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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: JAQUELINE ALMEIDA — CATEGORIA CONTO

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SOBRE A AUTORA


Jaqueline Almeida é preta, travesti, professora de Física e Astronomia de Ensino Médio, escritora e jogadora de futebol.


O CONTO SEMIFINALISTA


Travessia


Desço os degraus dando dois passos em cada um deles. São compridos como rampas, inclinados para baixo e úmidos. Formam um tobogã com quinas. Meus pés fazem um ângulo de noventa graus quando piso. Duas idosas descem na minha frente. A mais velha se apoia na mais nova e no corrimão. Conversam sobre a dificuldade de chegarem até a piscina. Também tenho medo de cair, quero falar para elas. Prefiro atentar para meu equilíbrio. Atrás de mim, uma mulher uniformizada e com um rodo na mão nos ultrapassa. Ela pisa um degrau de cada vez. Passa dando bom-dia.

O ar no final da escada umedece e aquece meu corpo. Não sinto qualquer cheiro além do cloro. Duvido que alguém sinta. A tubulação do sistema de ventilação parece não ter efeito mesmo a um palmo acima da minha cabeça. A faxineira com seu rodo seca o piso antes da catraca. Ao perceber nossa chegada, se move para o meio metro que tem à direita. As senhoras agradecem e liberam o bloqueio com seus cartões. Encontro rápido minha carteira na bolsa. Quando ouvem o sinal de acesso permitido, as duas avançam pelo corredor no sentido do vestiário. A faxineira volta a secar a área entre mim e a catraca, apagando as pegadas trazidas pelas senhoras desde a escada. Parada e com minha credencial na mão, aguardo o fim de sua tarefa. 

– Você vai entrar?

Aceno. Ela se desloca novamente para o lado e coloca o rodo na vertical, encostando seu rosto nele. Me olha de cima a baixo enquanto destravo a passagem com meu cartão. Sorrimos. Me estranhou ou não tinha me visto? Escolho a segunda opção torcendo para não ver a história se repetir. 

Me lembro que, em uma ida à José Paulino, fiquei apertada, com a bexiga cheia como uma represa. Entrei desesperada em uma galeria qualquer, vi as placas indicando o sanitário e firmei o passo. Quanto mais próxima do banheiro, mais apertada e suada ficava. Depois de dois eternos minutos de caminhada, avistei uma segurança entre as portas dos banheiros masculino e feminino. Eu estava sem maquiagem, sem máscara, com uma calça jeans justa, blusinha azul e tênis. Passei quase correndo por ela sem encará-la e fui para uma cabine. Ouvi um ei! atrás de mim. Estava ocupada demais para responder. Quando saí, havia uma fila de mulheres na porta. Quando passei pela segurança, a fila foi liberada.

Um anteparo depois da catraca esconde o vestiário. Uma gangue de idosas à vontade ocupa corredor, bancos, chuveiros, armários. Tiram ou põem maiôs, entram e saem das cabines, se secam. As vozes formam um ruído branco que se mistura com umidade, calor e cloro. Todos os armários parecem estar ocupados. Comentam:

– Para que a pressa? Aqui é o lugar onde a gente pode fazer nossa fofoca, não precisa correr.

Não fico tão à vontade como elas parecem estar. Quero aproveitar meu tempo dentro da piscina, não sem guardar minhas coisas. Talvez eu tenha sido o alvo do comentário. 

Enquanto me troco, sinto olhares sobre mim. Escolho alguns para enfrentar. Uma senhora me reconhece da semana anterior. Ela falava com todo mundo como se conversasse com uma plateia. Hoje, em silêncio, seca seu cabelo com uma toalha. Retribuo seu sorriso.

Outra senhora, sentada guardando seu cabelo na touca, me olha da cabeça aos pés e à cabeça de novo, se volta para outra a seu lado, que está de costas para mim, e cochicha. A de costas desiste de desamarrar os tênis, me olha e devolve um comentário em voz alta, que o barulho não me deixa entender. Acho ótimo.

Um colega me cobrou uma vez:

– Se é para ser mulher, não pode ser dessas bagunçada, tem que andar arrumada, se depilar.

Por muito tempo eu não saía de casa sem ter certeza de que não tinha mais nenhum pelo, pena ou escama no meu corpo, até entender que meus ouvidos não merecem a voz de qualquer pessoa.

Uma mulher ajuda uma criança com maiô da Barbie a colocar uma touca de unicórnio. A textura da pele das duas contrasta com a das companheiras de vestiário. A mulher ajeita as duas alças do maiô da criança, mas não destorce uma das suas. A criança olha para mim enquanto me visto. Tem o mesmo olhar do meu gato quando recebo visita em casa.

Outro dia, fazendo hora do lado de fora da piscina, vi um menino, também pequeno, me encarando com o mesmo olhar de gato. Passava de mãos dadas com uma adulta. Minutos depois, enquanto eu lia, ouvi uma voz infantil:

– Então se ele for mulher quando eu crescer eu ia namorar com ela.

Era o menino. 

Me viro de costas para mãe e filha. Tiro toda a roupa, menos a calcinha, coloco maiô, touca e chinelo, guardo o restante na sacola. Os óculos de natação levo na mão. A umidade quente me faz querer sair daqui. Quero a água da piscina. Encontro um armário sobrando no meio dos outros. Depois de trancá-lo com pressa, chego ao fim do corredor.

Viro à esquerda e reencontro a faxineira antes do lava-pés. 

– Você conhece uma travesti chamada... – não entendi o nome. 

– Oi?

– Você conhece uma travesti chamada Priscila?

Por que nessa cidade imensa todas as travestis têm que se conhecer? Só por que somos travestis?

– Com que ela trabalha?

– Ah, com um monte de coisa. Priscila, de Perus.

Ganho mais uma palavra-chave para minha ferramenta de busca. Conheço uma, mas não é de Perus. A falta de uma profissão específica me faz criar a imagem de uma Priscila qualquer em um trabalho moralmente reprovável.

– Não, de Perus não conheço.

A faxineira sorri, abaixa a cabeça, volta a passar o rodo no piso molhado. Não olha para mim ao explicar:

– Ela foi assassinada faz um ano e quatro meses. É minha filha, saiu até no jornal. 

Minha espinha fica dura, a respiração trava. Fico parada enquanto ela usa o rodo para enxugar o insecável. Ela me encara. Meu rosto deve ter mudado de cor. Ela encosta o rodo na parede e saca o celular.

– Deixa eu mostrar as fotos para ver se você conhece ela.

Seu ombro fica encostado em meu cotovelo enquanto por um minuto rola para o lado as fotos da filha. Procuro a piscina que me espera à frente, depois da escada. Olho para o vestiário atrás de mim, esperando uma deixa para seguir meu caminho. Mas ela não vem. Selfies, fotos com amigas, com crianças, no quarto, no parque. Cada foto em um ambiente diferente, nenhuma parecida com a outra. 

– Ela tinha trinta anos. Dizem que quem fez foram as amigas dela.

Mal consigo balbuciar. Torço para alguém atrapalhar esse encontro ou arrancar de dentro de mim o desconforto de não poder acolher essa mãe do jeito que acho que ela merece. 

– Sinto muito. – É o que consigo dizer. Seguro suas mãos. Vejo seus olhos se encherem de lágrimas. Penso na mãe órfã da filha, que continua com as imagens e histórias curtas.

– Ela era alegre, muito corajosa por ter enfrentado a família que a rejeitava. Fazia de tudo, sempre feliz por ser quem é. 

Era dez anos mais jovem que eu. Me imagino sendo Priscila. Fico triste por o tempo só andar para a frente. Pergunto seu nome.

– Irene.

– Irene, posso te dar um abraço? – E umedeço um pouco mais o piso, atrapalhando Irene. Ela se deixa abraçar. Respiro fundo.

– Sinto demais por toda essa história e por você ter perdido uma filha tão linda e jovem de um modo tão triste.

Acho que ela conversaria mais, mas fujo como de um tarô prestes a me revelar um destino que prefiro nunca saber. 

Me despeço com um até logo. Vou para o outro tobogã com quinas, este muito mais escorregadio que o da entrada. Paro na frente da piscina. A umidade e o cloro que respiro me tiram por um segundo do mundo de Irene e Priscila. Milhões de litros de água para nossa recreação e esporte. Imagino quanto poderia ser de lágrimas da Irene. Um peixe salta para fora, para no piso em minha frente. É uma carpa, pálida com manchas amarelas. Tem uns trinta centímetros. Se debate no chão molhado como um coração em arritmia, com as brânquias abrindo e fechando freneticamente. Enquanto se contorce, se afasta da beira da piscina. Ao meu lado, saindo pela escada do vestiário, um grupo de senhoras caminha e conversa sobre o professor de hidroginástica. Sigo com os olhos o grupo enquanto ele desvia do peixe e segue em frente, entrando na piscina. Procuro alguém para me ajudar com a carpa, mas não vejo sequer um salva-vidas fora d’água. Aqui, apenas a carpa e eu. Ela continua a se debater, movendo-se na direção da escada. As idosas que cochicharam no vestiário saem da escada. Também desviam do peixe. Comentam alguma coisa bem baixinho enquanto o veem se contorcer, desviam e vão para dentro da piscina. Penso em me aproximar da carpa para colocá-la de novo na água. A criança com touca de unicórnio chega antes de mim, se abaixa e a segura no colo. Dá meia volta, desce a escada, de dois em dois passos. A carpa para de se contorcer. As duas saem de meu campo de visão.

Coloco os óculos de mergulho, caio na água e atravesso a piscina.


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