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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: JOAREZ TORRES DANIEL — CATEGORIA CONTO

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SOBRE O AUTOR


Natural de Pequeri e residente em Conselheiro Lafaiete, ambas em Minas Gerais. Membro da ACLCL – Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete. COMO ESCRITOR, LANÇOU: 

Em 2019, o Romance: O CAPITÃO DA SESMARIA E O PORCO-DIABO, livro sendo preparado para  a terceira tiragem e pelo qual recebeu Moção de Aplausos conferida pela Câmara Municipal de  sua Terra Natal. 

Em 2019, o Conto: O PISTOLEIRO, O CACHORRO E CORUJA (ALMA DE PISTOLEIRO) 

- Quarto lugar no Concurso Literário Internacional Prêmio Cidade de Conselheiro Lafaiete – 2019, promovido pela ACLCL. 

- Semifinalista no Primeiro Prêmio Internacional Pena de Ouro - 2020 - promovido pela Casa Brasileira de Livros. 

- Semifinalista no 5º Prêmio Internacional Pena de Ouro - 2024 - promovido pela Casa Brasileira  de Livros. 

Em 2020, o Conto: O VINGADOR

- Quinto lugar no Concurso Literário Internacional Prêmio Cidade de Conselheiro Lafaiete – 2020, promovido pela ACLCL. 

- Finalista no Concurso: Contos da Quarentena- Livraria Lello, Porto, Portugal. 

- Semifinalista no Concurso: Primeiro Prêmio Prata da Casa - 2024 - promovido pela Casa  Brasileira de Livros. 

- Semifinalista no 5º Prêmio Internacional Pena de Ouro - 2024 - promovido pela Casa Brasileira  de Livros. 

Em 2024, o Conto: MÁGOA TORTA.



OS CONTOS SEMIFINALISTAS


ALMA DE PISTOLEIRO


Era uma tapera, nem isto; uma choupana, ou quase. Coisinha miudinha de pau-a-pique, equilibrada por quatro esteios bem fincados ao pé de uma capoeira. Ao fundo, uma mata grossa, sombria, quase sempre regada por muita chuva que ali caía, ou banhada por um pratear de lua, tão belo, como em nenhum outro lugar se dava.

O telhado de sapé, bem composto, endireitado, tendo só um defeito: – uma fissura –, bem no topo, pequeninha, feito um rasgo, por onde o morador podia contemplar um pedaço de lua e, por vezes, até um punhadinho de estrelas. Já fazia anos que o sujeito que ali vivia seguia aquela sua mesma rotina: – quando o sol começava a perder as suas forças, ele se sentava ali, no seu toco de aroeira, no interno do rancho, e se punha a pensar, e a pensar... A pensar no seu passado de crueza, de tragédias, e naquelas páginas negras do seu existir.

Vizinhos? Só a légua e meia de lonjura – um armazém de boca de estrada, no entremeio do caminho que desembocava em Queluz de Minas. A vendinha era sortida de querosene, sal e aguardente, mas onde se podia adquirir também o pó de café, o açúcar e um bom tolete de fumo.

Quando ali chegou, há mais de dez anos atrás, Deodoro Badaró nem se ocupou em consertar a fresta do seu telhado; – logo ficou cativo dela e da visão que aquela rachadura lhe oferecia nas noites enluaradas. Toda noite, naquela sua sem igual solidão, tendo apenas o cachorro Veludo enroscado aos seus pés, o morador sentava-se naquele seu trono, com a pinga, o café e o cigarro, e se entregava a perdidos pensamentos, apreciando as estrelas e o luar. Badaró, então, soltava os seus pensamentos e deixava que eles viajassem, longe, longe, lembrando-se de Jandira, sua finada mulher, dos sonhos que tiveram juntos, na chacrinha de uma quadra de terras e na casinha avarandada em que moravam. – Nas suas fantasias de marido e mulher, sempre cobiçavam poder comprar aquele pedacinho de chão, e mais um punhadinho de alqueires em derredor, onde pudessem ordenhar uma meia dúzia de vaquinhas, possuir umas criações de terreiro, e até enriquecer o local com um roçado de milho e de feijão.

Emboramente estas noites de lua cheia lhe oferecessem um sossego bom de paz no coração, Deodoro tinha predileção pelas noites de chuva, o que era o caso desta de hoje, pois lá fora chovia, e chovia muito. “O garoar da chuva lhe serenava mais o coração” – meditava o morador –, “e as noites enluaradas traziam consigo os desbenefícios do voo daquele agourento corujão da noite, que não faltava nunca, não pulava uma só noite de lua grossa...”.

Desde a boquinha da noite, logo que chegou daquela sua derradeira tocaia de morte, que Deodoro se esparramou no seu assento de aroeira, de tantos anos, com o aguaceiro chicoteando fortemente o seu telhado de sapé. O morador, então, estendeu o olhar por dentro da chuva, e ficou espiando, ao longe, longe, e relembrançando o patrasmente da sua vida e de como ali chegara:  “Já ia longe o dia em que ele ali chegou” – avaliava Deodoro –, “numa tardezinha, nos idos de mil novecentos e alguma coisa. Vinha de viagem comprida – mais de mês por trilhas e veredas de mato –, fugindo do seu passado, dos seus amargores de peito e também de mais de uma dúzia de soldados. Desde os vinte e poucos anos que ele arranjava a vida com sua ferramenta  uma garrucha de dois canos, calibre 44”.

Desde o dia em que ali chegou, já há tantos anos, que Deodoro aposentou o seu “ganha-pão” e nunca mais exerceu a profissão. O “instrumental” trazia 32 riscos na coronha, que era assim que o pistoleiro de aluguel anotava os seus “serviços”. Quem olhasse para Deodoro, nem de longe podia acreditar que um alguém com tantas insignificâncias pudesse ser um renomado matador: sujeitinho raquítico, de riso desmalicioso, encardido e do cabelo esticado, repartido ao meio.

Acariciando as fissuras dos riscados de sua pistola, o morador rememorava e remoía aquele seu passado de matança: – “Os mortos? Nem bem se lembrava deles ou sentia pesares no peito  foramente os dois primeiros , aqueles dois riscadozinhos de estreia, que ele os fizera com tanto gosto, com tão prolongado suspiro e que principiaram aquela sua história de pistoleiro...”.

Quando isto aconteceu, Badaró era moço venturoso, seguro de si, morando com o seu pai e sua santa mãezinha, numa boa casa avarandada, na morada da Praia Quente, numa beira do mar salgado, lá numa ponta da Bahia. Com a altura de dezoito anos, casou-se com Jandira, morena de olhos esverdeados, de pele lustrosa, aveludada. Eram aqueles olhos de Jandira, faiscantes de verdes, o que mais aumentava a sua nostalgia e lhe cravava fundas unhas no peito. Se lembrava muito bem da primeira vez que os tinha visto, na porta da igrejinha do arraial, numa festa de padre. A dona deles, Jandira, ruborizada, cortinou-os com as pestanas, quando ele perguntou: “De quem são estes seus olhos?” Relembrava..., ela levantou aquele olhar, feito de verdes capins, e, vexada, exclamou: “São seus, enquanto os quiser!”

Mas, nem era decorrido meio ano do matrimônio e aconteceu aquele horrível, aconteceu! Quem poderia ter sofreado aquilo, meu Deus!!! Isso era fato já antigo, coisa acontecida patrasmente de 20 anos, mas para Deodoro parecia ferida-verde, e ele vivia com aquela mágoa no peito, como se a amargura nunca tivesse lhe saído das entranhas. Nestas recordativas, Deodoro desfigurava de semblante, agitava-se no assento, mas prosseguia com as suas ruminações: – “Chegaram aqueles dois cavaleiros, lunáticos da cabeça?, endemoniados? – Um assalto? NÃO! Nada tinham para ser roubado. Vingança? NÃO! Nunca tiveram inimigos. Maldade?, a mais pura malvadez? SIM!!! Só podia ter sido...”

Chegaram abrutalhados, num agredimento de boi bravo, e nem tinham ainda apeado quando pousaram os olhos em Jandira, e foi aí a perdição. O pai e a mãe, suplicando insistido, pediram por clemência: – A menina estava prenhe, esperava criancinha, com a barriga na casa dos três meses. O pai de Deodoro sacou do facão, na inocência de evitar o mal-maior, mas nem acabou de desembainhar a lâmina inteira da ferramenta: caiu com dois tirambaços, bem no central dos peitos. A mãe elevou as mãos ao alto, mas tombou também, ali, esburacada, pelas costas. – Caiu devagarinho, deslizando pela parede de tabatinga. Quando Deodoro ouviu os disparos e deixou a roça de inhame, que cultivava a umas cinquenta braças da casa, num encharcado de brejal, não pôde acreditar no que os seus olhos presenciaram: – o pai e a mãe, defuntos, desensanguentados no chão de terra batida. E, Jandira, agonizando, esvaindo em sangue, já perto no seu último suspiro. Não teve boca de dizer palavra e nem mão de acenar. Seus olhos, mais verdes, de um verde que Deodoro nunca os tinha visto, foram se desbotando, apagando, deixando no marido uma tristeza tão grande, grande imensa, como nunca ele tinha sentido antes.

E Deodoro continuava ruminando, padecendo com as suas amarguras, e sentindo uma outra sua pontada no peito, que vinha sempre, de quando em vez, e trazendo consigo aquele sufoco de goela, feito engasgo – sufocamento. Já fazia para mais de ano que Deodoro vinha sentindo aquele incômodo de peito, feito fisgada, e aquele abafamento na garganta, que ultimamente vinha vindo com mais contumácia, amiudando. Seriam os dolorimentos da alma, ou mazela do seu coração que ensaiava para sofrer colapso...? Bem pensado e medido, o morador até que sonhava com o fim dos seus dias, uma vez que desde a morte de sua mulher, ele vinha achando este mundo um lugar aborrecido de se viver. Todas as noites, ali solitário, apreciando o luar e as estrelas pelo buraco do seu telhado de sapé, ou no debaixo de uma chuva, sempre abundosa, que Deodoro sonhava, e como sonhava em alçar o seu voo, como queria reencontrar os seus, e encontrar Jandira...

E Deodoro prosseguia com as suas relembranças: – “Naquele dia da carnificina, já tão distante, nem se ocupou em enterrar os seus mortos. Montou de um pulo, conferiu a garrucha, passou as vistas na munição e partiu no rastro dos malfeitores. No atropelado de sua cabeça, a mortandade dentro de casa e a última cena: – aqueles olhos verdes se fechando para todo o sempre…”

Mas foi num repente, de supetão, que esbarrou com os dois, que, encachaçados, riam e bebiam aguardente à sombra de uma gameleira, já a mais de légua da chacina.  De pistola na mão, desfigurado de cara e raivoso de olhar pela amargura que aqueles dois atiraram por sobre a sua família, Deodoro nem indagou os porquês da matança: – despejou toda a munição nos facínoras, que, de olhos esbugalhados, não atinavam de onde chegara aquelas mãos justicentas. De volta à casa, sepultou os seus mortos e chorou a sua dor, chorou...

Depois deste ocorrido, Deodoro perdeu o gosto pela vida, e, moço ainda, passou a ansiar por sua morte. Emboramente fosse ainda de tenra idade, vigoroso, não se viu mais capaz de encarar a vida com essa amargura de peito, com a alma tão entristecida. Depois deste acontecido, também, Badaró apanhou fama, de não ter mais sossego: – todo Coronel que desejava se desfazer de um desafeto, ou qualquer fazendeiro que tivesse algum inimigo muito feliz, procurava pelas serventias de Deodoro. Deodoro, de princípio, até negaceou, desenxabido em abraçar a profissão, mas com o continuado das investidas e a soma das recompensas, acabou tomando gosto pela coisa. Assim, antes de firmar contrato, e para um descarrego de consciência, Deodoro sempre pedia uma maldade do jurado e dava o motivo: – “É para que eu já tome raiva dele desde agorinha mesmo, seu moço!” E, assim, depois de trinta serviços, o debaixo de seu colchão já se encontrava entulhado de notas.

Quando vinha da sua viagem de quase fuga e encontrou aquela tapera abandonada, nem se ocupou em povoar o seu quintalzinho com meia dúzia de galinhas, ou um roçadinho de milho ou de mandioca. Não carecia, pois a comida ali até sobrava: – algum ovo ou carne de bicho, fartura de mel, e alguma raiz ou fruta.  Chegou com certo montante de dinheiro na sacola, fruto de seus trinta serviços, o que lhe dava o benefício de viver sem esforço de braço, uma vez que levava vida regrada, sendo suas únicas regalias, o café, o fumo e a aguardente, comprados mês sim, mês não, na venda de boca de estrada, e, assim, todas as noites, saboreava boas tragadas, sentado no seu toco de aroeira, desejando a morte e contemplando o luar, na companhia de seu cachorro Veludo. O cachorro..., comichando a cabeça do cão com a mão, o morador se recordava do dia que encontrou o seu companheiro...

Era uma noite fria, escura e sem lua...”

Deodoro havia saído por volta das oito, para vistoriar uma ceva de paca que ele tinha armado, estudadamente, numa encruzada, ao pé de um pau-de-óleo. Conferia ainda a farturosa mesa da caça, quando um escarcéu dos diabos penetrou em seus ouvidos. Resguardou o corpo numa moita de gravatá, alisou o cabo do facão e conferiu o metal da garrucha. Nem demorou o tempo de um grito de espera e logo apontou, em disparada, na trilha da paca, uma cachorra americana, malhada de amarelo, e com um seu filhote no seu calcanhar. Depois deste avistamento, Deodoro não pôde entender mais nada: – o ronco de um tirambaço saiu do detrás de um cupinzeiro e o seu risco de labaredas cortou o negro da noite, vindo certeiro a estraçalhar a cabeça da cachorra americana, que nem soltou o grito das agonias, morrendo ali, desensanguentada. O cachorrinho filhote, num choro triste, mais que triste, agarrou-se ao corpo da mãe e, sofrido, gemeu a sua dor, tristonhamente... Dois espaços de minutos adiante, saiu do detrás do cupim, um homem alto, de preto, com a espingarda ainda soltando fumaça pela boca, e quando percebeu o engano, marejou os olhos e lamuriou, sentidamente…, – tinha atirado em sua cachorra, no enganamento de que era a caça. Deodoro ainda alcançava de ver as duas lágrimas que lhe escorriam do rosto, quando montou e chamou pelo filhote, que não se desagarrava da mãe. Chamou, voltou a chamar, mas, o cachorrinho, que havia visto a tragédia e não percebera o engano, não seguiu mais o cavaleiro. Permaneceu ali, chorominguento, tentando com as patas da frente reanimar a cachorra. Deodoro, então, saiu do seu escondido, falou carícias com o filhote, pegou a malhada nos braços, sepultou – tudo sob os olhares do cãozinho. Em seguimento, ajeitou o chapéu, conferiu as armas e pegou o carreiro de sua tapera, seguido pelo cachorrinho. A partir deste dia, o cão passou a ser o seu único e maior companheiro. Como crescia, avolumando um pelo aveludado, Deodoro lhe dera o nome de Veludo. Caçavam juntos, comiam juntos, e todas as noites, embalados pelo clarão da lua, ou ninados pelo tamborilar da chuva, sentavam à porta da tapera, como agora, às vezes até alta madrugada, ou no muito encurtar, até o Corujão da Noite passar. Já ia para mais de anos que aquela coruja da noite levantava voo, aí pelas nove, e sempre em noites de lua cheia. Alçava o seu voo de uma gruta, nos afundados da mata escura, e passava sempre por sobre o casebre de Deodoro. Então Veludo entesourava as orelhas, corria para a porta e ladrava, e ladrava…, e o morador ficava a matutar consigo se o cachorro latia para a lua ou para o corujão. Sempre, com a cachaça, ou um caneco de café fumegante nas mãos, Deodoro chupava a fumarada do pito e ficava a se indagar: – “Será que Veludo assunta é a lua, enfeitiçado pelo seu clarão, ou ralha é com a coruja, medroso do seu maldar?” Já ia para mais de tempos aquela mesmice, ano sobre ano, por volta das nove o corujão elevava o seu voo barulhoso, e Veludo saía, olhava para o alto e latia, insistido, e o homem se punha a imaginar: – “Para o corujão ou para a lua?” Em mais das vezes, rememorando da morte de sua mãe Malhada, Deodoro também cogitava se Veludo, talqualmente ele, se lembrava do seu drama e sentia lá os seus amargores de peito...

Mas foi aí que chegou aquele dia, três anteontem, o que acabou com todo esse sossego de Deodoro: – o cavaleiro barbado apeou rente a sua choupana, bem no rumo da porta. Era a primeira visita depois de anos. Pediu tabaco, pitou, rodeou a conversa, para só no finalmente entrar no centro da questão: – o fazendeiro, senhor daquelas terras, era sabedor de que Deodoro residia por aquelas bandas e sabia do seu passado nebuloso de pistoleiro. Vinha pedir um favorzinho, coisa de pouca monta: – Necessitava que Badaró abreviasse os dias de um inimigo seu; inimigo antigo, embirrado, que vinha desacatando a sua autoridade de Coronel. Bem pensado e medido – continuava discursando o emissário – nem era muito um favor, visto que Deodoro habitava em terras do Coronel sem nenhum embaraço e nem cobrança de paga. Ainda por cima, e para que se guardasse todo segredo, o patrão, pessoa de alma muita caritativa, não fazia caso de um desembolso de quatrocentos contos, o que daria para Deodoro gozar uma beleza de vidona por anos, anos..., ou até além dessa contagem.

E o matador de aluguel pensou e pensou: já tinha abandonado o ofício há tantos anos! Acendeu cigarro novo e talagou a pinga no gargalo da garrafa: – “Quatrocentos contos e mais a garantia do apadrinhamento do Coronel.” Ponderou mais e pediu a pinta e o endereço do jurado de morte. O mensageiro do fazendeiro, então, historiou que o fulano a ser morto passava todo santo dia, aí pelas cinco, nas redondezas de um pau-de-óleo, no risco de uma trilha de paca. E Deodoro continuava a matutar: – “Quatrocentos contos de réis..., era montante muito, que daria para realizar aquele seu sonho antigo, dele e de Jandira: – adquirir uns alqueirinhos de pastos, e povoar o lugar com uma boiadinha de corte e uma tenda de vacas de leite.  Quatrocentos contos..., era dinheiros com poder de comprar um município de terras e uma imensidão de gado, e ainda sobejava cobre para uma vida regalada”. Pensou mais, pediu para pensar até à noitinha e pensou… Quando o cavaleiro montou, já noite alta, levou o contrato firmado: Deodoro aceitara o serviço.

E o morador, sentado no seu toco de aroeira, provou do café, e seguia a analisar, a refletir... – “Que tarde ingrata foi esta da tocaia, que tarde pasmosa!!!  Saíra com o sol desembocando, garrucha abastecida, meio tolete de fumo e um restolho de aguardente – que era para chamar a vontade...”

Deodoro, tocaieiro de tiro certo, armou tocaia na encruzilhada, ao pé do pau-de-óleo. Deu duas talagadas na pinga; não acendeu cigarro. A tarde já tinha caído e o jurado de morte cruzava por ali, todo dia, no exato ponteiro das cinco, que assim havia afiançado o capataz. E veio, como de costume: veio displicente, cantarolando uma cantiga que figurava ser esse mundo um saco de maldades e coração de gente um ninho de malquerer... E o pistoleiro engatilhou a sua “ferramenta”, abriu uma janelinha por entre umas folhagens de aroeira, prendeu o respirar, descompassou o coração e esperou...  Enquanto cantava, o cavaleiro empacou rente à trilha da paca, onde a sua cachorra tombara, e lamentou a tragédia com um abundoso marejo nos olhos. Em seguimento, apeou – sempre sob a mira da garrucha de Deodoro –, viu a catacumba da sua Malhada, extraiu da cabeça o chapéu, e continuou a reverenciar a sua cachorra morta.  Deodoro estremeceu, suou a testa, desconcertou: era o dono da cadela que ainda lastimava o engano. E o pistoleiro sentiu um calor de carinho tão grande por aquele homem, coisa como nunca tinha sentido antes. De garrucha engatilhada, experimentou um avoamento dos pensamentos e conflitou a consciência... Viu os olhos molhados de seu alvo, apiedou o coração e sentiu pesar, sentiu que não podia mais matar – não podia...

Hoje, agora, nesta noite, Deodoro estava esparramado no seu toco de aroeira, desde que chegou da tocaia, sonhejando no que os quatrocentos contos de réis que ele desperdiçara poderia ter-lhe dado: – “Relembrou daquele seu sonho antigo, dele e da falecida: de comprar a sua fazendola...”

Em seguimento, bebericou da pinga e fantasiou as suas pastagens: grandes aguadas para o gado, o retiro, e como a sua imaginativa escorria leve, frescamente, semicerrou os olhos, e figurou também que Jandira, sua mulher, estivesse dentro de uma casa soberba, avarandada, coberta com telha de barro – telhado de rico –, e seus pensamentos viajavam longe, longe, formando todo aquele esplendor, como se tudo aquilo fosse verdade... E Deodoro Badaró compreendeu; compreendeu que a sua imaginação já estava quase lhe transportando para a realidade, e compreendeu mais: que sonhar acordado estava muito perto, muito, muito, do viver vivendo, – e seguiu com aquela sua inventiva de sonhar sem estar dormindo: – pediu a um campeiro para lhe arrear o cavalo – um alazão de pescoço largo –, correu as pastarias, conferiu o rebanho, aprovou as nascentes, deu meia volta, vistoriou um trabalho de parição e voltou. Voltou e desenhou Jandira, debruçada na janela a lhe chamar para o jantar, e a chamar – um chamar que foi ficando bem longe, tão longeamente ficando...

Mas foi neste ponto que Deodoro sentiu de novo aquela sua pontada no peito, forte imensa, feito um agulhão a rasgar os seus por dentro, e o sufocamento de goela, agora mais apertado, apertado tanto, e mansamente aquietou-se, silente, e não pensou mais em nada. Não levou mais o cigarro à boca e o caneco de café escorreu caindo-lhe das mãos, e o pistoleiro não mais se moveu!!!

Já era para o contorno das nove, a noite já ia alta. A chuva tinha estiado e um luarão redondo saiu por detrás da mata. Saiu, viajou um bom pedaço e parou bem no aprumo da tapera de Deodoro, onde jogou o seu clarão prateado por sobre o teto molhado de sapé.

O corujão da noite levantou o seu voo, o seu voo de todas as noites luarentas, e passou por baixo da lua, e parou plainando bem em cima da palhoça de Badaró. Veludo botou meio corpo para fora da porta e latiu, latiu insistido, e latiu...

Desta vez, pela primeira vez, Deodoro nem cogitou para quem Veludo latia: se para o corujão, ou se para a lua.

A coruja espiou o teto alumiado da choupana, vasculhou com olhos e viu, viu pela fissura do sapé uma luzinha, tremeluzida, feito um pavio de vela, que espremida no rasgo do telhado tentava escapar...

Tentava escapar e escapou.

Escapou e tomou altura.

Tomou altura e buscou os horizontes.

Veludo continuava a ladrar, para o corujão ou para a lua.





O VINGADOR.


Chamava-se Caetano Brito e era afamado caçador de paca da fazenda de Santa Rosa. Santa Rosa, para quem nunca ouviu falar, era uma sesmaria – mil alqueires de terras –, encravada num sertão muito entranhado e da maior bruteza, onde viveu um tal de Zeferino, capitão por direito de valentia e dono daquele município de terras por obra de Deus. A fazenda, afundada naquele oco de mundo, vivia longe de tudo o que era civilização e progresso. Carta, para lá chegar, levava para mais de mês. Notícia de morte só aparecia por lá quando o morto já havia sido encomendado para a viagem dos sete palmos há uma braçada de dias.  Ali, naquele sertão escondido do mundo, o povo só tinha conhecimento de praga de carrapato, bicho de pé, e da varejeira – essa raça de mosca mal afamada e que deposita berne no gado.

Para tudo isso o povo do sertão tinha o remédio perfeito:  uma ponta bem afiada do canivete era a peça mais apropriada para extrair a comichão do dedão do pé. Para bicheira no lombo de criação, nada melhor que querosene cruzado com fumo de rolo, fora uma boa reza de simpatia, que era o que mais garantia a cura.

  Foramente isso, só aquelas mesmices de sempre:  assombração de porta de cemitério, mula sem cabeça, e encruzilhada com despacho de galinha preta, cachaça e duas velas, uma vermelha e outra preta, que era para bem garantir o “trabalho”.

Bom; foi nessa justa ocasião que apareceu por lá, vinda pela asa do vento, notícia de que uma criaturazinha minúscula, feito um verme, estava fazendo uma estripulia danada pelos quatro cantos do mundo. A porcaria, tão miudinha, que nem se podia enxergar a olho nu, vinha matando e varrendo gente por esse mundão afora.

Nascido lá pelas bandas daquele povo dos olhos espichados, já havia passado pelos torrões do pessoal do cabelo dourado e vinha fazendo arruaça nas terras de Pedro Alvares Cabral.

O pessoal de Santa Rosa, desacostumado com essas modernidades, achou foi graça e teve até quem deu gargalhadas e fez caçoada: “Santa Rosa é nação distante do mundo, e nunca que uma besteirinha de bichinho, tão incapacitado, pudesse navegar tanto chão, atravessar tanta manta d´agua do mar salgado, para vir danificar o povo da sesmaria”.

Bom, mas voltando ao caso do nosso caçador vingancista, Caetano se orgulhava muito e se engrandecia todo por nunca ter sido derrotado por nenhum tipo de caça, muito menos pela tal de paca, que é de todos o bicho mais astuto e ardiloso.

Como é por todos sabido, há de ter muito sangue-frio o sujeito que se dispuser a trabalhar numa espera de paca. Coitado do pobre se não for bem municiado de água e de merenda, e de frieza nos nervos, que é o que mais garante o abate. Mais coitado ainda se não providenciar pouso confortado, em forquilha reforçada de arvoredo frondoso, com escora de costas e bom descanso de pernas. E tem que ser camarada que não agoe fácil, porque a empreitada pode durar dias ou até mais que essa contagem. O silêncio vale quase por metade da caça abatida, e até se aconselha respirar por metade e a pensar bem baixinho. Nada de acender cigarro, urinar no chão, ou tragar um gole de aguardente. O caçador, até para verter água deve se precaver de boa garrafa de gargalho largo, que é pra servir de urinol. O menor barulhinho, o mais leve rançozinho de urina, tudo é alarde dos maiores para essa caça desnaturada e desconfiada.  

Muito é de se esperar que o caçador pernoite em cima da arvore por três, quatro, ou uma enfiada de dias. E não adianta xingatório e nem praguejação. Não é porque se fez ceva de fartura, com espigas de milho escolhidas, e que a bichinha visitou o oferecimento carinhoso por uma fileira de dias, que ela vai voltar no dia de caçador em espreita. Porque aquele bicho tem astúcia de raposa velha e mais manha que macaco-sauá em lavoura de bananeira. Vem três, quatro, cinco dias enfileirados em visitação à ceva. Come do abacate com caroço e tudo, corrói todos os grãos das espigas de milho, esfarelando as palhas, sempre de cima para baixo. Parece tão acostumadinha, tão cevadinha... Mas é só o caçador empoleirar na árvore rente a emboscada e adeus paquinha, que o aviso já viajou antes pelo vento ou por algum anjo-da-guarda-de-paca.

Mas Caetano Brito era o caçador-de-paca oficial da fazenda de Santa Rosa e até abastecia as despensas da companheirada com a carne suculenta da caça. Acontece que, naqueles dias, viveu em Santa Rosa, uma paquinha levada da breca, escolada em maldade de caçador, que cismou porque cismou de desfeitear da fama de Caetano. Morava a bichinha numa matinha crescida logo no fundo da cafua do caçador, a poucas braças da porta da sua cozinha. O caçador tomou todas as cautelas:  fez a armadilha com espigas de milho encorpadas, e até com uma partida de mandioca ele municiou a ceva. Todo dia o homem inspecionava e reabastecia a farturosa mesa da caça.

No dia aprazado para a escora, Caetano largou todos os outros afazeres e, cedo ainda, já era visto na beira do paiol de milho a aplainar uma ponta de sabuco para arrolhar a garrafa que serviria de urinol. Selecionou a roupa, sempre a de tom escuro, de modo a ficar o mais camuflado no meio do mato. Cuidado especial e tempo dilatado gastou Caetano em azeitar a sua espingarda e no preparo de pólvora seca e da munição apropriada. Quando o sol principiou a se pôr, o caçador foi visto a pegar uma trilha serpenteada da matinha nos fundos do quintal, carabina nas costas e embornal no ombro.

Caetano era sujeito corpulento, homem vermelho, alemãozado; gozava de boa saúde e era paciencioso como ele só. Era também um poço de simpatia e de bons modos. Tratava todo mundo em jeito de moça e nunca que perdia a calma ou estorvava com alguém. Não usava botina ou alpercatas, que seus pés, de tanto pisar em chão duro, enlargueceram, abrindo-lhe os dedos e rachando-lhe o calcanhar. Tinha só um defeito: Era vingativo como ele só, fama trazida desde o seu tempo de meninice, e um caso sucedido de desagravo, que ele arquitetou usando como arma uma cobra cascavel, era o mais afamado da redondeza.

Chegou à nação da paca com o sol mostrando ainda mais que a metade do seu farol por cima do morro. Vistoriou a oferenda deixada cedo para a caça. Tudo a contento; Caetano esfregou as mãos:  Nenhum ouriço ou gambá, bicho miúdo nenhum havia feito visita ou bulido na ceva.

O caçador, trepado no pé-de-pau, esperou a noite cair. Depois assistiu a lua sair, e esperou e esperou. O luar baixou por sobre a mata esmiuçando cada canto de escondido. Seu clarão penetrou por toda folga de folhagem, tudo clareando e vasculhando. Rodeou com o seu clarear o pouso do homem na forquilha, mexeu e revirou, até que caiu de cheio em cima da ceva. Boa hora para a caça aparecer, pensou o caçador. Boa clareza, facilidade de mira; chumbo certo no organismo da intrometida. Mas nada de paca, tudo emudecido. Nem um barulhozinho do seu trotezinho por sobre as folhas secas de seu carreiro; nada.

O homem, para não ficar desinsofrido, pensou na sua cafua; na meninada dormindo já, há essa hora. Total de sete. E o seu pensamento parou na do meio, magricelinha e barriguda, que estava sendo tratada a poder de fortificante e lombrigueiro, que o patrão mandou buscar em São Fidélis, na Botica de Seu Zebral. Bom sujeito o patrão, pensou ainda o caçador. Assim que sua mulher falou com ele do incômodo da filha, mandou arrear mula nova e, em viagem especial, jogou cavaleiro na estrada em busca dos remédios. Se a paca aparecesse e se ele metesse chumbo no entreolho da abusada, já estava decidido: Ia mandar a patroa retalhar um quarto traseiro da caça, o mais opulento, e levar o presentão ao patrão, o Capitão Zeferino. Como era por todos sabido, o capitão era doido da cabeça por um pernil de paca assado em fogo de brasa e por um caneco graúdo de vinho amargo como acompanhamento.  

E a cabeça do caçador continuava cismando, refletindo: bestagem, bobagem daquele povo abestalhado e medroso lá das capitais. Diziam que o pessoal de lá andava todo trancafiado dentro de casa, só espiando pelas frestas das janelas, se borrando todo de medo do Corona vírus, uma porcariinha de bicho que nem o olho de gente podia enxergar. Quah!, meditava o caçador..., mas é medo muito, é muita carência de bravura! A certa altura sentiu precisão de verter água. Abriu a braguilha das calças, extraiu a “ferramenta,” desarrolhou a garrafa que levara como urinol e, com o “instrumento” nas mãos, o pensamento foi bater na mulher, com certeza já com o corpo requentadozinho no debaixo do cobertor. Bem que podia estar lá agora na quenturinha da cama, fazendo uso da patroa, tirando proveito da sua posição de marido.

Mas, para desgosto seu, veio-lhe à cabeça que a mulher estava naqueles dias de resguardo de sangramento, e isso fez o caçador voltar aos seus pensamentos escondidos, às suas ruminações... Como é que podia aquela “peça” de mulher ter tantas serventias – refletiu o caçador –,: servia para a gente cruzar, era instrumento de parir criança, de verter água, e ainda por cima tinha esses dias das regras em que não se podia bulir naquilo. Enquanto guardava o mijador, o caçador ficou desacorçoado com essas relembranças e até sentiu certo retraimento nas entranhas, coisa assim aparentada de enojo.  Mas, estivesse a patroa desocupada de criança e fora desses dias de resguardo, que o caçador era dos mais valentes nas labutas nos por baixo dos cobertores e não dava sossego à mulher. Quem é que pode com pensamentos de cabeça de caçador de paca em noite de espera prolongada, quem é que pode?  

Já eram nove horas, ou quase, o que o caçador calcula pela posição da lua. E aquela caça pervertida não aparecia... A lua desapareceu e um breu de escuro tomou conta de toda a nação de escora da paca.  Hoje a desnaturada não vem mais; ou vem?, cogita ainda o caçador. Mas quando se lembra das duzentas vacas que tem de ajudar a ordenhar pela manhã, e que para isso tem que pular da cama às quatro, o homem abandona a sentinela. Acende um pito novo, porque a comichão do vício já há muito está atazanando o seu juízo e, enquanto caminha para casa, procura se esquecer da paca e os seus pensamentos visitam outras paragens... A lavourinha de milho que ele plantou lá atrás do paiol – rocinha de três quartas – está embonecando que é uma beleza. Mais uma ou duas chuvas e a roça estará salva, com três ou até quatro espigas por pé.

É..., porque o caçador-de-paca não é só caçador. No entremeio de uma caçada e outra, pela manhã, ele é ajudante-mestre de retiro, com uma imensidão de vacas para campear nos pastos e para apartar das crias no depois da ordenha. E, à noite, não tendo ceva no ponto de escora e a patroa dando posição, ele pode ser visto também nos debaixo dos cobertores, nas brigas de marido e mulher, em estripulias de fabricar menino.

Chega à sua cafua e empurra a porta que a mulher deixou só de encosto, sem a segurança da tramela e, na trempe do fogão, vê a vasilha d’água quente para que lave os pés antes de se deitar. Os panos de prato asseadinhos e estendidos no beiral do fogão, e a lenhazinha do outro dia já rachada e empilhada num canto, posta para secar. O bule de café morninho, quase quente a esperar por ele. Toma um gole demorado e bochecha para chamar a vontade de pitar. Aviva, no restolho das cinzas, o toco de cigarro que ele extrai da forquilha da orelha e, em passo manso, ganha o interior da casa, e, no quarto dos fundos, dá uma olhadela na cama da criançada. Uma pilha amontoada, uma por cima das outras. Mas tudo de barriguinha cheia, de banhozinho tomado, e os lençóis estalando de asseio. Demora um pouco mais o olhar amoroso na magricelinha do meio; a lombriguenta. Com passo de gato volta para a beira do fogão, esfregando e aquecendo as mãos e tirando o último trago da binga do cigarro.

E, no calor das brasas, o caçador olha para tudo em sua volta: os panos de prato espichadinhos sobre o fogão, a pilhazinha de lenha, o chão de terra batida da cozinha varrido e limpinho, que só faltava brilhar. E o caçador pensa, e entende, entende que o amor da sua mulher por ele, pela ninhada de meninos e por tudo ali, é mais quente que o fogão, que a água, o café..., que tudo aquilo. E lhe dá uma vontade enorme de acordar a patroa e dizer ao seu ouvido palavras de afeição e de carinho que ele nunca disse antes. Mas o caçador-de-paca é de instrução tão pouca, e não sabe transportar para a boca o que o peito sentiu. E, de mansinho, vai se deitar no macio-acolchoado ao lado da mulher, com aqueles sentimentos presos, e com aquelas palavras que nunca seriam ditas, cativas do coração.

Mas o caçador é teimoso, é renitente, e é ressentido também. Não aceita aquele abuso da caça, não concorda com tanta afronta e ofensa. Dia seguinte, Caetano está sentado num toco de aroeira, na porta da cozinha, a imaginar um jeito de dar fim aos dias daquela paquinha ingrata e atrevida. Coça o desalinho do cabelo; com a ponta do canivete extrai um bicho de pé do dedão, gosturinha de comichão que ele já vem amamentando para mais de dias. E fica a idealizar um sistema para mudar o rumo da guerra, pois está desconfiado que a maldita da paquinha já tenha descoberto o seu ponto de tocaia. Nas imediações de seu poleiro existe um murmurejo d’água, que às vezes confunde a atenção do caçador para as evoluções da caça. O caçador volta lá e, estudadamente, examina e matuta. Tem uma quedazinha na correnteza d’água, bem rente à ceva, a tocar uma cantigazinha que embaraça a sua atenção. Ele então corta um gomo de bambu gigante, racha ao meio, e desbasta a queda d’água com aquela pinguelinha de bambu, feito calha. Pronto, quase não se ouve mais o borbulhar da cascatinha no curso d’água.

 Mas a paquinha parece que viu todo o movimentar do homem, e era o caçador trepar na árvore a espreitar a caça e ela não aparecer. Ficava amoitada também, com toda a paciência do mundo, esperando que o homem se enfastiasse e fosse embora, para só então ir cear todo o mantimento da ceva.

Pode ser obra de Santo um bicho artimanioso assim?

É alma das trevas ou não é?

Mas o caçador, embora sisudo e analfabeto, é político; bom entendedor das leis dos matos, bom conhecedor das jurisprudências dos bichos. Não se zanga com a caça; nem em seus sonhos, nunca que ralhou com ela. Segue a sua rotina, deixando a paquinha seguir a dela.

E Caetano Brito volta à ceva, dia após dia, cada vez com mais manha, mais astúcia. Com uma paciência mais birrenta ainda que a paciência da paca, e não descansa, até que, numa noite fria e sem lua, ele surge, descalço e pitando, vencedor! A espingarda e o embornal num ombro e, no outro, a abusada, emborcada, a contagotar sangue pelo trilheiro escuro da matinha. 

Depois desse dia e até os tempos de agora, o ajudante de retiro passou a ser, em Santa Rosa e redondezas, o caçador de paca mais respeitado de todo o mundo, pelo que muito se orgulhava e fazia alarde.

Mas o muito falado caso da vingança que Caetano Brito praticou num tal de Segundino Fávero, usando como arma do crime uma cobra cascavel, foi história de tirar admiração de muitas bocas e de ficar na relembrança por muito vento e muita chuva. Embora fosse a mais afamada façanha de Caetano, e o feito que mais somava a sua fama de vingativo, ele nunca gostava de bulir no caso. Era fato já antigo, coisa acontecida patrasmente de cinco anos, mas para Caetano parecia ferida-verde, e ele vivia com aquela amargura no peito, como se a desonra nunca tivesse lhe saído das entranhas. 

Aconteceu assim: Naquele tempo, um sujeito de nome Segundino, provindo de distante terra, conduzia uma tropa de mulas para entrega na praça de Ericeira. Tropeiro de cartaz, da fazenda de Boa Vista, apeou em Santa Rosa e requereu licença para dar o de pastar aos animais por uns três dias, uma vez que a tropa, com mais de semana na estrada, já andava estropiada e vinha perdendo o fôlego. Caetano, precisado de pecúnia, não só assentou as mulas num pastinho vasqueiro seu, como também deu abrigo e boia ao cavalheiro.

Sucedeu, então, que, já na primeira noite, Segundino cresceu o olho semvergonhista em certas curvas da maiorzinha de Caetano, de nome Do Carmo. A menina, muito tenrinha ainda, na casa dos treze anos, de cor clara e de cabelo sarará, mas com um “atrás” já bojudinho e com os tecidos das blusas principiando a esticar.

O tropeiro, cabra manhoso, metido a falar bonito, até os “esses” o malandro punha nos rabos das palavras de modo a impressionar os outros. “São cinquenta mulas, Seu Caetano. Vamos deixar meia dúzia delas num retiro em Silveira Lobo e o remanescente vai para a estação de Ericeira”. Homem já formado, labioso e calejado em velhacaria, na segunda noite de estadia passou a bicaria na menina. Com promessa de mundos-e-fundos e juras de casamento, extraiu dela o seu “comprovante de nascença”, lá nos afundados do quintal, atrás da casinha da latrina. Três dias no adiante, já refrescados os cascos da tropa, o sacana caiu no oco do mundo, deixando a pobrinha enlagrimada e com os panos dos vestidos esticando mais e mais a cada dia que passava.  

Posto o pai a par do acontecido, saiu no rastro da comitiva, tendo andado por mais de mês no cheiro do infeliz, sem conseguir avistar nem a poeira da tropa. Conhecedor do destino da encomenda, Caetano Brito, tocaieiro de tiro certo, armou tocaia na encruzilhada de Ericeira e, por três noites, penou com a moleira no sereno, com o olho na estrada e o dedo no gatilho da carabina. O malfeitor, ciente da tocada e da intenção sanguinolenta do pai da menina, abandonou as mulas à deriva e vestiu no mundo, não sendo mais visto e nem dele se tendo notícias, por mais de anos. Durante todo esse tempo, Caetano andou murcho, meditativo, perdido da vontade, e tanto a raiva lhe corroeu as entranhas que chegou a desmagrecer para mais de uma arroba.

Mas o caçador de paca era camarada revanchista, reputação vinda de longe, dos seus verdes anos de menino. Assim, numa meia-noite de sexta-feira, jurou vingança em porta de oratório, com as mãos elevadas ao alto e os joelhos fincados em terra: “nem que eu precise vender o último porquinho do meu chiqueiro e todas as galinhas do meu poleiro!”

A menina pariu um machinho, e a mãe misturou a criança no meio da ninhada dela de modo a embaçar o caso. Houve gente que suspeitou, mas não falou nada, e teve aqueles que nem se deram pela coisa, uma vez que a família residia em recanto escondido, sem muito povo por perto e nem visitação de contínuo. Quando avistavam um passante se aproximando, amoitavam o menino nos ocultos da casa e, com os meses, o caso caiu no esquecido.

O tempo passou e Segundino, que esperava que tudo se amornasse, teve ciência de que a calmaria tinha voltado a reinar no local do crime. Na imaginativa que a poeira já tinha abaixado, voltou faceiro da silva para o seu covil, um retiro à sombra de umas jaqueiras, nas terras de Boa Vista. 

Caetano, que vinha amamentando aquela zanga havia mais de anos, armou logo a sua vingança: Com a forquilha de uma galhada de angico, prendeu a cabeça de uma cascavel, de dez chocalhos na rabiola e de dois metros de idade, que por mais de mês ele vinha cevando atrás da manga dos porcos. Jogou aquele rolo de peçonha dentro de um saco de estopa e, depois de atar a boca do saco com dois nós, dos cegos, dependurou aquilo em um galho do pé de angico.

Por quinze dias contados, ficou a serpente dependurada, sem o de comer ou de beber e nem mesmo ver a luz do sol. Três vezes por dia Caetano visitava a prisioneira e, com uma varinha de marmelo, o homem sapecava uma surra no lombo da cascavel. A ferramenta, colhida com capricho – nem muito grossa para não despedaçar a cativa, nem muito fina, que era para arder que nem fogo – deixava a cobra a cada dia mais e mais enraivecida.

A patroa de Caetano, conhecedora da fama de vingancista do marido, chamou o homem às falas: crescia a notícia sobre o tal de vírus que assombrava o mundo e não era de bom proceder largar a segurança das quatro paredes para navegar tanto chão em busca de vingança. O patrão, Capitão Zeferino, posto a par da intenção sanguinolenta do agregado da fazenda, fez visita de amizade ao seu compadre e amigo. Apeou em frente ao casebre de Caetano, penteou os seus azedos, ponderou, pediu para o amigo relevar a ofensa, retardar a vingança... Caetano coçou a cabeça, sorriu o seu sorrisinho simplório, mandou a mulher passar café fresco para o Capitão, e, cheio de cerimonia: 

– O Capitão tem bom juízo da questão.

– O amigo está com as boas razões.

E a cobra continuava dependurada no galho do angico, levando as suas três sovas por dia. Vencido o tempo de zanga, numa tardezinha, Caetano esqueceu todos os aconselhamentos e, na surdina, montou em um seu cavalinho preto, estradeiro, e, com o saco da cobra na garupa, tocou sozinho para o capão do ofendente.

Acontece que Segundino Fávero não era qualquer João Ninguém não; tinha costas-largas. Era gente da cozinha do delegado de São Fidelis e diziam até que era meio afilhado da patroa dele. Por esses justos motivos, o pai da menina se revestiu de todas as precauções. Nem um cachorrinho paqueiro, menina dos seus olhos, e que não largava do pé do dono, teve licença de seguir o cavaleiro.

Navegou por dias, sempre encobertado por capoeiras ou cavalgando dentro de cursos d’agua, cuidadoso de não deixar rastros. Onde pernoitava, logo de manhã cedinho, antes de pegar a estrada, Caetano não se esquecia de apagar a fogueira e de cobrir com terra as cinzas e os tocos de cigarros. Em mais das vezes, quando a lua dava franquia, viajou mediante o madrugar e dormitava de dia, sempre camuflado em alguma brenha de mato.  Outra cautela de Caetano foi não deixar que a sua fome de vingança se lhe abrandasse, por isso punha sempre na ideia a imagem da menina maltratada, e durante todo o caminhar deixava a cabeça trabalhar com gosto, e ia cozinhando o seu ódio estrada afora.

Numa tarde nublada, ao avistar a morada do sentenciado, amoitou o cavalo num matagal das redondezas e esperou o anoitecer. A noite negra e sem lua auxiliava o homem na sua demanda de desagravo. Com o embrulho de cobra nas costas Caetano rastejou cobrejando até os contornos da casa, onde quedou silente e apurou o ouvir, até quando escutou, dentro da cafua, uns espirros repetidos e umas tosses secas, renitentes, saídas da garganta do sentenciado. Com a mão em concha na apuração do ouvido, represou o respirar e ainda pôde perceber quando Seu Segundino batia o queixo e gemia, um gemido comprido, como se ardido em febre. Nesse ponto relampejou de relance, pela cabeça de Caetano, que, segundo se ouvia falar, eram esses os justos sintomas de um alguém quando acometido pelo tal Covid19. Mas, sedento de vingança, logo estapeou das ideias essas cismáticas e ainda pensou de sozinho, com aquele seu sorrisinho maroto: “o despudorado não vai nem ter tempo de se curar da sua gripezinha...” Em seguimento, ainda se esgueirando, enfiou o nariz por uma fisga de porta, vasculhou com os olhos e espiou, até que não viu mais clarão de lamparina...Foi nesse ponto que Caetano sentiu umas comichões no nariz e um arrepio esquisito no corpo, como se ameaçasse a pegar um resfriado...  Desacismado, sacou da varinha de marmelo, e, tendo a prisioneira ainda dentro do saco, castigou pela última vez o lombo da infeliz, que, num faz e desfaz de rodelas, soltava faísca dos olhos e baba espumante da boca. Isto feito, abriu o bocal do saco bem rente de uma fissura no esteio de pau-a-pique da tapera, e tocou aquele rolo de pura zanga para dentro da casa do traidor. Ainda sentiu gostinho bom no peito ao escutar o sininho do rabo da peçonhenta a serpentear pela rachadura da parede adentro.

Não demorou nem duas metades de minutos e Caetano ouviu um urro só a cortar a escuridão da noite. A cobra havia abocanhado o jurado em veia mortal, bem na altura do gargalo. Já montado e bem acomodado na sela, Caetano quebrou as rédeas, deu meia-volta na montaria, tirou o chapéu, olhou para o céu e quase que sorriu. Até ameaçou um sinal-da-cruz. Depois, acalcanhou as rosetas das esporas no vazio de seu cavalo negro e sumiu por dentro da noite. 

Quando descobriram o defunto, já dois dias andados, e desvendaram o motivo da morte, jogaram a autoria do crime nos costados de Caetano. Teve até quem assegurasse que o vingado havia rebocado de volta a serpente, para o caso de ter que usar o seu dente em veneno em outra qualquer vingança. Mas isso já foi falação do povo sem o que fazer, porque logo que cumpriu o seu serviço e enxergou estrada aberta, a cobra vingativa se embrenhou por uma nação de espinheiro das maiores malquerenças. Nunca mais que saiu de lá nem para beber água e, de tal afundado, até os dias de hoje, dá bote até na sombra de tudo o que passa no seu derredor de cinquenta braças.

Mas a verdade mesmo é que, a partir daí, nenhum pretendente teve mais o topete de se engraçar com suas filhas, e, assim, o caçador seguiu aquela sua rotina: caçadas, ordenhação das vacas e as labutas com a patroa, no depois do ponteiro das nove.

Mas foi ai que aconteceu, aconteceu daquelas coisas que, contando assim, sem que o leitor conheça a gente, pode ser que alguém deixe de acreditar: nem era decorrida uma quinzena da vingança, estando Caetano azeitando o gatilho de sua espingarda, para uma espera de paca, o caçador sentiu, lá nele, uma coceirinha na garganta, feito um engasgo. Em seguimento, assoou o nariz, espirrou, bateu a matraca do queixo e ardeu em febre. A patroa correu no pomar, catou folhas de laranjeira, cozeu, pôs dois dentes de alho, uma pitada de canela, uma medida de cravo...

Três dias no adiante, estava Caetano Brito, o vingador, sendo enterrado, em solidão, no cemiteriozinho da fazenda, carregado por uma carroça puxada por burro, guiada por um agregado com um pano cobrindo o nariz e a boca. A família ficou espiando de longe, encompridando os pescoços e virando de costas, porque fazia mal e dava agouro olhar um funeral até ele desaparecer. Não teve, o vingador, na derradeira viagem, o amparo de missa e nem os benefícios de uma água benta. Não foi a alminha dele encomendada por um padre ou coroinha, nem mão santa qualquer, ainda que menos graduada.   O cemitério ficava encravado num relevo de terreno por cima do curral, afastado umas trezentas braças da casa sede. Na entrada, num pedestal de pedra, uma escultura de Santa Rosa, a padroeira das sesmarias, santificava e benzia aquele pedaço de terra dos mortos. O cemitério era todo circundado por mureta de pedras encaixadas, daquelas feitas nos tempos idos dos escravos. Bem no central do campo santo um ipê todo florejado, com suas galhadas vestidas de um amarelo muito vivo, o que coloreava aquele marasmo de tarde; uma tarde triste de tempo frio.

Decorridos sete dias do chamamento de Caetano, o povo se aglomerou no oratório da Fazenda para a encomendação da alma. A noite era de lua grossa e de céu estrelado, muito estrelado. Puxaram a reza do terço, entoaram cantigas de Santo e dona Salete, a viúva, acendeu três velas de sete-dias, que era para alumiar o caminho da alminha do marido. 

Mas foi nesse justo momento, quando dona Salete acabou de atear fogo na última vela, que aconteceu... Aconteceu o que fez toda a povoação de Santa Rosa, até os dias de agora, andar de queixo caído e desmiolados da cachola:  Brusco, repentinamente, trovoou; a lua, amedrontada, fugiu por detrás de nuvens e as estrelas seguiram o mesmo caminhar. Umas nuvens escuras, grossas, amontoaram-se num de repente e o povaréu saiu do oratório para ver que algazarra toda era aquela. Uns miravam o céu, outros procuravam a lua, até que, num emaranhado sujo de céu avistaram uma formação de nuvem que dava toda a parecença com um sujeito corpulento, com um embornal no ombro e espingarda na mão. Um olhou, outro viu e outro apontou com o dedo. A meninada soluçava, tremia, e Dona Salete caiu de joelhos e se benzeu três vezes..., e ai foi uma certeza só:  era Caetano Brito em peregrinação de desforra contra o bichinho, miudinho, de tantas insignificâncias, que tinha acabado com os seus dias aqui neste mundo de gente viva. O Corona, vírus avalentado, deu fim aos dias de vida de Caetano, mas não conseguiu acabar com a sua gloriosa fama de vingador! Nisso, e para a confirmação desta santa verdade, o que nem carecia, dona Salete se lembrou de relatar, na cara assombrada de todos, que, depois da partida do marido, ela mais a meninada sentiram lá uns calafrios de peito e escorrimentos no nariz, mas que tudo logo amainou e não passou só de susto.

Não houve mais dúvidas! Tudo era obra do marido, que desde que partiu andava no rastro do verme malfeitor.

Olhando o céu, aquele mundaréu de povo fincou os joelhos em terra e elevou as mãos ao alto, e de mais de dúzia de olhos escorreu muita lagrima e de muito peito soprou soluço. Foi quando um amontoado de nuvem, vizinha a nuvem de Caetano, semelhou muito com um cavalo branco, cavalgado por um guerreiro de lança e chicote.

Devia de ser São Jorge, em adjutório de Caetano; com toda certeza era São Jorge, guerreador sempre muito inclinado a varrer do mundo com esses monstros sanguinolentos.

                         


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