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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: JEFERSON DE SOUSA — CATEGORIA CONTO

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SOBRE O AUTOR


Jeferson de Sousa é paulistano, editor de livros, roteirista e jornalista com passagem por alguns dos principais veículos impressos do país. É autor do livro de contos Inventário dos Maus Sentimentos (Editora Nauta).



O CONTO SEMIFINALISTA


CORRUPIÃO, CANÁRIO, CURIÓ


Donizete desligou o telefone e saiu sem olhar para dona Laura. Sentou-se no banco diante da venda e recostou-se na parede. O sol das onze batia forte em seus olhos. Baixou a cabeça e ficou mirando o alvoroço das formigas pretas subindo e descendo o cimentado. Sinal de chuva para mais tarde. Seu Armínio parou a caminhonete velha em frente à porta e mirou o garoto: os cabelos sebentos refletindo a luz, a camisa xadrez de manga curta rasgada na altura do sovaco direito, o short encardido. Donizete balançava a perna esquerda vagarosamente, arrastando o chinelo e fazendo-o chiar sobre o cimentado. No joelho, uma grande casca de ferida inflamada. 

“Ê, Donizete! Me ajuda aqui com essas caixas.” 

Seu Armínio saiu da caminhonete e foi até a caçamba. Agarrou um caixote de madeira cheio de tomates e carregou-o para dentro da venda. Donizete repetiu a ação. 

Dentro da venda, dona Laura ajeitava algumas garrafas atrás do balcão. Trocou rápido olhar com seu Armínio. Donizete vinha logo atrás, a caixa de tomates erguida na altura do abdômen. Era um garoto forte para os seus 13 anos. 

“Fazendo o que na cidade?” 

Seu Armínio lançou a pergunta enquanto pegava uns tomates que haviam rolado pela prateleira. 

Donizete viera ligar para o tio que morava em São Paulo. O tio não estava. O garoto pousou a caixa na prateleira e evitou olhar para o dono da venda. Não viu quando seu Armínio agradeceu com um movimento de cabeça. 

Um barulho de cascos em paralelepípedos veio trotando pela pequena rua. Juvêncio e a velha égua seguidos por Filó em sua displicência de vira-lata. O homem viu Donizete na porta do armazém e estacou diante do estabelecimento. Filó veio cheirar as pernas do garoto. 

“Acharam teu pai.” 

Donizete ficou em silêncio e baixou os olhos até filó. Seu Armínio saiu pela porta, com dona Laura logo atrás. 

“Onde?”, adiantou-se o dono do armazém. 

“Lá para os lados da ponte velha.” 

Depois houve um breve silêncio, o temor da pergunta no ar. Juvêncio, desprovido de tato, desanuviou a dúvida: 

“Parece que foi afogamento. Quem encontrou foi o Zé Manjuba. O doutor Aurélio tá lá.” 

O doutor Aurélio era a autoridade do local. Ou o mais perto de uma autoridade que a vila possuía. Juvêncio tocou na aba do chapéu com os dedos, bateu com a vareta na anca magra da eguinha e seguiu seu trote em direção ao Pinhal. Filó, que cheirava um saco de estopa próximo ao banco, acelerou o passo atrás do dono. Seu Armínio colocou a mão no ombro de Donizete. 

“Te levo lá.” 

A caminhonete sacolejava na estrada de terra batida, cercada de eucaliptos. Donizete não tirava os olhos da janela. Seu Armínio tinha perguntas, mas achou que naquele momento deveria respeitar o silêncio do rapaz. Logo depois da curva, avistaram o carro do doutor Aurélio parado em um descampado. Lá embaixo, na beira da água, uma pequena aglomeração. Doutor Aurélio viu os dois sobre a elevação e caminhou rapidamente em direção a eles. 

“Donizete, você fica aqui.”, disse o doutor. 

Ele e seu Armínio voltaram para o pequeno grupo que cercava o corpo. 

“Foi um tiro no peito e outro na cara. Não queria que o menino visse o pai nesse estado.” 

Donizete apoiou as costas na caminhonete e ficou observando o movimento dos homens. O doutor Aurélio voltou cambaleando em seu passo obeso. Estacou diante do carro e resfolegou por alguns segundos enquanto secava a testa com um lenço vermelho. Fez um gesto com a mão chamando o garoto. 

“Vamos na tua casa.” 

Donizete morava do outro lado da represa, a uns cinco quilômetros de onde o pai fora encontrado. A casa, no pé de uma das serras, era de um branco encardido, com janelas e portas azuis mal pintadas, um galinheiro à direita, um curral de cabras à esquerda, um monturo de lenha para o fogão diante da porta principal. A mãe de Donizete esperava na soleira, um olhar assustado, mais desconfiado do que o de costume. Lídia respondeu com voz quase inaudível ao cumprimento do doutor Aurélio. Ficou observando o filho mais velho sair do automóvel e caminhar até o curral das cabras. Doutor Aurélio se aproximou. 

”Acharam o Geraldo perto da ponte velha...” 

Lídia não disse nada. A expressão pouco mudou. O homem ficou desconcertado. Esperava reação mais dramática. Alguma lágrima, uma negativa, um grito talvez. Mesmo sendo Lídia uma mulher contida, aquela que ia à vila e pouco falava, as crianças penduradas em sua saia. Guardava traços da antiga beleza de quando viera da cidade para aquele lugar perdido. Uma beleza gasta pelo tempo e pelo castigo do convívio com Geraldo, mas que ainda fazia alguns homens fixarem o olhar em sua passagem. 

Em seu silêncio, Lídia parecia dizer que já esperava pela fatalidade. Ficaram os dois parados ali. Tininha apareceu atrás da mãe, o vestido encardido, as pernas marcadas pelas picadas dos insetos. Olhou tímida para o aceno do homem parado no terreiro. Doutor Aurélio enfiou a mão no bolso do paletó, tirou-a em seguida, procurou o lenço no bolso da calça. Não se sentia à vontade para dar continuidade à notícia. 

“Me desculpe, mas preciso lhe falar sobre umas coisas. Podemos entrar um minuto?” 

Lídia mandou Tininha ir ter com o irmão. Fosse outros tempos, não permitiria que doutor Aurélio entrasse. Deus a livrasse de Geraldo ficar sabendo. Agora não fazia mais sentido. 

A casa cheirava à lenha queimada. Na sala, um velho sofá dividia o parco espaço com uma mesa e um oratório. Podia-se ver pela porta do quarto o beliche em que os meninos dormiam. Doutor Aurélio pediu à Lídia que se sentasse e puxou uma cadeira de um canto. 

Um silêncio. 

“O Geraldo foi encontrado dentro da represa, preso nuns matos embaixo da ponte. Parece que a chuva de anteontem arrastou ele pra lá, porque a gente já tinha procurado naquele lugar. “ 

O doutor Aurélio parou por um instante e olhou a imagem de Nossa Senhora da Natividade num canto. 

“Lídia...” 

Ele tirou o lenço do bolso e enxugou as mãos. 

“O Geraldo tomou dois tiros...” 

Lídia olhou pela janela em direção ao bambuzal. Fez menção de levantar-se, mas continuou sentada, olhando para o piso de cimento. Doutor Aurélio continuou: 

“Liguei pra delegacia e eles mandaram um carro pra pegar o corpo. Mas a estrada está uma mer... A estrada tá muito ruim. Pode ser que tenha atolado.” 

Outro silêncio. O doutor ajeitou a gola da camisa. 

“O Geraldo chegou a falar alguma coisa por esses dias?” 

Que tipo de coisa? Quis saber Lídia. Algo que desse uma pista sobre o ocorrido, explicou o doutor. Lídia negou com a cabeça. Doutor Aurélio não insistiu na pergunta. Geraldo tinha brigado com metade da vila, jurado dois ou três sitiantes de morte. Diferentemente do comportamento explosivo de Geraldo, ali era terra de gente que polia a vingança no silêncio. Doutor Aurélio se levantou. Mandaria um carro para buscá-la em breve, informou. Era necessário o reconhecimento do corpo por alguém da família, umas burocracias que precisavam ser desvencilhadas. Pediu tranquilidade para a viúva e garantiu que cuidaria do velório e do enterro. Antes de entrar no carro, viu Valdo saindo de traz das bananeiras. Carregava um balde com dificuldade e concentração. Parecia mais mirrado que os seus dez anos. “Não fosse aquele olho e teria os olhos da mãe”, pensou o doutor antes de partir. 

∞∞∞

Naquele sábado Geraldo acordou às cinco, como fazia todos os dias. A cabeça parecia que ia explodir. Uma daquelas enxaquecas que começara aos 18 anos. Nunca soube por que ou como. Lídia se levantou logo depois e tratou de chamar os meninos. Donizete já estava acordado. Mal dormira. Tomaram o parco café com mingau de milho. 

Lídia preparou a caixa com as pamonhas, como de costume. Geraldo avisou que depois iria pegar o ônibus até a cidade; ia comprar uma espingarda nova: havia o rumor de onça rondando as matas da região e ele não queria perder as cabras para o bicho. Lídia nada disse, mas angustiou-se por dentro – ele iria gastar naquela arma o pouco economizado nos últimos meses. 

Antes de sair, Geraldo foi verificar as gaiolas. O canário belga começou a cantar assim que a porta do galpão foi aberta. O corrupião continuou taciturno em seu poleiro. Um ensimesmamento de dias. Podia ser doença. Geraldo abriu a gaiola cuidadosamente e pegou o pássaro. Examinou-o com olhar cirúrgico. “Esse não vai durar muito”, pensou. Chamou Donizete e Valdo. 

“Vocês vão lá na mata hoje com a arapuca. É pra pegar passarinho de canto, entendeu?”. 

Os meninos acenaram com a cabeça sem encará-lo. 

Geraldo saiu com as pamonhas rumo à estrada. Tininha começou a choramingar no quarto. Lídia foi ver a menina. Trocou-lhe a frauda e, não soube por qual razão, algo a manteve sentada na cama, imóvel por um longo tempo. Algo que a fez ir até o guarda-roupa e pegar o velho álbum. Ali estavam suas fotos de menina, outras poucas fotografias do seu casamento. Uma particularmente lhe doeu: sentada na grama do jardim na cidade antiga, ela, vestido azul curto, as coxas à mostra, um sorriso nos lábios, olhava para Geraldo, que, deitado, repousava a cabeça em seu colo. Geraldo mirava um ponto no alto e parecia um astro de música: o cabelo cobrindo as orelhas, a camisa estampada com gola pontuda, a calça jeans boca-de-sino. Naquele tempo ele era doce e até cantava canções do Roberto para ela. Lídia sentiu umas lágrimas abrindo caminho. Ficou preocupada que algum dos meninos entrasse no quarto naquele momento e secou-as rapidamente com as costas das mãos. Colocou o álbum de volta no alto do guarda-roupa. 

Quando abriu a janela de madeira do quarto, viu as folhas caídas do bambuzal cirandarem perto da cerca. A lufada prenunciava mudança de tempo. Donizete tinha dado comida às cabras, Valdo alimentara os passarinhos, Tininha brincava com sua boneca encardida. Passaram a outra parte da manhã debulhando milho. Lídia preparou mais um caldeirão de pamonhas. Depois do almoço os meninos saíram para pegar os passarinhos. 

No final da tarde o tempo virou. O frio noturno de maio tomou conta das dobras das serras. Já havia escurecido quando Donizete e Valdo chegaram. Valdo segurava a gaiola com um curió. 

Lídia imaginou que Geraldo ficaria satisfeito. 

A noite avançou e nada de Geraldo aparecer. Era raro que chegasse de madrugada; fazia anos que não acontecia. E Lídia não gostava de lembrar da última vez que isso ocorrera. 

No dia seguinte mandou Donizete à vila. Segundo Tibério, o motorista do ônibus que ia até a cidade, Geraldo desembarcara lá, mas não voltara na jardineira. 

Mais um dia se passou e nada de Geraldo aparecer. Lídia achou que era hora de ligar para o irmão. Mesmo de longe, ele tinha mais cabeça para essas coisas. 

No avançado da noite o vento começou a rastelar as palhas de milho e as folhas largadas pelo outono. De sua cama Lídia ouviu o barulho da cancela. Olhou pela fresta da janela e, perto do bambuzal, viu o que parecia ser o vulto de Geraldo, iluminado pela luz da lua crescente. Abriu a porta e chamou pelo marido, em dúvida. Uma, duas vezes. Fazia muito frio, mas ela ficou por um longo tempo ali, parada na soleira, ouvindo o ranger dos bambus que dançavam ao vento na escuridão. 

∞∞∞

E com suas pernas que eram mais curtas, ele tentava acompanhar o passo do irmão; e ele tropeçou no galho escondido entre as samambaias e quase deixou a gaiola com o curió despencar de novo, isso porque caminhavam em um passo rápido pela mata, pois escurecia e a estrada ainda estava longe, e da estrada para casa ainda tinha muito caminho; os braços já começavam a arrepiar de frio e lá para depois da Serra Grande as andorinhas faziam o alvoroço do fim do dia; e eles passaram por uma parte da represa na qual dava para ver a ponta da cruz da igreja soterrada pelas águas; a mãe sempre falava da velha vila, de como era mais bonita do que a atual; e ele quase pediu para o irmão desacelerar o passo, mas não era o caso; os braços doíam devido ao esforço que eles tiveram de fazer, todas as pedras que tiveram de coletar, porque as pedras precisavam ser grandes, disse o irmão, e depois tiveram de achar o cipó, bem mais pra dentro da mata; e ele queria libertar o curió, mas o irmão disse que não, precisavam levar o passarinho, a mãe iria perguntar e não dava pra mentir dizendo que não tinham pego nada, e, afinal, era bom ter o passarinho, porque o corrupião ia morrer logo, e isso lhe deu uma tristeza imensa, pois ele gostava muito do corrupião com seu olho vazado, assim como o dele, e porque os dois, os olhos, o dele e o do corrupião, eram assim por causa da mesma pessoa; e a mãe sempre dizia que fora sem querer, e ele acreditava na mãe, mas, um tempo atrás, ele nem lembrava direito quando, o irmão havia dito que fora ruindade do pai, que ficava doido de vez em quando; e o irmão tinha uma porção de marcas nas costas que, disse, eram coisa do pai quando ficava louco; e ele gostava muito do irmão, mas se a mãe havia dito... então não sabia em quem acreditar; e além dos braços também lhe doía a nuca por causa do soco; isso foi porque deixara a gaiola cair, é verdade, mas ele havia ficado nervoso quando o pai apareceu caminhando na direção deles pela estrada àquela hora, a espingarda nova no ombro, o tabuleiro de madeira debaixo do braço, uma cotia morta em uma das mãos; e o pai deu a caça para o irmão, pegou a gaiola, olhou pro curió e fez cara de quem não havia gostado; e devolveu a gaiola pra ele e começaram a voltar pra casa pelo caminhozinho que beirava a represa; e uma cobra entrou na água e sumiu deixando uns anéis na superfície; e daí ele se distraiu com aquilo e tropeçou numa pedra, a gaiola escapou de sua mão e rolou pelo mato, por pouco não foi parar dentro da represa; e aí ele sentiu aquele baque na nuca, uma dor forte, e foi ao chão; e quando olhou, umas lágrimas de dor embaçando os olhos, viu a sombra do pai sobre si, presta atenção, seu merda!, gritou o pai, tão furioso que havia largado tabuleiro e espingarda na disparada que dera até ele; e o pai bufava, a cara vermelha como a carne esfolada de um cabrito; e aí ele ouviu a voz do irmão chamando, pai... e o irmão apontava a espingarda; o pai que, ainda bufando, avançou em direção ao irmão; e daí aquele barulho de tiro, o pai dando um passo pra trás e tropeçando nele, ainda no chão, e caindo de costas; e o irmão avançou olhando pro pai, que segurava o peito sem poder falar, a boca mexendo e mexendo procurando o ar que teimava em não vir; e o irmão apontou a espingarda para o meio dos olhos do pai e puxou o gatilho; e ele virou a cara e tapou os ouvidos até que o irmão o sacudiu pelos ombros e mandou pegar a gaiola que ainda estava virada ali no meio do mato, o curió se debatendo por causa do barulho dos tiros; e o irmão ficou olhando pro pai caído, o sangue encharcando a terra; e disse pra ele, a gente tem que pegar umas pedras grandes no mato; e ficaram ali um tempão procurando umas pedras grandes; parando de vez em quando pra ouvir os barulhos, se não vinha alguém, mas eles sabiam que ali não vinha ninguém, nunca; e botaram as pedras nos bolsos do pai; e o irmão disse me ajuda aqui que a gente vai jogar o corpo na água, e puxaram o corpo, mas ele não tinha muita força, então a maior parte do esforço foi do irmão mesmo; e eles foram procurar cipó; o irmão amarrou a espingarda numa pedra comprida e engraçada e jogaram a espingarda na represa; e o irmão disse que não era pra falar sobre aquilo, nunca, de jeito nenhum, com ninguém, nunca mesmo; e o irmão falou, anda rápido que tá escurecendo, e saiu andando naquele passo ligeiro de quando estava afobado; e com suas pernas, que eram mais curtas, ele tentava acompanhar o passo do irmão; e ele tropeçou no galho escondido entre as samambaias, e quase deixou a gaiola com o curió despencar de novo. 


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