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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: JOÃO MARCOS CAMPOS — CATEGORIA CONTO

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SOBRE O AUTOR


Designer e artista digital por profissão, encontrei na prosa e na poesia novas maneiras de me expressar e de preencher as lacunas criativas que somente a liberdade das palavras escritas possibilita. Minhas principais influências na poesia são Fernando Pessoa e Robert Frost, enquanto na prosa me inspiro nas obras de José Lins do Rego, Albert Camus, e Fyodor Dostoievski.


O CONTO SEMIFINALISTA


A casa no céu


Tudo começou quando meu marido escalou a montanha atrás da nossa vila, carregando tábuas, um saco de pregos, uma serra e um martelo. Meu filho mais novo correu em direção a ele, feliz, mas meu marido o repreendeu, o que o fez vir até mim chorando. Eu não entendi o motivo, mas conhecia bem meu marido, então decidi dar espaço a ele. Ele era um bom homem, talvez não muito bom em se explicar, mas eu não via isso como um problema.

Algumas horas se passaram e ele ainda não havia retornado. Comecei a ficar preocupada e pedi ao meu filho mais velho que fosse atrás dele. Ele foi, mas quando voltou, percebi que hesitou. Em vez de vir até mim,  ficou sozinho no jardim, mexendo nas pedrinhas do caminho. Quando o chamei, ele parecia nervoso.

"Acho que o pai não volta hoje, mãe", disse meu filho quando perguntei onde estava seu pai.

"O que você quer dizer, menino?", perguntei.

"Eu vi o pai na montanha. Ele estava construindo uma cabana, como  uma casa pequena, em um penhasco próximo ao cume. Quando perguntei o que ele estava fazendo, ele só resmungou.”

“O quê? Uma casa? E você tentou falar com ele de novo?”

“Não.”

“Por que não?”

Meu filho não respondeu. Ele parecia realmente nervoso.

“Vamos, menino! Desembucha! O que aconteceu?”, insisti.

“Ele entrou e ficou dentro da casa, mãe. E não disse mais nada.”

“Você bateu na porta?”

Uma vez mais, meu filho ficou quieto. Ele olhou para baixo, para os pés, como se quisesse evitar meus olhos.

“Então? Você bateu na porta?”

“Não.”

“Por que não?”

“Porque não tinha porta.”

“Como assim?”

“Ele construiu a cabana ao redor dele, mãe. Não tem porta para entrar ou sair.”

Foi então a minha vez de ficar sem palavras. Minha expressão deve ter sido bem angustiada, pois foi o suficiente para fazer meu filho vir até mim e me abraçar.

“Eu ouvi o pai chorando lá dentro, mãe. Fiquei tão triste que corri de volta para cá. Agora tenho vontade de chorar também. Desculpe, mãe.”

“Está tudo bem, filho. Está tudo bem. Ele deve estar cansado ou algo assim. Vou lá falar com ele.”

“Não acho que seja uma boa ideia ir lá hoje. Vai escurecer logo. E acho que vai chover também.”

Meu filho tinha razão. Logo escureceria, e subir a montanha à noite era uma ideia que desencorajava todos na vila, devido aos leões, lobos, ursos e leopardos que viviam na região. Mas imaginar meu marido sozinho, trancado em uma cabana improvisada à beira de um penhasco, sacudido por rajadas de vento e chuva, me fez estremecer.

Quando a noite veio, não consegui encontrar paz em mim. Fiquei acordada, ruminando sobre o que poderia ter acontecido para levar meu marido a esse destino. Refiz nossas vidas nos últimos meses, em uma tentativa desesperada de encontrar qualquer pista que pudesse explicar o que estava acontecendo. Também analisei   os anos anteriores, os anos antes de nos mudarmos para nossa casa e quando ainda nem tínhamos filhos. E aí fui ainda mais fundo no passado, para o tempo antes de nos casarmos e me aventurei até nos anos antes de nos conhecermos, relembrando as histórias que seus pais e amigos me contavam. Mas não havia nada. Meu marido era bom para mim e estava sempre presente quando eu precisava dele. Ele era um homem introspectivo, eu admito, mas não era de fazer as coisas inesperadamente.

Enquanto vagava pela casa, perdida nesses pensamentos, passei pelo quarto do meu filho mais velho e, pela porta entreaberta, pude vê-lo acordado no escuro. Ele olhou para mim por um longo tempo, sem dizer qualquer palavra. Entrei no quarto e acho que nós dois queríamos dizer algo, mas quando percebemos que não havia nada a ser dito, apenas nos abraçamos.

. . .


Ao nascer do sol, deixei meu filho mais novo com o vizinho e parti com meu filho mais velho rumo à montanha. Depois de cerca de uma hora de escalada na floresta, encontrei a pequena casa que meu marido havia construído. Ela havia sido erguida precariamente em uma área estreita. Não era exatamente um penhasco, como meu filho havia mencionado, era mais como um pico, talvez o quarto ou quinto ponto mais alto daquela montanha. Certamente, meu marido havia escolhido propositalmente o ponto mais estreito para construir aquela casa.

A cabana em si era bem pequena. Calculei que provavelmente tinha dois metros de comprimento e um metro e meio de largura. A impressão que tive é que meu marido queria ficar o mais longe possível da terra, para assim tocá-la o mínimo necessário. De onde eu estava, dezenas de metros abaixo, a casa parecia ter sido pintada para se encaixar no belo cenário que a cercava. A montanha preenchia o fundo com seu cume majestoso, enquanto as árvores povoavam o primeiro plano. Meu marido havia escolhido um ótimo lugar para construí-la. Havia pegadas de cervos por toda parte e águias voavam à distância. Quase ninguém visitava aquela área imaculada.

Tentei chegar àquela estranha casa, mas a maneira como meu marido a havia construído tornava isso impossível. A base da casa era mais longa e mais larga que o terreno onde havia sido construída, então não havia como acessá-la. Para ilustrar, era como se alguém colocasse uma caixa de fósforos sobre a boca de uma garrafa. Não havia área suficiente para a base.

Também não tinha como subir e entrar, pois, como meu filho já havia explicado, não encontrei aberturas grandes o bastante para uma pessoa passar. A casa, no entanto, tinha dois buracos na base. Meu marido os mantinha fechados, cobrindo-os com uma pedra ou algum outro objeto. O primeiro buraco era grande o suficiente para permitir a passagem de um pequeno balde. Mais tarde, descobri que ele usava esse buraco para coletar água de um riacho que passava alguns metros abaixo. Quanto ao segundo buraco, bem, ele tinha uma utilidade bem menos nobre. Meu marido o usava para suas necessidades biológicas.

Cheguei o mais perto que pude da casa e chamei meu marido. Ele não respondeu. Chamei-o mais uma vez e tudo o que pude ouvir foi o barulho do meu filho pisando nas pedras perto do riacho. Chamei uma terceira vez e nada. Pedi ao meu filho que subisse e o chamasse também. Ele o fez, mas sem efeito.

"Por que você está fazendo isso?", insisti.

Frustrada com a peculiaridade da situação, pedi ao meu marido que pelo menos me desse a satisfação de mostrar que estava vivo. Naquela altura, eu já não esperava que ele colaborasse, mas, para minha surpresa, ele respondeu. Eu o vi remover a pedra que usava para cobrir o buraco que servia como banheiro. Não consegui distinguir sua figura através da escuridão do buraco, mas não me importei, pois eu sabia que ele estava me observando. Era tudo o que eu precisava naquele momento. Eu já sabia, depois de tantos anos vivendo com meu marido, que esperar uma explicação quando ele não tinha vontade de se explicar era perda de tempo. Mas agora que ele tinha aberto aquela janela para mim, de repente eu tinha algo a dizer naquela situação inusitada.

"Você realmente não vai me dizer o que está fazendo?", perguntei. "Você sabe que pode falar comigo. Meu Deus, as pessoas simplesmente não vão e constroem uma cabana ao redor de si mesmas, sem porta, no meio do nada. Isso não é normal. Por favor, me diga o que aconteceu. Eu sou sua esposa, e você tem que me dizer o que aconteceu."

Fiquei olhando para ele, ou pelo menos quis acreditar que ele estava ali, do outro lado, também me vendo. Achei que meu marido acabaria dizendo algo. Afinal, eu era sua esposa, e estava com ele há quase vinte anos.

No entanto, mais uma vez ele permaneceu quieto. Fiquei imóvel, com meu filho ao meu lado, apreensiva, esperando uma palavra de seu pai. Foi aí que parei e percebi o absurdo da situação. Lá estávamos nós, meu filho e eu, olhando por um buraco de merda, literalmente, esperando uma resposta de uma entidade que não parecia nem um pouco interessada em nós. E, para piorar a situação, meu marido moveu lentamente a pedra mais uma vez para cobrir o buraco. Acho que ele hesitou, mas se escondeu novamente, independentemente do que eu   dissesse.

Irritada, frustrada e — por que não dizer? — de coração partido, peguei a mão do meu filho e fui embora.

"Tudo bem", eu disse, "se é assim que ele quer, a gente pode viver sem ele."

Fiquei tão brava quando fui embora que até considerei a possibilidade de nunca mais voltar para aquele lugar. Eu iria esperar até que ele desistisse e então conversaríamos. Meu filho mais velho não me perguntou nada, o que foi estranho. Mas minha mente estava tão tomada por sentimentos contraditórios que pensei que seria melhor assim. Acho que ele entendeu a situação melhor do que eu. Quero dizer, como se houvesse alguma maneira de entender. Meu filho mais novo, no entanto, mostrou-se muito mais difícil de lidar. A primeira coisa que ele fez quando fui buscá-lo foi perguntar sobre seu pai. Eu disse a ele que seu pai estava acampando na montanha e que ele ficaria lá por alguns dias. Sua reação inocente foi me perguntar animadamente se ele poderia ir também, o que me fez chorar.

Apesar de todo o meu desgosto e da promessa que eu tinha feito para mim mesma, escalei a montanha novamente no dia seguinte. Fui sozinha. Pensei que se fôssemos apenas nós dois, poderíamos ao menos ter uma conversa franca. Mas mais uma vez meu marido não respondeu. Levei comigo algumas comidas que ele gostava, na esperança de atraí-lo para fora, mas ele não se importou. 

Caminhei ao redor da casa para tentar encontrar alguma evidência de que ele estava comendo, e acabei encontrando pequenos ossos de peixe espalhados na grama. Concluí que ele havia encontrado uma maneira de usar o mesmo buraco que usava para coletar água para pescar no riacho abaixo. Essa descoberta, estranhamente, me deixou mais triste. Parte de mim queria que meu marido estivesse com fome, para que assim ele precisasse depender de mim para lhe trazer comida. Mas até isso havia sido tirado de mim. Ele tinha água, comida e um pequeno teto sobre sua cabeça. Acho que era tudo o que ele precisava.

No entanto, enquanto procurava ao redor, encontrei algo inesperado. A casa tinha uma janela. Era pequena e difícil de ver quando fechada, mas bem fácil de localizar quando aberta. Ela dava para o vale, então comecei a imaginar meu marido sentado sozinho dentro daquela pequena casa o dia todo, observando as árvores, as pradarias e os rios. De seu ponto de vista, devia ser uma paisagem realmente impressionante.

“Estou vendo a janela aberta, querido. Vamos, fale comigo”, eu disse.

Como esperado, meu marido não respondeu. Eu insisti e o chamei uma segunda vez. Depois da terceira, ele fechou a janela. Eu ouvi barulhos vindos de dentro da casa, sons de coisas sendo movidas. Imaginei que meu marido estava se ajeitando para deitar e esperar que eu fosse embora.

"Escute, está bem claro que você não quer falar comigo", eu disse. "Tudo bem. Eu vou continuar vindo aqui até o dia que você quiser conversar, ok? Isso é tudo que você precisa saber. Que está tudo bem. Quer dizer, está tudo bem, mesmo que não pareça. Tudo bem?"

Esperei por uma resposta por um tempo. Não que eu tivesse esperança em receber uma, mas porque minha mente, assim como a de qualquer pessoa, foi naturalmente construída para permitir um momento de pausa após a vocalização de uma pergunta. No entanto, quando pensei no absurdo da situação, dei de ombros. Olhei ao redor e vi as espinhas de peixe e a água correndo no riacho abaixo.

"Eu vi que você está comendo. Isso é bom. Mas vou deixar comida aqui, caso você queira."

No caminho de volta para casa, encontrei dois amigos do meu marido. As pessoas na vila já haviam sido informadas sobre o fato, aparentemente. Eles tentaram ser gentis comigo. Me perguntaram se o que tinham ouvido era verdade. Envergonhada, inventei outra versão da história, dizendo que as pessoas estavam exagerando. Contei a eles que meu marido apenas tinha construído uma cabana de pesca atípica. Eles não se mostraram muito convencidos, mas concordaram mesmo assim. Me perguntaram onde ele a havia construído e eu informei o local errado, não sei por quê. Talvez porque eu desejasse que a coisa toda fosse mentira, para assim me livrar de todo constrangimento. Também senti pena do meu marido, pelo momento em que seus amigos encontrassem sua cabana. Estava ficando claro para mim que ele queria ficar sozinho, e por um momento desejei que todas as pessoas no mundo desaparecessem, para assim deixar meu marido sozinho em sua existência autossuficiente. Eu sabia o quão bizarra a coisa toda parecia, quando vista de fora, mas no final das contas, meu marido não tinha machucado ninguém, nem mesmo a mim ou meus filhos, aqueles diretamente afetados por suas ações.

No entanto, independente de como eu me sentia, a vila inteira começou a falar sobre isso. Alguns vieram à minha casa e tentaram me consolar, como se eu já estivesse de luto por meu marido. No começo, tentei ser gentil, mas, eventualmente, comecei a pedir educadamente para ser deixada sozinha com meus filhos. Isso não teve muito efeito, pois as pessoas continuaram a vir, preocupadas com a possibilidade de que a loucura de meu marido também pudesse me afetar. 

Eu encontrava refúgio chorando no banheiro enquanto os visitantes comiam minha comida e bebiam meu vinho. Sentia falta do meu marido, e naqueles momentos eu queria desesperadamente estar com ele naquela pequena casa, encolhendo e desmoronando na ausência de luz e espaço. As noites eram terríveis. Minha cama parecia vazia sem meu marido, como um vasto deserto sem propósito neste mundo, exceto para nos lembrar que existem lugares na Terra onde a vida não pode florescer.

. . .


Quando chegou o fim de semana, levei meus filhos para acampar perto do meu marido. Eles gostaram da ideia. Fizemos piqueniques lá e dormimos em barracas de frente para a casa. Meu filho mais novo e eu nos aproximamos dela e conversamos com meu marido. Ele continuava sem responder, mas isso não importava. A essa altura, era suficiente saber que ele podia ouvir. Eu já tinha aceitado seu silêncio. Meu filho mais velho, no entanto, nunca disse nada. Não sei se por raiva ou por medo do pai. Eu o encorajava a falar, mas ele simplesmente não queria. Nos divertimos acampando lá, e a vida quase parecia normal. Era reconfortante estar longe de todos os curiosos da vila.

Começamos a fazer isso todo fim de semana. Aguentávamos os olhares e os comentários em público durante a semana, para logo aproveitar nossa redenção aos sábados e domingos. Gostávamos de ficar sozinhos naquela montanha, com a silhueta sempre presente da cabana nos observando. A casa do meu marido era sempre tão silenciosa que, às vezes, eu me perguntava se ele estava vivo lá dentro. Entretanto, uma simples caminhada ao redor revelava os excrementos frescos e espinhas de peixe. Uma noite, acordei para beber água do riacho e vi uma linha de pesca chegando à água. Sorri e quis dizer algo ao meu marido, mas segurei meu impulso. Em vez disso, aproveitei o tempo para apreciar o que vi.

Num domingo, quando chegamos, encontramos algumas pessoas já acampadas perto da casa. Não gostei disso, mas não havia nada que pudesse fazer. À tarde, mais pessoas chegaram e perturbaram a tranquilidade do espaço. Meus filhos e eu não podíamos mais brincar ao redor da casa e fazer piqueniques na grama. Voltamos para a vila e prometemos retornar no próximo fim de semana, esperando encontrar o lugar pacífico e deserto novamente. No entanto, para nossa surpresa, havia ainda mais pessoas acampadas perto do meu marido no sábado seguinte. Elas escalavam as pedras que levavam à casa e tiravam fotos. Usavam o zoom de suas câmeras para tentar espiar o interior e, em seguida, colocar vídeos na internet, o que fez com que ainda mais pessoas visitassem aquela área.

Um dia, vi algumas crianças atirando pedras na casa e, para minha surpresa, nenhum dos adultos por perto tentou impedi-los. Corri e gritei com eles, o que os fez fugir. Poucos minutos depois, eles estavam de volta com seus pais. Estes estavam furiosos e me disseram que eu não tinha o direito de gritar com seus filhos. Começamos uma discussão que escalou rapidamente, mas terminou abruptamente assim que eles perceberam que eu era a esposa do homem dentro da cabana. Fiquei envergonhada. Não queria que ninguém ali soubesse. Porém, essa revelação ao menos fez com que as crianças parassem de atirar pedras ou se aproximassem da casa.

No dia seguinte, fui à polícia e pedi que impedissem as pessoas de se aproximarem de onde meu marido morava.

"Desculpe, não podemos fazer isso", disse o chefe de polícia. "Aquela é uma área pública. As pessoas podem ir e vir como queiram."

“Mas você não pode pelo menos criar um perímetro de proteção?”, insisti.

“Não, não podemos. Como eu disse, é uma área pública. Além disso, seu marido é quem está infringindo a lei. Ele não tem permissão para construir uma cabana lá.”

“Então, você quer dizer que pode ir lá e derrubar a casa se quiser?”

“Se essa ordem vier, nós faremos isso, obviamente. Você quer que isso aconteça?”

Eu não consegui responder. Sinceramente, eu não sabia se queria isso. Quer dizer, isso acabaria com todos os problemas, mas o que seria do meu marido? A maneira como ele parecia comprometido a viver naquela casinha me fez questionar se ele ainda tinha intenção de viver fora dela.

Apavorada com essa possibilidade, fui falar com o prefeito. Ele costumava ser muito próximo do meu marido, até que um dia eles brigaram por um motivo tão idiota que eu nem consigo lembrar. Expliquei a situação. Eu disse a ele que meu marido parecia estar totalmente adaptado à vida que havia escolhido e que parecia comprometido a viver assim. O prefeito disse que estava planejando visitar meu marido e que ele entendia completamente minha situação. Também me prometeu que garantiria que ninguém fosse autorizado a chegar perto da casa do meu marido. Agradeci com lágrimas nos olhos.

"Eu entendo que algumas pessoas só querem ficar sozinhas neste mundo", ele disse.

"Acho que também entendo isso agora", eu disse.

"Por que temos que continuar acreditando que aqueles que buscam reclusão devem sempre ser persuadidos a voltar para a sociedade? A solitude não é a recompensa para aqueles que superam a solidão?"

"Você acha que ele quer ficar longe de mim? Ou da família dele?"

"Eu acho que não. Talvez ele esteja apenas procurando uma maneira de ver o mundo sem ele, ou qualquer outra pessoa, no centro de tudo."

"O que mais me machuca é como tudo foi tão abrupto, tão sem aviso."

"Ele me disse um dia que faria isso", o prefeito disse, indiferente, enquanto olhava pela janela.

"O quê?" eu respondi, incrédula. "Pois então você sabia sobre isso? Ele te contou?"

"Não exatamente."

"O que você quer dizer?"

"Quero dizer que ele não disse que um dia construiria uma casa ao redor de si mesmo na montanha. Ele não disse com essas palavras. É que, um dia, antes de nossa briga, fomos pescar, e, no caminho, encontramos uma cabana de pesca abandonada na floresta. Eu brinquei que não seria uma ideia tão ruim abandonar tudo e viver lá, pescando o dia todo, longe do mundo. Nós dois rimos, mas logo ele disse que aquela cabana não seria o suficiente. Que não era afastada o suficiente.”

“Então, ele te contou sobre isso. De certa forma.”

“Talvez sim. Mas acho que foi só um pensamento que ele teve naquela época. Já o que o levou a abandonar tudo e se mudar para aquela montanha agora, isso é difícil de compreender. Está além de nós. Só temos conjecturas. Acredito que nem mesmo seu marido entenda totalmente o que está fazendo.”

“E acho que ninguém jamais vai entender. Ele não vai falar.”

“Eu admiro seu marido. De verdade. É preciso coragem para fazer o que ele está fazendo. Acredito que há muitas pessoas chamando-o de idiota agora, de lunático, mas tenho certeza de que nenhuma delas ousou ver o mundo de sua posição. Talvez seja por isso que seu marido não fala. Depois de tudo o que já viu, ele pode estar em qualquer um desses extremos. Pode estar em completo desencanto com a humanidade ou então tão maravilhado com a beleza do mundo, que já nada importa. Qualquer um desses extremos é suficiente para fazer um homem se isolar e viver uma vida sem palavras.”

Fui para casa me sentindo triste, porém aliviada. Meu marido parecia estar fazendo algo notável, mas ninguém sabia o quê. A crescente certeza de que a estrada que ele havia escolhido não tinha volta me assustava. De alguma forma, eu já sabia disso. Minha esperança, entretanto,  lutava contra essa afirmação.

Quando voltei para a montanha, encontrei a área vazia e pacífica. Contei ao meu marido sobre a conversa que tive com seu velho amigo. Quando disse que o prefeito havia prometido manter as pessoas longe de lá, meu marido abriu a janela, como se quisesse dizer "obrigado".

Essa foi toda a comunicação que passamos a ter. Sempre que eu dizia algo que meu marido não gostava, ele fechava a janela. Se ele gostava, ele a abria. Se a janela já estivesse aberta quando eu dizia algo que ele gostava, ele a abria ainda mais. Mas se eu dissesse algo que ele não gostasse quando a janela já estivesse fechada, seu silêncio ensurdecedor era a única resposta que eu recebia.

Isso continuou por quatorze anos. Quatorze anos subindo aquela montanha pelo menos uma vez por semana. Quatorze anos falando com paredes de madeira, porque àquela altura, eu já não conseguia mais distinguir meu marido da casa que ele havia construído. Eles eram um, construídos um dentro do outro. Eles se construíram no topo daquele cume isolado, e era impossível saber quem estava abrigando quem naquela existência simbiótica. A madeira já estava se desintegrando, quebrada em algumas partes, mas ainda resistia às rajadas de vento e às tempestades ocasionais que lentamente enfraqueciam suas fibras.

Meus filhos acabaram se mudando para lugares longe da nossa vila, e raramente vinham ver o pai. E quando o faziam, vinham como se estivessem sendo coagidos. Embora nunca me contassem, eu podia sentir uma mistura de vergonha e raiva em suas visitas. E quando eles tiveram seus filhos, eles nunca os levaram para ver o avô. Entendi a posição deles, então tentei não me opor. O que eu ainda estava longe de entender eram os motivos do meu marido. Tudo o que eu tinha eram hipóteses que mudavam de tempos em tempos.


. . .


Uma manhã, depois de um furacão que destruiu a vila, corri montanha acima para ver como meu marido tinha lidado com os ventos. Encontrei as paredes de madeira ainda de pé, mas parte do telhado tinha sumido. Aquela visão partiu meu coração. Era como ver meu marido sendo mutilado. Sentei-me na grama e comecei a chorar.

"Chega, já chega!" Comecei a gritar. "Chega! Por favor, chega. Não aguento mais isso."

Como de costume, nenhuma resposta veio do meu marido. Ou assim pensei, pois, quando parei de soluçar, pude ouvir distintamente meu marido também chorando dentro de sua casa.

"Por favor, meu marido, é isso! Acabou!", gritei. "Se você tinha algo a provar, já deve ter sido provado. Saia desta cabana agora e venha morar comigo novamente. Você tem a minha idade, então vamos pelo menos encontrar paz em viver o resto de nossos dias juntos.”

Foi aí que notei que ele tinha parado de chorar, o que me deixou feliz por um momento. Mas, como nenhum outro som ou movimento veio da cabana, continuei.

“Tudo bem, meu amor, se você nunca vai sair, então me deixa ficar aí com você. É tudo o que peço. Só quero sua companhia na última parte da nossa jornada.”

Foi quando, depois de tantos anos, ouvi finalmente a voz do meu marido novamente. Não consegui entender o que ele dizia, pois sua voz soava bastante rouca. Mas isso já não importava. Saber que ele estava tentando falar novamente me deixou feliz. Escalei as pedras que levavam à casa enquanto ele quebrava as paredes para se libertar. Eu estava em êxtase.

Porém, assim que cheguei perto o bastante, vi suas mãos e estremeci. Elas eram estranhamente ossudas e enrugadas. Também pálidas e horrivelmente deformadas. As unhas eram longas e amarelas, distorcidas, como chifres saindo de um animal. Suas mãos já não pareciam humanas, mas garras de um ser mitológico que não se encaixa na natureza que conhecemos. Enquanto eu as observava se movendo para cima e para baixo, quebrando as paredes de madeira, meu marido emitia sons guturais que me deixavam ainda mais assustada.

Foi então que vi o rosto do meu marido. Eu o vi através da parede quebrada e entrei em pânico. Foi bem rápido, não mais do que meio-segundo. Mas foi o suficiente. Seu cabelo e barba estavam longos e brancos, como esperado, mas também havia grandes espaços onde a pele aparecia. Ele estava ficando calvo, mas mais do que isso, parecia que meu marido tinha contraído alguma doença nojenta que o fazia perder cabelo em algumas partes, enquanto outras partes ainda eram densamente peludas. Talvez isso fosse consequência de sua má nutrição durante todos aqueles anos. Seus olhos eram amarelo-âmbar e vazavam algum tipo de líquido viscoso que cobria suas bochechas e formava uma crosta branca quando seco. Ele provavelmente tinha algum tipo de doença que não havia sido tratada por muito tempo. E, além de tudo isso, seu rosto estava perturbadoramente magro, quase desfigurado, e pálido como um fantasma.

Eu corri. Corri por medo, corri por desgosto. Aquele animal não podia ser meu marido. Meu marido era um homem doce e bonito, não uma criatura coberta de doenças e com garras aterrorizantes. Corri até meus pulmões não aguentarem mais. Encostei em uma árvore e chorei de novo. Chorei como nunca havia chorado antes. Chorei pelo estado perturbador do meu marido-criatura mais do que chorei no dia em que percebi que ele não tinha vontade de deixar a cabana que havia construído na montanha. E agora que ele estava livre, eu queria que ele voltasse, para ser aprisionado naquela cabana novamente. Eu não queria aquela criatura na minha vida. Eu o queria morto, sem voz, ausente no mundo, mas onipresente em meu coração, como eu havia me acostumado.

Tentei continuar, mas estava fraca demais para correr novamente. Depois de alguns passos, desmaiei. Acordei horas depois e me senti desorientada. Com medo de que meu marido viesse atrás de mim, corri para casa. Uma vez lá, me tranquei no quarto, assustada com a possibilidade daquele animal aparecer no meio da noite. Eu não consegui dormir. Passei a noite vigiando a maçaneta e me sentindo nervosa toda vez que ouvia um rangido ou estalo dentro da casa.

Quando amanheceu, senti que havia exagerado em minha reação. Fui até o prefeito e expliquei o que havia acontecido. Ele concordou em subir a montanha comigo à tarde com novas tábuas e ferramentas para consertar a casa e de alguma forma ajudar meu marido. Quando chegamos, encontramos um lado da casa parcialmente destruído e meu marido desaparecido. Procuramos ao redor e não encontramos nenhuma indicação de sua presença. Começamos a debater se deveríamos nos separar para procurá-lo, mas eu fui contra essa ideia. Eu ainda estava com medo.

Enquanto conversávamos, o prefeito apontou para o céu.

"Acho que o encontramos", ele disse.

Olhei para cima e não entendi no começo, mas quando ele murmurou "abutres", tudo fez sentido.

Havia cinco ou seis abutres voando em círculos, não muito longe de onde nos encontrávamos. Caminhamos por volta de dez minutos montanha acima e encontramos o corpo do meu marido, caído em um campo de arbustos floridos e grama alta. Não dissemos nada, mas estava claro que foi um alívio encontrá-lo morto. Não chorei mais e o prefeito não disse nenhuma palavra especial sobre meu marido. Pegamos as tábuas que havíamos levado para consertar a casa e as usamos para construir um caixão rudimentar.

Como desfecho, enterramos meu marido próximo daquilo que restava de sua pequena casa. Seu corpo já tinha cheiro de coisa podre, o que me forçou a cobrir o nariz. Também cobri seu rosto, pois não conseguia olhar para ele. O belo homem que um dia fora meu marido havia desaparecido naquela criatura. Tudo o que restou foi o que a casa fez com ele.


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