vinícius...?

— Vinícius de Moraes! Ele tem um ótimo fado tradicional chamado Saudades do Brasil em Portugal!

— Ah, claro! Vinícius é o mentor estético do Chico Buarque. O do Fado Tropical que comentávamos há pouco.

O show ia recomeçar. Todos se sentaram e as luzes se apagaram. Cumprimentei os músicos cordialmente e me afastei. Executaram-se mais três ou quatro fados. Eram os últimos da noite.

Paguei a última taça de vinho e resolvi sair. Na passagem para a rua, encontrei novamente o guitarrista. Ele fez questão de me cumprimentar:

— Olha, mas eu gosto muito do Chico Buarque, viu?

E elogiou Chico. Citou várias músicas. Comecei a pensar naquilo como um pedido de desculpas. E passei à ofensiva.

— Veja, gosto muito da forma como você defende a cultura do seu país. Como afirmei antes, você é que está certo! Mas, se me permite uma recomendação, nunca diga que o Fado Tropical não é um fado. Sabe por quê? Porque ele é a possibilidade de ampliação do fado para onde ele deve prioritariamente ser levado, pela óbvia proximidade, inclusive linguística: os 200 milhões de habitantes do Brasil. Se do ponto de vista estético não é exatamente um fado, do ponto de vista político precisa ser. E, na minha modesta impressão, é a política que deve comandar a estética, não o contrário. A defesa das raízes culturais é fundamental, sim, mas não podemos deixar de atentar às possibilidades de ampliação. Mesmo porque uma cultura dificilmente resiste e sobrevive se não vai além de seus próprios limites.

Ele sorriu, e o sorriso parecia sincero. Despedimo-nos, então — provavelmente para sempre.

Cheguei de volta ao hotel já tarde da madrugada, embriagado e com sono. Mas a curiosidade não me deixou dormir. Precisava ouvir a tal Saudades do Brasil em Portugal, de Vinícius, canção da qual não me recordava.

Encontrei-a rapidamente na internet. Como em muitas de suas músicas, também nesta Vinícius faz um breve preâmbulo — espécie de mensagem introdutória não cantada, mas falada por sobre a melodia já em execução. Ei-la:


“Depois da marcha de rancho que eu fiz com o João Sebastião Bar, a maior ousadia que eu cometi na minha vida foi fazer um fado brasileiro [risos]. Mas foi sincero, foi honesto. Não sei se é fado, não sei se não é. Foi feito com amor. Chama-se Saudades do Brasil em Portugal.”


Vinícius teria gostado de saber o que me disse, sobre seu “fado brasileiro”, o guitarrista de Lisboa. Pois, como parece claro, o “poetinha” mostrava-se cauteloso em classificar aquela canção como um fado. E a meu ver ele tinha razão: do ponto de vista da estrutura poética, sim, é um fado — até mesmo tradicional. Mas a melodia é por demais chorada e açucarada... Está mais para Garrincha do que para Cristiano Ronaldo.

Aliás, sob o aspecto estritamente melódico e harmônico, tenho a impressão de que o Fado Tropical se parece mais com um fado do que a canção de Vinícius. E foi assim que me veio à cabeça uma última indagação: quem teria composto a melodia dessa canção? O brasileiro Chico Buarque ou o luso-moçambicano Ruy Guerra? Fiquei apreensivo com o que o Google me revelaria, mas encarei a consulta. E, ao contrário do que seria mais intuitivo, a música era de Chico, a letra de Ruy Guerra.

Fui dormir com uma única certeza: a música, como uma das mais altas realizações do engenho humano, não admite classificações rígidas, definições lineares. Mas isso não desabona, em seu arrojo nativista, o amigo da guitarra portuguesa. Sem a completa imersão no contexto intelectual, sensorial e moral de Lisboa — esta cidade tão enigmática quanto surpreendente — será sempre difícil compor um autêntico fado.


Comentários


Logo da Casa Brasileira de Livros

Endereço comercial:
Rua Dr. João Pessoa, 605
Bairro São João — CEP: 96640-000
Rio Pardo (RS), Brasil

CNPJ: 37.575.885/0001-67

+55 (51) 9 9559-7518

Forma de pagamento: pix e cartão de crédito

Envios em até 2 dias úteis após confirmação do pagamento

Política de troca, devolução e reembolso: até 07 dias corridos

  • Facebook
  • Instagram
  • Youtube
bottom of page