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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: GUILHERME DE FARIA — CATEGORIA CONTO


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SOBRE O AUTOR


Meu nome é Guilherme de Faria (Guilherme Caiuby de Faria)  , nascido em São Paulo, capital, em  29 de Dezembro de 1942.  Sou artista multimídia: pintor, desenhista, gravador, escritor (poeta, prosador, romancista, poeta, declamador, compositor).

 Como artista plástico sou renomado e pratico a pintura a óleo sobre tela e o desenho a nanquim desde 1959 quando tinha apenas 17 anos, e sou profissional desde 1962, quando passei a viver exclusivamente da minha Arte. 

Como escritor, exerço a literatura intensamente desde 2001, em três vertentes:

  1. A do poeta sertanejo cordelista homônimo Guilherme de Faria ( surgido  em 2001 e já com cerca de 100 cordéis  publicados em folhetos artesanais pela minha Editora do Pavão Misterioso) e  ilustrados por mim com xilogravuras). Meus cordéis, acondicionados em caixinhas de madeira (Kit–Cordel) já constam das coleções de grandes bibliotecas de Universidades americanas, como da Universidade de New Mexico, e até  da Biblioteca do Congresso em Washington  (vide Google).


  1. A da poetisa e prosadora gaúcha pampiana Alma Welt, meu heterônimo literário feminino, surgido também em Julho de 2001, e a partir de então desenvolvendo uma extensa e prolífica obra confessional ( na primeira pessoa) em  romances, novelas, contos, crônicas, pensamentos, poemas de verso livre, haikais, trovas populares,  e nada menos de 5.000 (cinco mil sonetos)  dodecassílabos alexandrinos,. Toda sua obra foi publicada desde 2006 em 60 blogs pessoais da Internet, administrados por sua irmã Lucia Welt (outro heterônimo meu). Em e.books , pela editora kindle Amazon , a Alma Welt já tem cerca de 20 obras publicadas. Em livros de papel a autora  tem um livro de contos urbanos (de seu “auto-exílio”  paulistano) intitulado CONTOS DA ALMA, de ALMA WELT, publicado em dezembro de 2004 pela Editora Palavras & Gestos (extinta), do falecido psicanalista Paulo Gaudêncio, que se apaixonou pela obra da Alma e a publicou às suas expensas.  Na ocasião, lancei o livro com grande sucesso de público e de vendas na Livraria Nobel da rua Augusta. Essa obra  de grande tiragem se encontra até hoje abundantemente à venda em inúmeros sebos online da Internet  (vide, por exemplo, a Estante Virtual). 

  2. Em livros de papel, a partir de 2022, a Alma já tem publicados, 8 livros: 

1. O romance autobiográfico A HERANÇA: O Sangue da Terra. ( primeiro volume da trilogia A Herança), uma saga de família  em sua estância (com um vinhedo) no Pampa gaúcho, riograndense), escrito em 2004 e publicado em 2022 pela Editora Primeiro Capítulo (de Portugal, Lisboa). Lançada em tarde e autógrafos na Livraria da Vila em São Paulo.

 2. A novela MARCELLO, de Alma Welt, passada em Paris, publicada em 2023 pela Editora Primeiro Capítulo, de Portugal, e lançada em tarde de autógrafos na Livraria da vila em São Paulo ( eu, sempre dando o meu autógrafo e o do Alma)

 3. A antologia CONTOS E CRÔNICAS DE ALMAWELT, publicada  em 2023, pela Editora Primeiro Capítulo de Portugal e lançado em tarde de autógrafos na Livraria da Vila, em São Paulo.

4. A antologia OS CONTOS SECRETOSDE ALMA WELT, publicado em 2024 pela Editora IPÊ DAS LETRAS  ( Brasil – Portugal, que encampou a Primeiro Capítulo (e vende os livros da Alma em português na sua livraria online).

5. O romance de Cordel em prosa O RETORNO DOS MENESTRÉIS (saga erótica-tragicômica da Alma Welt, passada nos sertões do Nordeste brasileiro), publicada em 2024 pela IPÊ DAS LETRAS. 

6. O romance A VINHA DE DIONISO, segundo volume da saga-trilogia A HERANÇA de Alma Welt, lançado em 2025, já  à venda no  livraria online da IPÊ DAS LETRAS. 

7. A versão em inglês feita por mim, do romance A HERANÇA. O Sangue da Terra, THE HERITAGE:The Blood of  the Earth, ( a novel by Alma Welt) publicada  com grande sucesso em 2025 pela grande Editora inglesa internacional EUROPE BOOKS e à venda em dezenas de livraria online no Mundo  todo, do Ocidente ao Oriente (vide Google). 

8. No momento tenho no prelo, pela IPÊ DAS LETRAS, o romance A ARA DOS PAMPAS de Alma Welt, o terceiro Volume da Trilogia A Herança, que fechará a saga da família teuto- gaúcha-açoriana Welt. Esse romance, já revisado e formatado será lançado em São Paulo no segundo semestre de 2025.

 Nota:  O grande  poeta Paulo Bomfim (1926-2019), co-fundador da Academia Paulista de Letras considerava a Alma Welt, “o mais incrível e brilhante caso de heteronomia da Literatura” (palavras dele) e escreveu um pequeno  prefácio para  a Alma Welt e Guilherme de Faria, até hoje não utilizado pois quebrava  o até então o meu preservado “segredo da Alma”. Tenho o facsímile desse  pequeno texto em prosa poética, em carta assinada por ele.





 

Como o escritor “Guilherme de Faria(ele mesmo)” tenho o livro inédito de contos urbanos paranóicos O NAVIO OS TELHADOS, escrito em 1975, que agora tem dois de seus contos ( o conto título, e Veneno para Ratos), entre os finalistas do Prêmio Pena de Ouro de 2024 da Casa Brasileira de Livros




OS CONTOS SEMIFINALISTAS


VENENO PARA RATOS


(conto de Guilherme de Faria, do livro O Navio sob os telhados)


 Minha mulher insiste em que eu compre um mata-ratos. Não podemos continuar assim, com a casa infestada. É um perigo, ela diz. Ela exagera, naturalmente. Deve haver quando muito um camundongo por aí. Não me incomoda. Mas a ela deixa à beira do terror. É natural, nas mulheres. Façamos-lhe a vontade. Saio hoje para procurar o bendito produto, embora não saiba onde encontrá-lo, não estou acostumado.

Andei bastante por aí, a esmo, e não consegui encontrar uma loja especializada. E os olhares, então, dos balconistas? Chamam o gerente, que por sua vez chama o dono quando este está na casa. Olham-me fixamente, e isso confesso está me fazendo mal. Dão-me vagas indicações, tal firma, talvez, é difícil... Para quê quer o senhor um mata-ratos? Quase chegam a perguntar. -Para matar ratos, ora essa! – tenho vontade de gritar-lhes. Mas não vou me deixar alterar por circunstância tão ridícula. E os gerentes, meu Deus! Uns vermes que se põe na frente do balcão com ares de donos, quando deveriam estar atrás, como todo mundo sabe.Despistam a origem e procedência do maldito mata-ratos, como um verdadeiro complô. Logo pra cima de mim, esse clima. De mim, homem pacato e inofensivo. E digo mais, humanista! Toda a minha vida tenho sido um humanista. E a minha biblioteca está superlotada!Bolas, deixemos isso para lá. Tenho esperança que a minha mulher desista e esqueça os ratos. Afinal, afora isso, posso dizer que tenho um lar feliz, com as crianças, os cachorros e o papagaio........................................................................................Preciso sair novamente, minha mulher passou uma noite de cão. E eu com ela. Não conseguiu pregar o olho, ouvindo as patinhas e os guinchos dos supostos ratos. Ratazanas, ela afirma. Enormes, devorando tudo. Descendo do forro e se lançando “a uma verdadeira orgia na cozinha”. Ela me fez descer para verificar, armado no mínimo de uma vassoura. Ela jamais saberá que me detive na sala, onde abri um livro, e de onde lhe gritava palavras tranqüilizantes de tempos em tempos... Amanhã comprarei o veneno. Não resta outra solução. Pelo menos para tranqüilizá-la de vez. Não me entendam mal, quero dizer... acabarei com os ratos quer eles existam, quer não.

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Hoje, após mil e uma peregrinações, consegui uma boa pasta mata-ratos. Graças ao dono de um bar que me deu a dele. Estava bem ansioso para livrar-se do produto, pareceu-me. Prefere ratoeiras, ele disse. São mais seguras e vez por outra apanham um gambá ou coisa que o valha. Não me convenceram suas razões, mas agradeci sua gentileza, ainda mais que o tubo parece novo, não foi sequer espremido e a caixa está perfeita, a bula bem dobradinha dentro.

Meti a caixa no bolso e voltei rapidamente para casa, ansioso por abri-la e desdobrar a bula, coisa que não se pode fazer por aí a esmo, sentado num balcão de um boteco qualquer. Há sempre alguém nos observando nesses lugares. Os bares já não me agradam como antigamente, não posso sequer tomar meus remédios com água mineral, sem perceber que me olham. Já notei mesmo, uma vez, alguém, talvez um policial disfarçado que se abaixou para pegar o papel de estanho das minhas pílulas anti-alérgicas enquanto eu me afastava. Vivemos numa era inquisitorial, ninguém se iluda. Mas propícia, por isso mesmo, às Grandes Artes e à Filosofia. Como Toledo, de El Greco, se lembram? Como Toledo.

Tranquei-me no quarto, conscienciosamente retiro o tubo da caixa e desdobro a bula. Enquanto leio concentradamente as recomendações e a fórmula, observo o desenho e os dizeres impressos sobre tubo. Uma caveira, meu Deus, e duas tíbias! E um rato, naturalmente, fulminado, de pernas para o ar. Perigo, aqui diz. Deixe longe das crianças e dos animais domésticos. Precauções... “Veneno violento”. Aqui a fórmula: Arsênico, estricnina... Basta, Santo Deus! Não me atrevo a continuar a leitura. Reparo se a tampa plástica está bem apertada. Guardo tudo na caixa novamente e vou ao banheiro lavar as mãos; aproveito para escovar os dentes e fazer um bom bochecho......................................................................................Procurarei um lugar seguro para guardar o veneno, até segunda ordem. Vou trancá-lo à chave na gaveta da minha mesa no escritório. Parece o único lugar privado nesta casa, onde a família, as empregadas, os cachorros, o papagaio e os ratos reinam, absolutamente. Não tenho chave de mais lugar algum, com exceção da porta de entrada, naturalmente, que mantenho trancada a sete chaves. Com todos esses perigos que rondam por aí...  na calçada, em frente, na rua atravancada de automóveis que passam em alta velocidade... Devo zelar pelos meus dependentes. Os livros, os cachorros, as empregadas e os papagaios. É preciso manter tudo sob controle. Assim tudo correu bem até hoje, embora isso me custe um esforço e um desgaste excessivos. Mas um homem é um homem. Deve saber dar ordens ao jardineiro, bem como exercitar os músculos da alma. É isso! Ponham peso, ponham peso! Sou um halterofilista da alma! 

As responsabilidades quanto mais se somam, mais fortalecem o espírito.Vou anotar isso no meu caderno de Máximas e Aforismos...........................................................................................................Hoje à noite quando todos estiverem dormindo, poderei pôr as iscas na cozinha, desde que levante mais cedo que todos amanhã, bem entendido. Um pouco de pasta num pedaço de pão ou de queijo em cantos bem escondidos. Atrás da geladeira. Não! É um absurdo. Não se pode correr um risco desses. As crianças, os cachorros... Não há lugar onde não fucem, não se escondam, não brinquem! Que loucura, Santo Deus, pensar em aplicar essa maldita pasta. É evidente que os acidentes mortais começam por imprudências como essa. Não pensar nos outros... eis todo o perigo. Minha gaveta... É claro que não é um lugar seguro, o móvel pode ser vendido, a gaveta aberta... Entre o fundo e a gaveta... Não. Bem se pode imaginar esses móveis sendo desmontados por restauradores, no espólio das famílias. Sabe-se lá onde vão parar as coisas! Nada nos pertence no plano material. As casas, as cadeiras e as estantes estão perpetuamente em trânsito de família para família através dos anos, das gerações. Tenho bastante conhecimento da vida para prever o itinerário de uma mesa de escritório. De uma mesinha de cabeceira, até mesmo.Vou escondê-lo atrás de um livro na estante, bem no alto. Do meu Livro de Máximas, ou do Rabelais, por exemplo. Ninguém aqui lê o Rabelais há séculos. Não, não posso. Uma empregada pode cismar de espanar justamente esses livros, os mais bem fornidos em segredo e poeira. Encontra a pasta... Sabe-se lá que idéias podem se passar na cabeça dessa gente. Uma tentação, um mau pensamento... Nunca sabemos a quantas andamos com as empregadas. Elas sempre nos odeiam, certamente. Têm lá os seus motivos para isso. Todos os salários são insatisfatórios. Além disso, somos sempre mais odiados quando pagamos do que quando somos pagos. As revoluções começam assim. Haja vista........................................................................................Estou desesperado. Devo livrar-me dessa ameaça o quanto antes. Ah! o vaso sanitário... Uma boa descarga. Não, não é seguro. Muita coisa já voltou de lá, é sabido. Os meandros hidráulicos de um vaso sanitário, quem os conhece? Imagino bem suas curvas falsas como de certas mulheres, suas armadilhas, seus  mecanismos de defasagem e devolução. Estive para sucumbir certa vez, ao cochilar sobre o vaso. Fui despertado, felizmente pelo grugulejar do monstro, sentindo as polpas frias. Não se pode confiar nesses aparelhos, humanizados pela nossa longa e confidente convivência Além do mais, os esgotos, aonde vão parar? É evidente que um tubo destes, desembocando num rio da periferia, possivelmente flutuaria sendo pescado pelos moleques. Passaria fatalmente de boca em boca como pastas de dentes ou geléia. Esses meninos são loucos por pastas de dentes, comem-nas instantaneamente! 

Vou sair à rua e livrar-me dele. Não posso devolvê-lo, despertaria suspeitas. Que devolve um veneno violento? Além do mais já não me lembro do bar onde m’o passaram... Ah! O infame! Estou sendo usado, é evidente. Quem presenteia o seu próprio veneno? E ainda por cima com aqueles ares de  generosidade e desprendimento. Oh! Meu Deus! 

Estou andando há horas pelo bairro todo e não vejo onde possa jogar o maldito. Trago-o bem embrulhado no bolso do paletó, disfarçando o volume com a mão. Entretanto sei que me olham, não posso sequer sacá-lo sem ser notado. Fazê-lo escorregar para uma lata de lixo... Não! Os cachorros vira-latas e os mendigos não o deixariam escapar! Estou cheio de sobressaltos, ziguezagueando pelas calçadas, preciso disfarçar. Como pude sair à rua com um troço deste? Quisera estar em casa, imediatamente. Afastei-me muito! Passei por uns terrenos baldios... Nem pensar neles! Todos os vagabundos, gatos e malfeitores têm neles suas bases. Cairiam sobre o veneno como sanhaços, eu sei. Preciso chegar depressa, mas não posso correr, seria perseguido e cercado em segundos. Que agonia! Pronto, estou em casa. A porta bem trancada. Estou inundado de suor. Vou tomar um banho e dormir. Mas não me separei dele! Dormirá comigo, no bolso do pijama. Não pregarei o olho, já sei. Se adormecer, vou amassá-lo, rompê-lo: CONTAMINAREI A CAMA TODA!

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Passei uma noite terrível. Minha solidão aumentou  devastadoramente. Não posso partilhar minha carga com ninguém aqui. Foi-me dada esta missão, a mim, que sou o homem da casa. Meu silêncio cresceu e já não encontro apoio ou desabafo pois devo manter as aparências para não assustar ninguém. Pobres frágeis criaturas... Perambulo pela casa, o veneno no bolso. Não posso continuar assim. Sou muito lúcido para expor-me aos perigos de uma... distração! É isso! Sei alguma coisa sobre a nossa vida inconsciente. Ou melhor, não sabemos nada. Pressentimos e convivemos com ela à distância da espessura de um vidro. A vitrine do Sonho... Ela nos dirige às vezes, e nos ironiza. Está sob nós como a segunda camada da pele. E não sabemos quando somos nós ou ela. Como posso responsabilizar-me até o fim?

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Esta noite sento-me à escrivaninha e escrevo. Dói-me a cabeça e a dor moral é maior. Tenho os olhos enevoados e escrevo. Minha resignação está ainda em carne viva, “Não culpem ninguém”... “ A mim coube a responsabilidade pela segurança de todos”...” Só faço questão absoluta da cremação”... Aperto o tubo que ergo na mão esquerda convulsa... SOU O GUARDIÃO DO VENENO PARA TODO O SEMPRE!!

FIM

( São Paulo, 1975)






NAVIO SOB OS TELHADOS

(Conto de Guilherme de Faria)

Habito um porão inabitável. Qualquer coisa como uma toca, cujas paredes se cobrem lentamente de musgo e cujo teto poreja água a um palmo do meu crânio. Aqui trabalho. Sou observado e observo o corredor desta espécie de vila por uma meia-porta-e-janela, única fonte de luz. Antigo prostíbulo, creio, todo o beco, que não passa de cômodos a fundo e de um único lado de um comprido corredor descoberto. Uma faixa pintada no chão desemboca sob um alto portal de ferro batido com laivos de art-nouveau. Afora o portão, feiúra e miséria no corredor e dentro as portas. 

Minha atividade desperta curiosidade nos vizinhos. Gente simples, que se debruça na portinhola, fala comigo e me dá palpites. Abanam a cabeça e noto-lhes um ar de piedade e incompreensão: ”Um moço tão distinto, coitado, não deve vender nada. Também, cada coisa feia...” 

Trazem-me às vezes, carinhosamente, um prato enorme, montanhoso, de refeição operária. Arroz, feijão, couve, tutu, às vezes uma carninha, outras coisas. É engraçado.... essa gente parece comer bem. Ou pelo menos muito. Aceito, agradeço e como.Continuo a trabalhar. Um amigo chegado há horas e estendido em minha cama, me aponta com o dedo e um olhar neurótico seus próprios pés, incapaz de se mexer. – “Desvie os pés dos pingos d’água, ora essa!” Mas ele deixa cair a cabeça no travesseiro imundo e se resigna, os mumificados, a água escorrendo pelos sapatos.

Há qualquer coisa de insondável nisso tudo. O hálito cavernoso de minha residência me consome...Os vizinhos me alertam contra Dona Gertrudes. Querem-lhe mal e vice-versa. Ela não mora no raso como nós. Vem varrendo água de muito longe, não descobri de onde, lá por cima. Meu porão tem uma fachada, vejam só, que termina bruscamente e não se vê mais nada, nem casas nem telhado acima. Estamos no rés-do-chão da Vida, creio eu....Uma cascata de água suja, seguida de uma frenética vassoura, despenca pela escadinha de cimento que ancora ao lado da minha porta. No fim da vassoura vem a Sapa (é como eu a chamo, mentalmente). Literalmente uma Sapa. Baixinha, gorda, esborrachada, com larga boca em curva descendente, óculos grossíssimos que lhe põem os olhos esbugalhados. E um saiote, meu Deus! Branco, rodado, muito curto para tão veneranda Sapa.Ela varre a imaculada e exata largura de sua faixa territorial, seu passadiço até o cais da rua. E invectiva contra a fila amontoada de latas de lixo, papéis picados e pontas de cigarro que se acumulam nos dois terços da largura do beco. “- Porcos imundos, gente suja, veja isso, é demais, etc.”. Dona Gertrudes me aponta a desolação poluída do beco, e pressinto que daí por diante vou se disputado como testemunha pelos dois partidos. Contemporizo. A diplomacia me cai bem, baixo que estou. Dona Gertrudes se entusiasma. Lá vem ela com um prato cheio também. E fala, como fala! Não percebo bem, mas ela me conta coisas e me convida a subir ao seu terraço, às suas plantas.Deixo-me levar, não há retorno agora. A Sapa ciceroneia os seus domínios, lá vamos nós! E subo. O terraço não termina aqui, é estranho... Uma passarela de madeira escala as ondulações. Estamos na superfície. Os telhados... Percorremos um corredor envidraçado que ondeia sobre tábuas estranhamente inclinadas. Mal posso descortinar a paisagem. Paisagem? Estou preocupado com o piso! Chegamos a um enorme galpão com madeiramento à mostra, de uma manifesta sabedoria naval. Um bom salão... Viro-me para todos os lados. Pequenos seres me observam com seus olhos de vidro e pestanas lustrosas. Por todos os lados Dona Gertrudes me presenteia com a visão de suas preciosas prendas. Bonecas e mais bonecas de plástico, industriais, monstruosas, forradas de tecidos franjados, rendas, babados, quinquilharias. Centenas de pequenos monstros rechonchudos que pressinto sobre as pregas e os bordados de uma alvura obsessiva, entre fitas e adereços cor-de-rosa e azul celeste. Arre! Por hoje chega. Despeço-me da Sapa debaixo de conselhos, advertências, mezinhas e receitas para os meus pulmões de náufrago, e volto atarantado ao meu porão. 

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Conseguirei que a água corra das torneiras? Já arranquei as vísceras das paredes, e os tubos pendem obscenamente sem resultado algum. Está tudo obstruído há séculos, como intestinos podres!. “- Não, não aceito encomendas, minha senhora. Faço catres e alcatres só para mim mesmo. Meu negócio é outro, está vendo? Preciso apenas de mais um banco manco e uma mesa tesa. Daí esses cavacos. Faz favor... - “Não, não corto esse pedaço. É grande assim mesmo. Eu sei que é melhor “após a chuva”, mas não é da minha especialidade. Cada um faz o que pode, né? É o Apocalipse, minha senhora. O fim dos Tempos, pois é... Tá lá na Bíblia. Procure lá. Pois é... Não, encomenda não, me desculpe. Dinheiro, só de graça, trabalho demais, não tenho tempo, compreenda.”Droga, ai vem o Krishnamurti do número 4. Filosofia espiritualista, né seu Rodolfo? Vai bem com os paletós, compreendo. A sua solidão espiritual durante as costuras. Passar tudo a ferro, não é mesmo? As cuecas do espírito... Não se zangue, seu Rodolfo. Devagar, devagar, divaguei. Compreendo: é preciso crer para ver. Senão descamba. É mesmo. Decaímos muito, decaímos muito, concordo. O Apocalipse vai bem, obrigado. Não, não corto, não corto. Da minha janela diviso o seu André sentado à sua porta gritando as maiores pragas para a sua santa mulher. A saber: Filha da puta! Merda de vida! etc. 

Tem o olho direito vazado. Ou é o esquerdo. E sanguinolento. Perdeu-o ontem na sarjeta, de onde sua mulher o recolheu para a ressaca e o desespero de hoje, estou vendo......................................................................................Noite. Marina irrompe pelo portão com armas e bagagens, os olhos arregalados e estoura em minha sala, apavorada, perscrutando a “pornela” fechada atrás de si. Ponho-me à espera também, olhando a madeira que se torna quase viva. Três minutos. Pá Pá Pá. Passo duros e bufos que se precipitam pelo corredor e se chocam contra a minha “japorta”. Ouço um vivo range de dentes através dela e a tensão muscular insuportável. Dois minutos. Marina de olhos vidrados, verrumando-os no postigo. A veneziana estala e ele se prcipita de cabeça na monha sala, meio pendurado pela cintura. Apavorado, mantenho-me heroicamente estático em sua frente, Marina, afásica, colada na parede atrás de mim. –“Alto lá!” (deixo de dizer). Estou agarrado pelos braços à altura dos bíceps por munhecas enormes e fortíssimas. Os dentes dele rangem em minha frente enquanto tomo um ar sereno e beatífico à custa de pavor. “Devo dominar o animal magnífico com meus olhos espiritualizados e severos...” Arre!!! Três minutos eternos de tensão e meus braços roxos quase escorrendo entre seus dedos. Ele desaba no banco à minha frente, sacudido de tremores. Uma ligeira pausa e lá vem de novo o ranger de dentes que parece nascer de algum lugar que não a sua boca, no ar, atrás de mim. Ah! Rangem agora em uníssono os dele e os da mulher-baixo-relevo-na-parede-atrás. Estou falando manso Há alguns minutos sem perceber. Repetindo frases de domador firme e amoroso, até cessar lentamente os ruídos e os passos. – CHEGA! NÃO AGUENTO MAIS! BASTA!

 (Ainda bem que eles foram embora juntos há algum tempo). Tenho os braços adormecidos e dou o maior esbregue na solidão do meu porão atormentado...........................................................................................................................................Hoje minha cabine amanheceu verde. O teto suando em toda extensão. Envolto em vapor gelado, visto meu guarda-pó de banho. Vou ter uma conversinha com a dona Gertrudes de homem para homem. Tanta água à tona e meu chuveiro afônico... Trifásico, afásico. Raios! Afino o ouvido para a cascatinha. Lá vem ela. Pego-a na altura dos escaleres, vai ver.- Como vai, Dona Gertrudes? O Capitão voltou? É preciso manter o convés limpo, não é mesmo? Nunca se sabe... Ah!, é Dona Gertrudes? Gostaria de ver. Subamos. É mesmo! Tutu! Veja só...E sapatilhas! Não como Marina não, Dona Gertrudes, ela faz moderno. Essas coisas... Dançarina, pois é... Lamentável. Essas são bailarinas, hem, Dona Gertrudes? Tal e qual. Ah! A senhora fez também... Quando criança? Ah!... Não, dona Gertrudes, passos modernos, assim. Isso! vamos lá. Pois é, modernismos. Muito bem. Pelo salão todo Ah! Clássico, prefere... Pas-de-deux, não é Dona Gertrudes Pelços corredores! Saltemos! Quê? O que diria o Capitão, Dona Gertrudes? É mesmo... é preciso disciplina a bordo, concordo. Paremos, Uf, uf. É o retrato dele? Seu filho oficial... Ah! E as bonecas... Não, Dona Gertrudes, ela é do moderno. Canal 13, Pois é até mais, Dona Gertrudes, fica para outra vez. Ahoy, não é mesmo? Ah! Ah! Ahhhooooyyyy!!!

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Noite, outra vez. Todo dia, noite. Droga, Marina aqui agora. Minhas tias tinham que me fazer esta visita? Vinte anos, ou três, pelo menos. – Não, tia Judith. Sente-se aqui. Não tenho bolos, pois é. Só rum. Não querem? Sentemo-nos na cama. O tapete está fora de foco? Não, não varro. A limpeza... Aqui é o porão... Eu sei que foi a senhora que deu, Tia Mode, mas... Chama-se Marina, né Marina? Montero. Pois é. Isso mesmo. Artista. Assim, pardinha, né, tia Mode? Uma graça, não? Tia Judith, a senhora está bem? Sente-se aqui. A senhora não está bem acomodada, deve ser. Não tia Mode. Moderno. Canal 13, por aí... Maravilhoso, não? Isso, Marina, faz para elas verem. Ligo a vitrola. Incrível, não acham? Não, não se incomodem, ela está acostumada. Contorcionismo, não é mesmo? Espere aí, eu afasto as cadeiras, podem ficar nelas, eu arrasto, hummm. Estão com pressa? Faz daquele jeito, Marina, isso! Ta ta ta tará-rá! Grande! Tia Mode, tia Judith! Prá quê essa pressa? Marina, pare! Dê um beijo na tia Mode, na tia Judith. Gostaram, né? Voltem sempre. Um pouco úmido, faz mal pra artrite.... Ah... canal 13, tia Judith. Canal 13! 

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Dona Inalda veio me pedir que pare de riscar fósforos de noite. Os estalidos não a deixam dormir. Além disso faz mal para a minha saúde, tanto fósforo assim. É preciso dosar, ela diz. Aproveito e convido-a para jogar palitinhos. Prefere bingo. “Não, não tenho, Dona Inalda, que distração a minha! Bingo, taí...” (arrumo disfarçadamente a cama, cobrindo as manchas suspeitas.) Que diabo! Um homem tem direito de se divertir sozinho, sem prestar contas a ninguém. Minha cama está na sala, vá lá... Mas não tenho culpa do camarote estar fazendo água. Dona Inalda parou de lançar olhos suspeitosos e sente-se mais à vontade. Velhota simpática... “É uma flauta, Dona Inalda. Não, não toco, só apito. Desde criança, Dona Inalda, quando ouvi pela primeira vez o Bartolo. “Seu Bartolo tinha uma flauta... ! Firí-rí-rí. Firí-rí-rí-rí-Fiiii-Fiiiiii! 

Toma chá comigo a Dona Inalda. Estamos íntimos. Da próxima vez, tomo chá com ela......................................................................................Vou tirar isso a limpo. Não me dão recursos. Não há condições. Não tem almoxarifado. Água entrando, água entrando e o Capitão não vem. Dona Gertrudes que se cuide. É muita responsabilidade para uma senhora. Ainda mais em tais condições. Viúva em vida. Esperando, esperando. Raios, o Capitão está faltando com os seus deveres. Iremos a pique sem mais contemplações. Tenho vontade de precipitar as coisas. Não, não posso fazê-lo sem antes conhecermos as Ilhas, sem termos nos movido um centímetro sequer. Que humilhação, meu Deus! Que humilhante, naufragarmos aqui mesmo, ao pé do cais...Falta manutenção, é o que digo. Tenho vontade de fazer motim, para o bem da dona Gertrudes. Vou demovê-la de sua inércia tão pouco masculina. Droga, é preciso que alguém assuma o comando, nem que seja provisoriamente. Dona Gertrudes! Dona Gertrudes! Raios! Esta morta, por hoje.

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Hoje amanheci numa vaga melancolia, e com a veia lírica. Devo mostrar meus versos ao resto da tripulação? Não estou bem certo... Não se usa mais poemas desde o tempo das escunas, com seus mastros e tudo. Além disso, prefiro declamá-los para a Dona Inalda, que tem senso crítico e é vagamente demodée. Cada um com suas fraquezas, não é mesmo?“Salta espuma bravia, salta e dança

Como um demônio, eu lhe digo, como um demônio...”

Visitas novamente. Não posso. Não posso. Não estou para sociedades. Batam quanto quiserem na minha porjela. Não tenho tempo nem dinheiro para acotovelamentos. –Merda! Vão embora! Boa, meia palavra, bosta. É preciso controle sobre a situação. Sangue frio. Andaram perguntando por mim à Dona Inalda, ela me contou. Mas posso confiar na nossa boa camaradagem de velhos marujos. Ah! Ah! Cuca fresca, lirismo! Adoro meus serões matinais. Pena a Dona Inalda não estar aqui. Não me arrisco a sair, isso não! Com todos esses ratos de bordo, que sobem pelas amarras... que se danem! Não é hora de subirem a bordo, ratos de água doce! O navio vai a pique, sabiam?! Não, não sabem. É um segredo entre mim e a Dona Inalda. Mas devo agir. DEVO AGIR DIANTE DAS CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS! !

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Tenho tudo preparado. Sei como retirar Dona Gertrudes da sua inércia. Pego-a hoje na lavagem do convés. Uma mãozinha, um versinho, verão! Dona Gertrudes não resiste ao entusiasmo trabalhista. Devo contribuir com minha parte, vou esvaziar meu balde de fósforos, já que aqui não tem almoxarife nem contra-mestre. Raios! E ouvido atento para a sua banheira... é o sinal. La vem ela. Lá vem ela. Dona Gertrudes! Como passa, Dona Gertrudes? Vento de estibordo, hem? E nós aqui, atracados... Vou pegar minha vassoura e um balde, espere. Vamos lá, assim é melhor. Mais água.. Vamos subir, é preciso vir trazendo lá de cima, não é mesmo? Não poupemos água. Agora os panos. Com os rodos, assim... Dona Gertudes, o porão está fazendo água, vamos descer. É preciso calafetar. Talvez um pouco de alcatrão. Vê? Assim vamos a pique. Não podemos ficar parados. Pegue ali o machado. Eu fico com este aqui. Ali, aquele banco, e a mesa. Temos muita lenha. Ateie fogo! Isso! O armário. Metamos o machado em tudo. Assim. Abaixo essa estante, os livros, ateie. Deixe-me fazê-lo. Esta cama, por quê não? Está úmida? Meta o machado ali naquela coisa. Tudo! Tudo! O Apocalipse! É preciso fazer-nos ao largo. Mais! Mais! O fogo está alto, mais ainda. Juntemos tudo!

. Vamos zarpar! O navio! O NAVIO! Estamos fazenda água. Ao largo! A toda marcha! Preparem os escaleres! Mais lenha, Dona Gertrudes! MAIS LENHA! MAIS LENHA! MAIS LENHA!

FIM


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