PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: GUILHERME MASCARENHAS — CATEGORIA CRÔNICA
- Casa Brasileira de Livros

- 8 de ago.
- 4 min de leitura

SOBRE O AUTOR
Nascido em 1995, Guilherme Mascarenhas é paulista, pianista amador, apaixonado por música (sobretudo trilhas sonoras de filmes e obras modernas não tão convencionais) e advogado. Desde criança se aventura com as palavras, semeando dentro de si o propósito de deixar a linguagem escrita falar quando a verbal se esgota. Seu maior veículo de inspiração é a música, que age como um gerador de imagens cinematográficas, as quais se traduzem pela escrita.
A CRÔNICA SEMIFINALISTA
A estética do ordinário
Se eu tivesse conseguido sair do quarto a tempo, provavelmente não teria tido a reflexão à qual submeto o leitor neste momento. Mas, felizmente, eu estava preso demais pelos meus edredons, que me puxavam para a cama e, por ironia, ainda não me deixavam dormir mais um pouco. Foi uma experiência libertadora.
No limiar da consciência, sou compelido a ignorar certas coisas rotineiras que não fazem sentido algum (ou melhor, fazem o sentido que damos a elas). Antes eu pensava constantemente no futuro, no passado, e quase nunca no agora. Isso me fez perder detalhes irrelevantes, dos quais a minha mente cansada sente falta, pois são os únicos indícios de estabilidade nessa vida de busca quase inútil por um sentido.
Eu acordo, forçado pelas convenções modernas a tomar banho e a me vestir para ir ao trabalho. Preciso do meu quarto e de todas as coisas que o compõem, mas automaticamente o ignoro, por força de uma inércia procedimental. Preciso da minha cama para me sentar, mas só dou valor a ela à hora de me deitar e dormir. Preciso da estante para armazenar meus perfumes e outros acessórios, e no fundo sequer lembro que ela existe. Preciso, ainda, das minhas gavetas para guardar boa parte de minhas roupas, mas eu só não as ignoro pois tenho o trabalho de abri-las pelos puxadores.
Mas naquele dia — que poderia ser um dia ordinário, sem qualquer caráter especial —, por alguma invasão divina, creio eu, atentei-me para o espelho, do qual preciso para ver como as pessoas poderão me ver (isto é, por fora; por dentro é outra história). Minha imagem estava meio deformada.
É claro que eu não senti tanta estranheza nesse aspecto — considerando que este fosse moral ou psicológico, talvez; todos nós estamos um caco ultimamente —, mas custei a fugir da constatação, pois, na verdade, a deformação era física. Ou seja, era muito contraditório eu estar todo alinhado no traje a rigor e, ainda assim, me ver fragmentado diante do espelho.
Sim, ele estava rachado.
Uma enorme rachadura em diagonal, que se estendia do centro da borda direita até o canto inferior esquerdo, desgalgando o centro do vidro em sua trajetória, de onde se desdobravam múltiplas rachaduras. Não me recordo o que aconteceu para produzir aquele resultado tão grotesco. Não obstante, sete anos de azar ainda parecem menos assustadores do que o lampejo de revelação que me ocorreu ao ver aquela imagem.
Diante de meus olhos havia o desequilíbrio em minhas pernas, onde as rachaduras eram mais preponderantes, e meus pés estavam totalmente disformes, irreconhecíveis. Pode-se até dizer que não estavam lá. Ou seja, se meus pés não estavam ali, poderíamos sequer discernir onde eu, como um todo, estava? Para agravar o conceito caótico da imagem quebrada, eu vi, ainda, no meio da rachadura maior, a cama desarrumada. Provavelmente por culpa da minha pressa, gerada pelo meu atraso — a rapidez como consequência paradoxal da lentidão.
Fiquei tão absorto que deixei o celular escorregar de minhas mãos (certamente haveria mais uma coisa quebrada naquele dia).
Mas aquelas rachaduras já estavam há meses no espelho! Como só fui prestar atenção àquilo naquele momento improvável? Sou incapaz de responder.
Deus provavelmente estava pregando uma peça em mim. Só sei que eu via, por mais anárquica que fosse a imagem, uma beleza independente e alternativa: a beleza das coisas quebradas e do quanto elas fazem falta no meio das máscaras de moralidade que as pessoas vestem para exibir características do que elas definitivamente não são. Nas rachaduras do espelho e na reviravolta dos meus lençóis eu vi uma sinceridade resignada e uma esperança humilde — seja lá do que for —, e fiquei comovido por mim mesmo, pois eu estava vendo a minha própria imagem, nua e crua, em tudo o que estava refletido no espelho, da mesma forma (ou “desforma”).
Em um gesto curioso, aproximei-me e toquei as rachaduras. Era como se eu tocasse as minhas feridas, que por tanto tempo eu ignorava, recusando-me a medicá-las, sob a crença demasiadamente positivista — e um tanto falha — de que tudo ficaria bem, eventualmente. “O tempo cura”, é o que dizem. Mas às vezes o tempo pode nos deteriorar mais do que curar. Certas rachaduras demandam um conserto bruto; outras, a quebra total; outras, que joguemos o espelho todo fora.
Dependendo do ângulo, meus olhos captavam outros objetos em meu quarto, aos quais havia tempos que eu não prestava atenção (a bem da verdade, eu havia me esquecido por completo de sua existência). E, quando os vi, percebi que eles fazem parte de mim tanto quanto minha gravata ou meu celular: o presente só existe porque existiu um passado, por mais horrendo que tenha sido.
As lágrimas que caíram no chão foram prova viva de que eu sabia, ainda que no fundo (e agora à tona), que as coisas que me compõem são também aquelas que com o tempo eu passo a ignorar, e elas são tão belas quanto as eventuais extravagâncias da minha vida fora de mim.




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