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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: LUCAS BRITO — CATEGORIA CONTO

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SOBRE O AUTOR


José Lucas Brito Souza é natural de Quixeré/CE. Formado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), com especialização em Gestão Social: Políticas Públicas, Redes e Defesa de Direitos pela UNOPAR Polo Limoeiro do Norte/CE . Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH) pela mesma UERN onde se formou. Nas horas vagas, músico e escritor de contos, crônicas, romance e, aqui e acolá, alguma poesia. Publicou seu primeiro livro intitulado "Coisas da noite: o Quixeré assombrado e suas lendas populares" em 2019, no qual conta a respeito das antigas lendas e contos de assombração da cultura popular de sua terra natal. Desde então, tem se dedicado à vida acadêmica e à escrita literária. Alguns de seus contos já foram selecionados e publicados em revistas e antologias. Em 2020, publicou “Contos Insólitos: Homem-Sombra e outras histórias fantásticas”, uma coletânea com dez contos autorais de terror e mistério. Em 2022, saiu “Perturbações Noturnas e outros contos”, primeiro trabalho publicado pela Matos Editora, com contos inéditos. Em 2023, publicou uma segunda edição de Coisas da Noite, reformulada e com novas histórias. Seus planos literários futuros incluem um terceiro livro de contos e um romance já concluído, bem como continuar com o desenvolvimento de um universo próprio de ficção científica e especulativa, batizado de Crônicas Artropianas.



O CONTO SEMIFINALISTA


Tela Mundi


Os lábios de Vitória se mexiam de forma monótona, num abrir e fechar que parecia automático. Ou, pelo menos, era isso que Allan achava enquanto ouvia os reclames da namorada sobre seu dia aporrinhado. Fazia uma meia-hora que os dois estavam ali. Allan esticou os olhos para o celular e roçou de leve a tela com a ponta dos dedos. O visor se acendeu marcando 14h45. A tarde estava quente, o ar-condicionado lutava com todas as forças para resfriar o interior da padaria onde o entra-e-sai de fregueses só excitava ainda mais as moléculas no ar, aumentando o calor. 

Vitória continuava falando, agora reclamando dos prazos apertados. Allan murmurava monossílabos de vez em quando: "Aham", "sei", "vixe...", tentando se mostrar interessado no desabafo da companheira. No entanto, seu olhar se desviava novamente para o celular, agora não mais para ver a hora. Desbloqueou a tela e pôs-se a rolar o feed do Instagram procurando não sabia bem o quê. Anúncios comerciais, fotos de garotas conhecidas ou não desfilando na praia ou na academia, manchetes de perfis de notícias, um ou outro vídeo de gatos engraçados. Perdeu a noção do tempo enquanto o polegar deslizava pela tela cada vez mais rápido, a timeline voando diante dos olhos. Vitória não parava, concentrada demais em si mesma para perceber que Allan não monossibilava mais. As mãos dela gesticulavam como se fossem atores numa peça teatral invisível, dançando no ar diante da plateia. 

Até que, em certo momento, as mãos pararam. "Ei, você tá me ouvindo?", perguntou a Allan, que não desgrudou os olhos do telefone. "Sim, Vih, tô ouvindo. Que situação essa, hein?", disse o outro de súbito, esperando que a resposta colasse. Vitória parou de falar e suspirou. Levou à boca um pedaço do salgado pedido minutos antes e bebericou um gole do café ainda quente. De maneira mecânica, voltou sua atenção agora para seu celular que repousava ao lado da bolsa. Allan, enquanto isso, deu uma rápida olhadela para Vitória para ter certeza que todo o desabafo havia acabado. O casal ficou em silêncio, cabeças baixas e olhos focados em seus respectivos telefones. 

Enquanto isso, na mesa posta, os cafés esfriavam.



Deixaram a padaria quinze minutos depois. Para mais tarde, Allan tinha pensado num programa clássico de casal: um filme na casa dele acompanhado de pipoca e refrigerante. Ainda não dissera nada à Vitória, mas lançou a proposta logo depois dos primeiros passos na calçada:  

— Hoje não vai dar, tenho que fazer serão e terminar esses relatórios senão a chata da Zilene vai me dar bronca na frente de todo mundo no escritório. Desculpa, fica para a próxima. Tá bem? – respondeu Vitória, sem olhar para o namorado enquanto digitava algo no grupo de Whatsapp dos colegas de trabalho.

Allan deu de ombros. “Tudo bem, eu entendo...”, respondeu. Pensou em protestar, mas não o fez. O casal continuou a caminhar, Vitória segurando numa das mãos a mão de Allan e na outra o telefone. Ela era uma mulher ocupada, enquanto ele estava de férias da faculdade. Não eram exatamente opostos um do outro, apenas diferentes tentando fazer uma relação dar certo. Completaram um ano e quatro meses de um namoro atribulado de altos e baixos, estilo montanha russa, o oposto desses que se vê nas redes sociais que mais parecem comercial antigo de margarina com uma família feliz em manhãs de domingo ensolaradas. Não: ali, a monotonia (ainda) não tinha vez e a emoção reinava dando asas à fantasia. Quem sabe fosse essa a razão de os dois ainda estarem juntos quando tantos outros casais raramente duravam todo esse tempo. 

Foi assim até há pouco tempo. Porém, ultimamente, as coisas pareciam um tanto quanto ligadas no piloto automático. Não que fosse culpa exclusiva de um ou de outro, ou dos dois. Era a realidade se impondo à fantasia aos poucos, corroendo como a cárie a um dente antes branco. E ali, poucos minutos depois de saírem da padaria, a realidade veio e bateu com força.

Começou com um burburinho de vozes do outro lado da calçada. Dois homens discutiam exaltados, discussão de um botar o dedo na cara do outro. Da distância onde estavam não dava para entender direito o que diziam, mas logo as palavras "Dinheiro"; "caloteiro" "canalha" e "mentiroso" se destacaram no meio da zoada. Alguns curiosos foram se achegando para ver melhor o que se passava. Não demorou muita coisa para o de pavio mais curto resolver falar com as mãos. Logo, os dois homens se atracavam pelo chão como dois moleques da pré-escola depois de um chamar a mãe do outro de gorda. Mais e mais curiosos aumentaram e, ao invés de alguém tentar apartar a pancadaria gratuita, o que se viu foi uma multidão de cinegrafistas amadores apontando seus celulares para os dois brigões.

De onde estava Vitória levou as mãos à boca, surpresa com o desenrolar súbito e brutal de uma discussão aparentemente banal. Só mesmo uma perturbação inesperada no mundo real para desgrudar seus olhos da tela do smartphone. Ia comentar algo com Allan quando notou que o namorado, assim como os outros, também já esticara o braço e filmava a briga à distância. 

— Deixe disso, Allan! Anda, vamos embora que não quero ficar no meio dessa confusão toda – ralhou Vitória, puxando o braço de Allan com força e o tirando dali.

 — Mas por que será que aqueles dois estão brigando desse jeito? Só pode ser por duas coisas: dinheiro ou mulher – disse Allan, ainda tentando capturar na tela o duelo alheio.

— Não sei e não quero saber. Anda, vamos logo. Me deixa lá no escritório, por favor? – pediu Vitória, alterando suavemente sua voz para um tom manhoso.

O casal chegou até onde a moto de Allan estava estacionada. Enquanto dava partida, ele lançou um olhar derradeiro para o local da briga. Entretanto, para sua surpresa e decepção, viu que as pessoas já se afastavam e não havia mais nenhum sinal dos dois lutadores. Nunca mais na vida saberia qual dos dois saiu vencedor...



O cheiro de cigarro flutuando pela sala era enjoativo. No entanto, naquela noite, Allan estava mais tolerante em relação ao vício de Alex. Allan morava com ele há alguns anos desde o divórcio conturbado com sua mãe, Lucinda. Desde pequeno sempre fora mais afeito ao seu velho, o que deixava Lucinda meio cabreira. Não que não gostasse da mãe, mas ele sentia que, com Alex, tinha mais liberdade.

Era realmente disso que Allan estava a fim: uma pequena dose de liberdade cairia bem para espantar o tédio. Andava de um lado a outro bisbilhotando as novas mensagens que chegavam no grupo dos colegas da faculdade. Como ele, todos ali pareciam meio entediados naquela noite. Em certo momento, alguém sugerira irem a um barzinho no centro. Boa ideia: nada como uns drinks, música sertaneja romântica e a companhia de gente conhecida para agitar uma noite monótona.

Tornou a passar pela sala rumo ao quarto para trocar de roupa, mas parou ao ouvir a voz do pai:

— Vai sair, Allan? – perguntou Alex, de cigarro na mão e sentado em frente à TV no canal favorito de programas policiais. O celular ao lado não dava sinal de vida: Alex já o substituíra pela tela grande e pela vida real que ali se mostrava sem filtros. 

— Vou, pai, com uns amigos. Vamos em um barzinho – respondeu.

— Hum, tá certo. Só tenha cuidado, ouviu? 

— Pode deixar.

— A Vitória vai também?

Allan não respondeu, já estava quase no quarto. Na verdade, não havia se lembrado de convidar Vitória para a noitada. Poderia ter ligado, mas não ligou. Afinal, os dois estavam acostumados a se verem todo santo dia. O que seriam algumas poucas horas de distância?

Naquela noite, ele só queria mesmo um pouco de liberdade.



Aquela já deveria ser a terceira cerveja que Allan tomava quando o grupo de sertanejo começou a tocar no palco do barzinho. A boa notícia era que ele era forte para o álcool, de modo que ainda não sentira os efeitos da bebida dançando pelo cérebro. Iria precisar de mais algumas doses para que saísse de lá alegre e cambaleante, embora não fosse esse o verdadeiro propósito da noitada. Para os outros poderia até ser, mas não para ele. 

Em meio a um gole e outro a conversa fluía despretensiosa, com cada um dos amigos contando seus planos nas férias. Nem todos estavam presentes: alguns já tinham viajado para outras cidades; outros simplesmente deram alguma desculpa qualquer para não comparecer. Mas os poucos que foram valiam pelos demais. Apesar de estar curtindo, Allan sentiu-se um pouco deslocado no assunto. Dali, tinha a impressão que era o único que não tinha muita novidade para contar. As férias se arrastavam de noite e de dia. Passava a maior parte do tempo em casa na companhia do pai; em se tratando de trabalho, era desempregado e se contentava com os estudos até o momento. Por sorte, Alex pagava as contas da casa e, pelo menos até agora, não enchia o saco do filho para que este fizesse outra coisa além da faculdade. E Allan, de sua parte, retribuía ao não reclamar do tabagismo do pai.

A música parou e foi seguida do som de aplausos. Quando começaram os primeiros acordes da próxima música, imediatamente, apontaram-se as câmeras para o palco. Todos ali acompanharam e cantaram alegres enquanto registravam o momento. Mas Allan, ao contrário dos demais ao redor, não tirou o telefone do bolso. Levou o copo à boca e tomou mais um gole. Pelo menos uma vez sentiu necessidade de enxergar o presente com seus próprios olhos, sem precisar se esconder atrás de uma tela.


*


 Não viu que horas eram quando abriu a porta de casa. Tudo estava às escuras, a televisão desligada e o pai há muito que roncava no quarto. Apenas uma luz acesa no corredor alumiava algumas partes, o que ajudava Allan a não tropeçar em algum móvel no caminho para o quarto. 

Jogou-se na cama. O corpo pesado e a cabeça rodando. Pegou o celular e viu que era três e quinze da manhã. Nada mal para uma noitada marcada de última hora, pensou. Mas viu outra coisa além do horário: as muitas chamadas perdidas e mensagens de texto e de áudio no privado do Whatsapp deixadas por Vitória. “Merda!”, resmungou, afundando a cabeça no travesseiro. Pensou que deveria tê-la chamado para sair também, mas, pensando um pouco melhor, caso tivesse feito, não teria se divertido o tanto que se divertiu. Provavelmente, a contabilista lhe botaria na rédea curta, limitando o quanto de álcool ele botaria para dentro. E ele deixaria de bom grado pois sabia que, nessas horas, nunca tinha muito autocontrole para a bebida. 

Apertou um botão e começou a ouvir os áudios um atrás do outro. A voz dela soava irritante àquele horário, assim como qualquer outra coisa soava irritante às 3h da manhã. Acelerou para a velocidade de 1,5x, depois para 2x. Tinha pressa para poder cair no sono logo. Quando enfim as mensagens terminaram, ele até pensou em responder, mas desistiu da ideia. 

Fechou os olhos e capotou. 



O quarto bem arrumado ressoava com a claridade matutina que ia invadindo aos poucos, clareando cada canto adormecido pela noite que se despedia preguiçosa. Era seis e vinte da manhã e Vitória já estava de pé, lutando para espantar o sono depois de um banho frio. Sentada em frente ao espelho da penteadeira decorada com flores artificiais, nem tinha terminado de secar o cabelo quando ouviu o toque de notificação no celular ao lado. Pegou-o e viu que era uma mensagem de áudio de Zilene, sua chefe: “Vitória, quero os relatórios na minha mesa mais tarde, ouviu? A gente não pode atrasar mais, já perdemos alguns prazos por conta disso. Conto com você. Não me decepcione”.

Repôs o telefone em seu lugar. “Af!”, balbuciou com raiva. Naquele momento, achava que era a única que recebia ordens da chefia tão cedo, mas sabia que não era verdade. No grupo dos funcionários, outras colegas já haviam reclamado do péssimo hábito que Zilene tinha de falar sobre coisas do trabalho em horários que não eram de trabalho. Pensou e chegou à conclusão que todos os chefes do mundo eram um bando de Zilenes, tratando seus funcionários e colaboradores como simples peças de uma engrenagem capital maior.

Terminava de se arrumar quando o celular vibrou novamente. Dessa vez, era uma mensagem de Allan pedindo desculpas por ter ficado offline a noite inteira e convidando para os dois se verem mais tarde na padaria, no mesmo horário combinado de sempre. Ela respondeu com um “ok”, seco e limpo, em letras minúsculas. Esperava que o namorado, ao ler a resposta, tomasse consciência e percebesse que pisara feio na bola. Mais que isso: esperava que a simplicidade dura da mensagem o torturasse um pouquinho durante esse tempo.

 Terminou de se arrumar, enfiou o celular no bolso e foi tomar café. Teria um dia cheio pela frente.


*


A padaria continuava a mesma de sempre: cheiro bom, movimento de fregueses, calor e ar-condicionado insuficiente. Todavia, dessa vez, não havia comida sobre a mesa de Allan e Vitória, nem mesmo um cafezinho. O celular dela repousava ao lado do cardápio, intocado; o dele, guardado dentro do bolso da calça jeans rasgada ao estilo grunge. Se fosse para tomar um sermão da garota, pensou, que fosse ao menos pessoalmente, cara a cara, olho no olho. Nessas horas, nem mesmo a virtualidade poderia salvá-lo do mundo de carne e osso. Vitória foi direto ao ponto:

— Você sumiu ontem à noite, Allan. Fiquei preocupada, liguei, mandei mensagem e nada de você responder. Pensei que tinha acontecido alguma coisa, mas, pelo jeito, você se divertiu bem ontem, não foi? Daqui eu sinto seu bafo – disse Vitória, franzindo o cenho.

— Foi uma saída de última hora com uns colegas do curso para um barzinho. Alguém de repente teve a ideia, sugeriu no grupo e os outros toparam. Foi mal, eu devia ter te avisado que ia sair... – respondeu Allan, lutando para não dar tanta bandeira com a ressaca. Sentia a cabeça pulsando de dor e as palavras duras de Vitória, somadas ao barulho em volta, eram como lâminas perfurando seus tímpanos.  

— O pior de tudo não foi nem você não ter avisado nada para mim, mas foi ter enchido a cara. Já se olhou no espelho, Allan? A sua cara tá péssima!  

— Eu já pedi desculpas, tá bom? Não vai mais acontecer, prometo – disse Allan, emburrado. – Só queria me divertir um pouco. A gente podia ter passado um tempo juntos, se lembra que te convidei para a gente ver um filme em casa? Mas você disse que não podia por causa do trabalho? Eu não queria passar a noite sozinho no meu quarto sem fazer nada...

— Então quer dizer que a culpa é minha agora? 

— Eu não falei isso, Vih...

— Você não sabe o que eu estou passando no escritório, na tonelada de trabalho que tenho para entregar. E, para piorar, hoje bem cedo a chata da Zilene me passou uma mensagem me cobrando uns malditos relatórios. Ainda não eram nem seis e meia da manhã. Dá para acreditar?! – disse Vitória, levantando a voz.

— Você está levando a coisa para o lado pessoal. Eu me importo com você sim e você sabe disso, poxa!

— Mas não parece, Allan. Ultimamente, parece que estamos cada vez mais distantes...

— É que você tá sempre ocupada! Não tem mais nem um tempinho pra gente, Vitória, e também...

Allan ia continuar, mas parou quando virou o rosto e percebeu, na mesa ao lado, um homem filmando a discussão dos dois com o celular.  

— Ei, você, para de filmar! Tá ouvindo? – disse, levantando da mesa com raiva e indo em direção ao outro.

— Allan, se acalma!

Fingiu não escutar Vitória e tentou tomar o aparelho das mãos do vizinho de mesa à força, mas este não deixou. 

— Allan, para com isso!! 

Seguiu-se uma luta entre Allan e o desconhecido pela posse do celular em plena padaria. Os outros fregueses pararam para assistir à disputa entre os dois homens, com alguns torcendo para ver qual deles ganharia. A moça do caixa gritava desesperada para que parassem com a baixaria gratuita. Allan, transtornado, xingava o outro sem parar enquanto tentava a todo custo arrancar o celular. Por fim, dois homens apareceram e apartaram os brigões. 

Quase ao mesmo tempo após o fim do conflito, o som alto e seco de uma batida foi ouvido do lado de fora da padaria, seguido do grito estridente de um pedestre. Houve corre-corre e mais gritos. Allan, ao olhar de volta para sua mesa, não encontrou Vitoria. Ao sair do estabelecimento para procura-la, passou no meio da pequena multidão que se reuniu para ver o que acabou se revelando um acidente: um carro atropelara um pedestre desavisado, deixando-o caído no chão, desmaiado, vertendo sangue de um grande corte na cabeça. 

Allan, ao olhar mais perto ao passar na frente dos outros, entrou em choque quando viu Vitória ali estendida, inconsciente. Ao lado, o celular com a tela rachada brilhava entre as pedrinhas do asfalto.



Allan detestava o cheiro de hospital, cheiro de éter e doença. Fazia lembrar da infância, da vez em que teve de ficar internado para tratar de uma pneumonia. Desde então, não gostava de entrar em hospitais ou mesmo numa clínica sequer. Mas, naquele momento, fez um esforço para deixar o egoísmo de lado por ela: sua amada Vih, deitada naquele leito, um acesso perfurando a pele branca do braço em busca de uma veia, um curativo enorme no alto da testa cobrindo os pontos que fechavam a ferida. Por sorte, a batida não teve maiores consequências físicas além do corte na cabeça: nenhum osso quebrado ou lesão mais séria. Todavia, o médico responsável alertou que, por conta da pancada, ela poderia ter pequenos episódios de desorientação e amnésia, mas que sua mente voltaria a se lembrar das coisas com o correr do tempo. Por enquanto, ela ficaria em observação e depois seria dado alta.

Nesse meio tempo, familiares e amigos, inevitavelmente, ficaram sabendo do ocorrido. As visitas não tardaram a chegar, assim como os presentes e votos de uma recuperação rápida. Ela se lembrou da maioria dos visitantes, mas com alguns teve mais dificuldade. A medida que os outros entravam e saíam do quarto, Allan permanecia. Em sua mente, se julgava culpado pelo acontecido com Vitória. Se não tivesse feito toda aquela cena na padaria, pensava, provavelmente ela não teria saído tão aborrecida e teria prestado mais atenção ao atravessar a rua. 

Vitória, por outro lado, já nem lembrava mais tanto do acidente, as imagens estavam embaçadas em seu cérebro. No entanto, conhecia perfeitamente aquele homem ali ao lado de seu leito, aquele rosto preocupado, remoído pelo remorso. Falou, contraindo os músculos faciais doloridos num esforço para sorrir:

— Ei, vai pra casa. Eu estou bem, não se preocupe.

— Não, tudo bem. Vitória, me desculpe, eu não devia ter brigado daquele jeito lá na padaria – respondeu Allan, comovido.

— Esquece, já passou. Eu também já perdi a cabeça algumas vezes...

Enquanto os dois conversavam, o celular de Vitória na mesinha ao lado tocou. Na tela, o nome Zilene Chefa aparecia entre as rachaduras da película.  

— O que é isso? – perguntou, segurando curiosa aquele estranho aparelho vibrante.

— É o celular – respondeu Allan, pegando gentilmente o aparelho das mãos de Vitória. Apertou um botão e o desligou. Vitória disse: 

— Como funciona? Você me ensina a usar?

— Ensino sim, mas isso pode esperar. Descanse agora – disse Allan. 

Havia um ligeiro ar de preocupação na voz. Se dependesse dele, Vitória ficaria sem o maldito aparelho o resto da vida. Ela e todo mundo. De agora em diante, toda vez que olhasse para o celular, lembraria do acidente que quase custou a vida da namorada. Disfarçou os pensamentos e deu um beijo suave na cabeça dela temporariamente amnésica.


*


Em casa à noite, tentou tirar da cabeça a preocupação com a namorada internada. Sabia que Vih ficaria bem; quanto a ele, não tinha muita certeza. Passou perto da sala e tudo aparentemente estava como deveria estar: Alex sentado em frente à TV ligada. Porém, não demorou a perceber algo de novo: seu pai, ao invés de estar com os olhos grudados na tela grande, olhava distraído para a tela pequena do celular que segurava em frente ao rosto. Não prestava mais atenção às notícias do telejornal que passava antes do programa policial. Numa delas – Allan reparou, dividindo sua atenção entre o pai e seu novo aparelho e o jornal – um repórter apresentava dados recentes sobre as chances de acontecer uma grande tempestade solar, enfatizando o quanto o evento poderia ser desastroso para a Internet, a telefonia, a rede elétrica e praticamente toda a infraestrutura tecnológica atual. A voz, os gestos e a expressão do informante davam realmente um tom apocalíptico à notícia. “Só com um negócio desses para fazer ele largar o celular”, pensou, olhando para Alex.

A matéria terminou. Allan, voltando a atenção para Alex, disse:

 — Até você, pai?

— Oi, filho, disse alguma coisa?

— Nada não, esquece...

Deixou o pai e rumou para o quarto. Estava de saco cheio celulares e de previsões apocalípticas por hoje.



No dia seguinte, Allan levantou mais tarde. O despertador do celular não havia tocado. Estranho: se lembrava perfeitamente de ter programado na noite anterior. Foi ao banheiro satisfazer as necessidades matinais e tomar um banho. Apertou o interruptor: não tinha energia. Duplamente estranho. Sem outra alternativa, tomou banho no escuro.

Quando retornou ao quarto, pegou o telefone em cima na cômoda: sem sinal de conexão. Caminhou até a janela e a abriu, vendo a cidade lá fora. Parecia um tanto silenciosa, como se ainda dormisse. Olhou o céu: era o mesmo céu de sempre, azul com manchas brancas. Sentiu um cheiro esquisito: cheiro de coisa metálica queimada. Virando a cabeça, viu fios de fumaça saindo de um transformador no alto de um poste do outro lado da rua. Reparou que ele não era o único: todos os postes pareciam ter pegado fogo ao mesmo tempo. Triplamente estranho. “O defeito foi mesmo grave, tomara que consertem logo”, pensou.

Terminou de se arrumar. Antes de ir tomar café checou novamente o celular e constatou que o mesmo continuava sem sinal. Nesse momento, lembrou-se do pensamento que teve quando desejou que Vitória e todo mundo ficasse sem a praga do celular em suas vidas. Parecia que seu sonho tinha se realizado. 

A grande questão era saber quanto tempo levaria para o sonho se tornar pesadelo.

 



 


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