PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: JANE TUTIKIAN — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros

- 13 de ago.
- 7 min de leitura

SOBRE A AUTORA
Jane Tutikian nasceu em Porto Alegre. É membro da Academia Rio-Grandense de Letras. Escreveu 24 livros, entre contos, novelas e novelas juvenis. Teve dois livros adaptados para o teatro: A rua dos secretos amores, com Jairo Klein e Fica Ficando, com Luciana Éboli e Maninha Pedroso. Tem tido adaptações de seus contos para curtas em vídeo por Elisa Lucas. Recebeu alguns dos prêmios mais importantes da literatura brasileira, incluindo o Prêmio Jabuti e e o Alfredo Cabaça da Academia Brasileira de Letras. Participou de várias antologias nacionais e internacionais.
O CONTO SEMIFINALISTA
A CASA DO MEU PAI
Puxo a raiz para fora
e o mundo viro do avesso.
Já ano tem fim nem começo,
antes, depois ou agora.
Paulo Hecker Filho
Depois de muitos anos, eu estava de volta. Havia chegado a hora de vender a casa e eu, como único herdeiro, deveria fazê-lo.
Difícil voltar àquele lugar. Uma mistura de alegria e de tristeza, de busca e de despedida. Pouco importava a beleza do dia, se o que ia dentro de mim, agora um homem, era um verdadeiro tumulto. Pessoas desconhecidas, as daquela rua, todas desconhecidas.
Abro a porta do 96 lentamente, lentamente subo o degrau, que uma vez fora tão alto. A salinha é, agora, de insuportável pequenez, abro os dois braços e toco nas duas paredes. Olho, ainda com respeito, olho para o quarto da minha mãe e do meu pai, e não olho mais. Mais dois passos e estou na varanda, onde fazíamos as refeições e onde ficava a minha cama, escondida atrás da cortina floreada, ao fundo. Espio a cozinha, onde uma pia ameaça cair de tanta ferrugem e volto à sala. Empurro a janela que dá para o pátio e uma das venezianas fica na minha mão. Era tão grande o pátio! E o vala, que exigia uma corrida para que se pulasse, não é mais do que um passo! A goiabeira deixou de ser o meu gigante! Vejo apenas a árvore pequena, de tronco fino e descascado, em que meu pai me ensinou a subir.
Estranho como os lugares guardam a alma das pessoas! Penso. Meus pais ainda estão aqui. Eu mesmo – umeuoutromoleque – ainda estou aqui e, daqui, talvez, nunca tenha saído! Houve um tempo em que esta casa era uma casa alegre!
Meu pai tinha um Nasch preto que quase ocupava toda a largura da rua, por isso estacionava metade sobre a calçada, fazendo um ronco de motor de avião, depois, buzinava, avisando que havia chegado, como se não soubéssemos que havia chegado. E, então, entrava casa adentro arrastando tudo o que via pela frente, com seu caminhar pesado, com suas mãos estabanadas, com sua voz de locutor de rádio. Primeiro, jogava o chapéu na chapeleira e gritava cesta, depois me pegava no colo, reclamando do peso, porque eu já estava mesmo ficando um homenzinho, e beijava a minha mãe. Por alguns minutos ficávamos assim, os três, uma família inteira que ele mantinha, com orgulho, mantinha sob proteção. E não sei que melhores minutos do que esses que ficávamos assim: os três: uma família inteira.
O que minha mãe tinha de frágil, ele tinha de força.
Era um homem bonito, o meu pai. Era descendente de italiano e minha mãe dizia que, quando italiano é bonito, é muito bonito. Meu pai era muito bonito. Moreno de olhos pretos e sorriso grande. Mas era mais do que isso, era uma pessoa alegre e envolvente e vivia rodeado de amigos. Difícil o dia em que não trazia alguém para jantar conosco e todos os que trazia eram belíssimas pessoas. A casa, então, se iluminava e, sentado ao seu lado, na cabeceira da mesa, eu ria com as grandes risadas de coisas que não entendia. E a música do rádio. E as histórias alegres e cheias de suspense do meu pai. E o cheiro de noite misturado com o cheiro de comida. E a alegria de dormir mais tarde. frisos das calças certos e dos colarinhos lisos - ou por causa da comida ruim. Meu pai gostava de comer bem. Mas. Eram sempre brigas breves, porque a minha mãe chorava e ele não suportava ver mulher nenhuma chorar, quanto mais a sua! E, então, se derretia em pedidos de perdão que duravam quase todo o dia. Comigo ele não brigava. Bastava um olhar direto e eu sabia que tinha que escovar os dentes ou tomar banho ou estudar ou ir para a cama ou simplesmente ficar quieto.
Éramos uma família feliz, sem dúvida que éramos, nós três!
Nunca soube dos negócios do meu pai, acho que minha mãe também não sabia, mas era um sujeito bem sucedido que tinha um escritório só dele - de que se orgulhava - e tinha uma máquina de escrever e uma máquina calculadora só dele - de que me orgulhava - que só ele podia usar.
E quando ganhava o que chamava de uma bolada de dinheiro, vinha para casa cheio de presentes. Trazia camisolas curtas e transparentes e perfumes e vestidos bonitos para a minha mãe e, para mim, roupas iguaizinhas às dele e, à parte, os brinquedos, os carros e os aviões de montar que tomavam uma grande parte do nosso tempo juntos.
Mas não era só o que fazíamos, não! Nos fins de semana, andávamos de bicicleta no parque, jogávamos futebol, íamos juntos ao campo do São José e pescávamos no rio e, para dizer a verdade, às vezes não fazíamos nada juntos, e ele ficava olhando para mim, decerto fazendo futuros, e eu ficava olhando para ele, que, se me dessem escolha mil vezes, mil vezes escolheria aquele meu pai.
Um dia, ele foi embora.
Só soube que ele tinha ido embora, quando voltei do Grupo Escolar, pelo choro da minha mãe e porque, naquele dia, minhas tias solteiras - e ele implicava com as minhas tias solteiras – vieram para a minha casa e sentaram em volta da mesa e começaram a falar muitas coisas do meu pai – e eu, embaixo dela, apenas ouvi em silêncio, apesar de achar que era tudo uma grande mentira. Tia Marina dizia que ele era um jogador inveterado e que andava metido em negócios escusos. Não sabia o que era inveterado ou negócios escusos, mas sabia, muito bem, que boa coisa não era, porque ela não gostava do meu pai. Tia Almira dizia que só podia ter mulher no meio daquela história, porque elas andam muito provocantes e porque, cá entre nós, teu marido nunca foi flor que se cheire. Minha mãe não dizia que sim nem que não, apenas chorava. E tia Mariinha, sempre muito prestativa, apenas a consolava. Mas só soube, mesmo, que ele tinha ido embora, quando o Nasch não estacionou em cima da metade da calçada, nem naquele dia nem nos outros.
E os outros foram dias sem meu pai, mas com tia Marina, tia Almira e tia Mariinha falando falando falando falando que, e minha mãe chorando, e eu, embaixo da mesa, sem que ninguém perguntasse por mim.
Pensei, quase com susto, que ficariam morando conosco, agora que meu pai tinha ido embora, mas, depois de falarem muito mal dele, quando acharam que já haviam ajudado e muito, e porque a vida tem que seguir seu curso, elas foram também. Ainda lembro das três de chapéu, de bolsa, de vestido cheio de bolinhas, dobrando a esquina.
Na verdade, eu queria que elas fossem.
Na verdade, minha mãe queria também.
Agora, ficamos só nós dois e o chapéu do meu pai na chapeleira. Minha mãe me deu um abraço forte e demorado e disse: agora somos só nós dois. Meu olho ficou olhando para o chapéu na chapeleira, enquanto ela me abraçava e eu não disse nada.
Mas sabe flor quando começa a murchar e vai perdendo a cor e vai perdendo a umidade e vai perdendo a graça e a vida? Minha mãe começou a murchar e, porque não agüentava mais a luz, só queria saber do escuro. E, porque eu tinha medo de que ela fosse embora também, passei a morar a maior parte do tempo embaixo da mesa. Embaixo da mesa, eu podia ter saudade do meu pai.
Só que, numa hora da janta, numa luz fraca, antes que desligasse de vez a chave geral, ela me olhou com carinho, passando a mão no meu rosto e me disse que eu agora era o homem da casa. Fiquei com tanto medo do que ela me disse! Fiquei perdido nos meus quase nove anos: e se não soubesse ser o homem da casa? Eu não sabia ser o homem da casa! Eu não queria ser o homem da casa! Tudo o que eu queria era o meu pai de volta! Mesmo assim, já no escuro, peguei o chapéu da chapeleira e dormi com ele.
Eu tinha que cuidar da minha mãe – tia Almira, tia Marina e tia Mariinha haviam dito – e eu pensei em como o meu pai cuidava da minha mãe e foi como eu decidi ser um homem.
De manhã cedo, botei o chapéu na cabeça e fui perguntar para o dono do armazém da esquina, o seu Abraão, se eu podia trabalhar com ele. Outros meninos trabalhavam lá, na entrega. Mas. Ele não me levou a sério. Achou, com aquele jeito de gente boa e esparramada que tinha, achou tudo muito engraçado e contou para todo o mundo que chegou depois. Mesmo assim, estacionei a minha bicicleta na metade da calçada e perguntei outras tantas vezes durante o dia, que ele concordou, ainda que não soubesse que serviço se pode dar a um menino franzino a quem ele ofendia rindo, dizendo que não havia saído das fraldas.
Agora, usava o chapéu do meu pai, cuidava da minha mãe, tinha um trabalho depois da aula e estacionava minha bicicleta em cima da metade da calçada. Mas. Minha mãe continuava triste, no escuro. E, embaixo da mesa, eu tinha toda a saudade do meu pai.
Às vezes, minhas tias diziam que ele queria voltar e eu ficava esperando, no escuro. Às vezes, minha mãe dizia que ele estava rondando a casa e eu ficava espiando, no escuro.
A verdade é que ele nunca voltou.
Hoje sei que não havia negócios escusos e que não era um jogador. Fazia o que pudia fazer para ganhar dinheiro, apenas isso, e ganhou. Por que nos deixou? Minha mãe e eu nunca soubemos. Talvez um grande amor, mas passageiro. Prefiro pensar que tenha sido por um grande amor, mas passageiro, por mais contraditório que isso possa parecer. É a sua única chance de remissão. É a nossa única chance de remissão. O que eu sei é que ele morreu só e que herdei coisas que vão mudar a minha vida, entre elas, esta casa.
Encostado à parede da varanda, busco a velha chapeleira, não a encontro e tenho vontade de chorar o que o euoutroeumoleque não chorou. Não vim buscar nada. Não vim me despedir de nada. É que, às vezes, a alma, na sua imensidão mansa, é pequena demais diante do que os olhos querem tocar. Então, eles inventam coisas que a alma está cansada de saber. Então, pego o chapéu do meu pai e o amasso contra o peito. O diabo é que não caibo mais embaixo da mesa, o diabo é que meus olhos doem no escuro, o diabo é que euoutrohomemeumoleque quero aquele meu pai de volta! É que meu pai é esta casa – a minha casa – de luz acesa.




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