top of page

PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: LIMIA — CATEGORIA CRÔNICA

ree

SOBRE O AUTOR


Rodrigo Araújo de Lima (Limia). É escritor, arqueólogo, geógrafo e internacionalista. Mestre e Doutor em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP), em cotutela com a University of Bristol (Reino Unido) e coorientado pela Escola Politécnica da USP, atualmente desenvolve seu pós-doutorado entre História e Arqueologia na UNESP de Franca. Limia divide seu tempo entre a atividade acadêmica e a sua paixão literária tecendo pontes de nanquim entre um mundo e outro, tendo uma natural (e orgulhosa) incapacidade de desconectar ambos.



Sua pesquisa acadêmica é, em si, uma investigação sobre pertencimento. Ele se dedica a estudar os "outros" do Mediterrâneo Antigo, investigando os delicados processos de negociação, inclusão e exclusão que formam as identidades. Através de tecnologias digitais, seu objetivo é promover uma visão mais plural e complexa do passado, um fio que tece a conexão entre seu trabalho como pesquisador e como escritor.



Essa busca por lugares e vozes ecoa profundamente em sua obra literária. A crônica "Quando os anjos se omitiram", semifinalista do Pena de Ouro 2024, mergulha com uma honestidade visceral na perspectiva da exclusão, narrando a dolorosa busca por um lugar no mundo ao confrontar a precoce clivagem da sua fé católica, o racismo, a homofobia e o impacto do suicídio de seu irmão durante a juventude. O diálogo com seus outros textos publicados revela a profundidade dessa jornada: em "O que é ser?", a mesma angústia se expande para as complexas camadas da identidade racial, transformando a escrita em uma escavação da própria mente, sem a amarga promessa de respostas fáceis. Já em "Sanctum sanctorum", Limia explora a fuga como uma defesa ambígua: a criação de um grandioso templo interior que, ao mesmo tempo que serve de escudo contra uma realidade opressora, se torna também seu próprio e magnífico cativeiro.



Assim, a escrita de Limia é um ato de Arqueologia da alma em pleno processo. Uma escavação que não se contenta em apenas expor os fragmentos do passado, mas que busca, na “escrita-escavação” novas formas e sentidos às estruturas mais profundas da memória e da identidade — sendo um trabalho que alicerçará, de maneira contínua, outros tantos projetos literários futuros.



A CRÔNICA SEMIFINALISTA


Quando os anjos se omitiram


Estudei em um tradicional colégio católico de São Paulo. Um desses que se gabam por ter cem anos ou mais (ou menos). Fundado por uma beata e gerido por um comitê de freiras. Praticamente fui nascido e criado lá. Mais especificamente no interior da fé católica apostólica romana. 

Foi em uma de suas salas que fiquei deitado no chão (sobre um colchãozinho, se me lembro bem), dias depois, ou mesmo no dia seguinte, ao enforcamento do meu irmão, julgado por ele mesmo e tendo como seu carrasco anônimo a sua própria solidão e seu medo da rejeição. Foi em uma dessas salas que eu deitei no chão e fiquei em silêncio tendo os olhos dos meus coleguinhas me observando arregalados, sem entenderem nada do que acontecia comigo.

Talvez tenha sido naquele momento em que algo começou a dar errado? Não sei. E quando digo errado, me refiro a me tornar consciente, mais cedo do que eu deveria. Senciente demais do que acontecia aos meus arredores. Posso estar errado também. Minhas memórias são muito claras e muito turvas ao mesmo tempo. Uma explosão de sentimentos e fotografias do passado tomam minha mente e é difícil saber o que foi feito quando, no fundo, eu sei o que foi feito. Assim, permito-me dizer que me lembro tão claramente quanto uma noite de lua minguante, toda a violência que eu sofri naquela instituição sagrada, conforme fui tendo a minha crescente. 

Desde sempre soube que eu não me interessava por meninas. Não que eu verdadeiramente não me interessasse, tinha amigas. Mas esse interesse” é apenas um modo de se referir (tão discretamente quanto os parênteses que abrem essa intercalação), quando alguém é homossexual. Se o sou, nem disso sei bem. Porém, foi assim que se iniciou uma verdadeira sina.

Crianças são arquétipos de quem as criou (até certo momento). Isso não é novidade. Crianças não passam de espelhos de seus cuidadores e o que eles dizem, elas inocentemente, ou não, irão refletir naquilo ou naquele infeliz que os pais ou familiares maldisseram.

E assim foi feito! Eu era “o aquilo”, eu era “o estranho”. Veja, não quero me vitimizar, conto apenas o que senti. Sentir a humilhação de ser afastado de amigos que havia conhecido na creche. Ser apontado como “o viadinho”, “a bichinha”, “o frutinha”, ser o alvo fácil. Posso dizer que eu era um alvo mais fácil ainda. Não havia como errar. Minha cor parda não permitia. Eu era um dos poucos, senão o único com naqueles tons naquele lugar tão santo, tão cândido e tão branco.

A partir daí os relatos se misturam tanto que perco a noção do tempo, mas, como não poderia ser diferente, ainda mais nos desprezíveis anos de 1990. A “menininha” se tornou “o macaquinho”. E assim foi o começo da minha despersonificação. 

O momento em que nem eu mesmo conseguia mais me enxergar como um “alguém”. Houve vezes que, depois das rezas na igreja dentro daquele colégio, eu pedia para ser um anjo. Olhava aquele teto todo lindamente pintado de anjos e santos. Havia também os vitrais, com aquelas estátuas assustadoras de dor e tormento da crucificação de Cristo. Todas aquelas faces marmóreas marcadas com terríveis caretas de horror. E o sangue escorrendo naquela escultura eternamente em sofrimento.

Um anjo eu queria ser. Pedi por dias e noites. Simplesmente, para não ter que ficar mais ali. Naquele momento o meu “ali” era aquele colégio, mas como não podia ser diferente, um daqueles infernos dantescos extravasou para além dos muros daquela bem-aventurada instituição.

Havia uma figura que me incitava a reagir à violência e as brigas. No entanto, veja que contradição! Ao entrar pelas portas daquele ambiente escolar católico, era me ensinado que eu deveria dar a outra face. O que seria isso senão o martírio de uma crucificação?

Só sei que em algum momento senti medo de ser atacado por menos que nada que estivesse fazendo. Ainda sinto aquele terror de que vou ser atacado em qualquer momento. E posso, de certa forma, até sentir o bater da minha cabeça e o doer que estaria por vir, mas que nunca virão (talvez?).

Interessantemente, na sala de aula, não era, de modo nenhum, diferente. Havia uma professora. Bem mais escura que o meu tom. Estranhamente eu parecia ser, também, o alvo dela. 

A mão que poderia ter, de algo forma, compreendido o que acontecia, apenas apontava como todos os alunos. Como se nem fosse a professora, mas apenas mais um deles. 

Em algum momento eu solucei um choro no meio de uma aula de educação religiosa. Solucei talvez algo como “eu não tenho amigos”. Naquele ponto eu já nem tinha mais um alguém que pudesse chamar de meu. Afinal eu já havia sido reduzido a ninguém.  Houve um silêncio, uma comoção, alguns olhares condescendes e alguns abraços. Não passou disso, porém.

Ficou evidente para mim, ainda em tenra idade, que ser cristão, não significava necessariamente seguir os ensinamentos do homem a quem rezávamos todos os dias antes das aulas. 

A partir de então, não me interessei mais na fé. Ainda hoje me pergunto na minha ausente fé católica. Eu não acredito nesse Deus, Jesus e Espírito Santo ou eu simplesmente não acredito nos homens, mulheres, crianças e velhos que me desfiaram por anos a fio? 

Deveria perdoar por eles não saberem o que fazem? Deveria julgá-los ao inferno sem perspectiva de redenção? Dessas duas, eu honestamente, só gostaria de esquecer, para tentar alcançar a paz que eu tanto desejo e pela qual tanto rezei. 

No entanto, isso está além do possível. Assim, me contenho com algo mais tangível. Nesse momento, me dedico a ouvir o silencioso coro dos anjos e então escrever sobre as coisas que tenho visto, as que são e as que hão de acontecer. 

Amém.


Comentários


Logo da Casa Brasileira de Livros

Endereço comercial:
Rua Dr. João Pessoa, 605
Bairro São João — CEP: 96640-000
Rio Pardo (RS), Brasil

CNPJ: 37.575.885/0001-67

+55 (51) 9 9559-7518

Forma de pagamento: pix e cartão de crédito

Envios em até 2 dias úteis após confirmação do pagamento

Política de troca, devolução e reembolso: até 07 dias corridos

  • Facebook
  • Instagram
  • Youtube
bottom of page