PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: LUIZ FERNANDO DE OLIVEIRA — CATEGORIA CONTO
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- 13 de ago.
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SOBRE O AUTOR
Luiz Fernando de Oliveira é brasileiro, nascido e residente na cidade de Lavras, Minas Gerais. Luiz é Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Mestre em Educação por esta mesma Instituição e Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O autor é professor do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) e da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Desenvolve pesquisas no campo educativo-educacional, sobretudo ligadas à Sociologia da Educação e ao Cinema e Educação. Luiz Fernando é autor de contos, crônicas, poesias, ensaios e artigos literários e acadêmicos, publicados em livros e em veículos diversos, impressos e/ou digitais. Seguem as informações de acesso às suas redes sociais:
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O CONTO SEMIFINALISTA
DRUMMOND TINHA RAZÃO
Os dois se casaram e viveram felizes por muitos e muitos anos (assim terminam as lendas infantis. Por que não dizem “para sempre”? Será que depois de “muitos e muitos anos” eles se separaram?)
Frei Betto (da prisão), em carta de 30/08/1970, endereçada a Liana, Marlene e Tunico
***
... tem muita história que termina falando que “foram felizes para sempre”, né verdade? Mas se a história termina assim, como a gente sabe se foi pra sempre mesmo? Ou foi pra sempre nada, ou então sempre é um tempo tão pequenininho que acaba com os três pontinhos depois da palavra sempre.
Trecho de carta de uma garota de 11 anos, escrita do hospital (para seu namoradinho?) – essa menina morreu de leucemia
***
Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar
Que tudo era p’ra sempre
Sem saber
Que o pr’a sempre
Sempre acaba?
Renato Russo, canção “Por enquanto”
I. A flor
Difícil descrever o despertar daquele sonho e os sentimentos que ele provocou em Sussu.
Aos 70 anos, Açucena, professora de Língua e Literatura Portuguesa, aposentada e distante dos ex-alunos, ainda era implicada com seu apelido. “Vá lá que é bonitinho ser chamada de Sussu, mas meu nome não tem nenhuma letra S, então, de que inferno saíram os três que enfiaram no meu apelido?”, brincava.
A moçada deixava bilhetinhos em sua mesa, protegidos do vento por pesos de papel bem doces: balas de coco, caramelos, bombons...
D. Sussu, o terceirão C te ama. Mais que o A, o B e o D, hein!
Ass: P... ão
Sussuzinha, anjo, tira o Camões da prova, pelo amor de Deus!
Ass: L... zinha
Havia variações:
Tia Suçú, na prova, se a senhora não cobrar as figuras parnasianas de linguagem, a turma vai te dar um presente.
Ass: alguém que te adora
Çuçú tenho nada pra dizer não mas não leva a mal não mais num entendi nada não desse padre Vieira aí não açinado J...
Ssussuzona do meu coração! Só queria te dizer isso.
Bêjo da sua A... nanda
Os bilhetes eram de gratidão, inofensivamente engraçados, nem sempre carinhosos:
Açucena, você é vagabunda. Eu te odeio. Bem feito, Deus te castigou com o útero seco. Ou o doido do seu marido que é inutilizado? O povo fala isso, piranha cretina!
Bilhetes raivosos de estudantes eram raros, violento assim foi o único em toda a carreira da professora, e não é de se estranhar seu anonimato – que não impediu que a sua autora fosse descoberta e convidada a pedir transferência da escola. “Dedaram a M... V..., bem feito!”, comentavam. “A culpa é desses pais fofoqueiros!”, pensou a professora, amenizando a situação. Recados como este valiam mais a pena:
Senhora Çussu, ainda bem que existe a palavra saudade na nossa língua; ela dói, mas só ela explica a falta que vai fazer para mim. Boa aposentadoria.
Igualmente anônimo (quem o escreveu não quis parecer puxa-saco?), o bilhete não se deixou levar pelo vento por causa de uma corujinha de biscuit que o segurava, completando o presente de despedida.
“Lasquem-se a ortografia e a gramática, viva a língua viva!”, ela se consolava, “escrito de um jeito ou de outros, eu fui a Sussu de muito moleque e de muita moleca”. Só a intrigava o fato de tantas possibilidades de escrita virem do nome de uma mesma flor. “Ela teria tantas cores quantas são as formas de escrever errado o seu nome?”
– “Sussu” é a forma correta? A vida inteira eu ensinei a escrever corretamente, tentei, ao menos. Mas eu me sinto culpada de ter construído uma arapuca para os meus meninos, igualzinha àquela na qual caí feito codorninha besta. Ensinei um certo que alguém inventou que é certo, me convenceu e me fez convencer muita gente, você entende, Celeste?
– Não, don Sucena.
– Deixa pra lá... Posso te contar um sonho que eu tive?
II. Mulheres
Estranho dizer que Celeste era a sua cuidadora; Açucena não se sentia incapaz a ponto de precisar de uma. Ela se lembrava com exatidão do dia em que a menina nasceu, o que não a permitia dizer que seu carinho fosse materno. Era um sentimento intermediário, difícil de nomear.
– Alcina, meu amor, você, com essa barriga! Trabalhando ainda!
– Dona Sussu, se eu num trabaio o neném come o quê?
Moça pobre, dessas de quem até a pobreza sente vergonha, Alcina era sozinha no mundo: sem pai, sem mãe, ninguém. Vivia em uma casa abandonada na Rua do C..., lugar onde até a miséria morria de fome. Na casa não havia energia elétrica, esgoto, água encanada. O chão de terra batida combinava com a cor dos tijolos nas paredes sem reboco, que não caíam sabe-se lá como, e que mal sustentavam um teto que generosamente deixava-se penetrar pelo sol e pela chuva. O alívio da mulher era saber que não precisava ter onde cair morta. “Morreu, já era”, dizia. Que fizessem com o corpo dela o que bem entendessem; nada em morte seria pior que tudo o que ela viveu. Ganhava o pão murcho de cada dia fazendo faxinas, e foi assim que ela entrou na vida de Açucena. Trabalhando há anos como diarista na casa da professora, um dia apareceu embuchada de um pobre-perdido-sabe-se-lá-quem, e quando a menina nasceu, foi a patroa que sugeriu o nome:
– Põe “Celeste”, é tão bonito. Significa que ela aparece no céu.
– Pra quem vive no inferno a ideia é boa, dona Sussu.
Ainda jovem, mas encurvada pelo peso dos anos que já chegam velhos para os pobres, Alcina ainda alimentava a esperança de que Celeste sofresse menos que ela. Até que Açucena a ajudou com as questões burocráticas de um processo de aposentadoria por invalidez: a moça se arrastava, tudo lhe doía.
– Agora, com esse dinheirinho que você vai receber do governo, você vai poder parar de trabalhar. Isso dá pra você e a Celeste viverem um tantinho melhor, e eu também vou ajudar vocês. Só fico triste de ter perdido a minha diarista querida.
– Nunca! Pra senhora eu continuo e cobro nada nem!
Cumpriu sua palavra. Continuou como diarista na casa de Açucena e só. O trabalho ali era menos cansativo. Celeste ficava num canto, brincando, enquanto a mãe trabalhava. Isso durou quinze anos, então a morte veio, e até que demorou a chegar:
– Celeste, olha só: se você quiser, pode morar aqui. Você continua estudando, depois procura um emprego, mas a casa é sua também, viu?
Emocionada, a menina aceitou e foi morar num quarto que sobrava no apartamento de Açucena, situado no sétimo de andar de um edifício de padrão social médio, pago com dinheiro suado, em anos de financiamento. A moça estudou até os dezoito anos e começou a trabalhar como manicure. Ela atendia suas clientes sem precisar sair de casa, o que era bom, pois assim cuidava de Açucena. Se ela também não alimentava por aquela senhora um amor de filha, o tratamento “don Sucena” satisfazia a necessidade de nomear aquele sentimento inédito e inexplicável para ambas. As atenções da jovem sempre foram necessárias, sobretudo a partir do triste momento em que as condições não permitiram mais que o Seu Cidinho continuasse em casa.
Foi a segunda morte de Sussu. De fato, ela já havia morrido uma vez.
III. Um botão se abre
Açucena era uma flor, filha única de um casal de condições financeiras razoáveis: seu pai era bancário e sua mãe costurava para fora. Alzira, a mãe, teve clientes da alta roda, porém, ao perder Amadeu, o marido, vitimado por um derrame cerebral ainda na casa dos 20 e poucos anos, precisou deixar os estudos junto a grandes costureiras para se dedicar integralmente aos cuidados com a filha, ainda criança.
Mãe e filha levaram uma vida sem maiores confortos e sem grandes faltas. A menina, subsidiada por bolsas, pôde estudar em uma escola particular. Ao lado do seu crescimento intelectual, viu o seu corpo embelezar-se a cada dia, junto com as faces sempre mais apessegadas e as palmas das mãos alisadas pela desobrigação do trabalho.
Seu caminhar diário rumo à escola colocou Alcides em seu caminho. Estudante de uma escola pública, o jovem veio de família simples, sem recursos que pudessem conferir a ele um início de vida regado com qualquer luxo. Ele teve uma irmã, que morreu ainda criança, sua mãe era do lar e seu pai o proprietário de uma pequena oficina mecânica. Um dia, ouvindo os passos de Açucena maltratarem gravetos e folhas secas na calçada, ele se deparou com uma beleza acessível. Surgiram bilhetes, vieram recados, confeitos, agradecimentos, olhares, timidez, faces febris, um beijo, abraços.
Namoraram.
Ela ingressou na faculdade e ele conseguiu emprego como auxiliar de um contador. Pensando no futuro, Cidinho fez um curso técnico em contabilidade, e em pouco tempo já era sócio do seu patrão. Açucena, quase com diploma em mãos, ganhava dinheiro com aulas particulares. “Podemos casar!”, planejavam. Formada, ela ingressaria para o corpo docente da escola onde estudara, e de lá só sairia aposentada.
Casaram-se.
Em poucos anos já tinham seu apartamento – “financiamos, mas a gente mora no que é nosso!” –, um Ford Corcel e uma Vespa, xodó de Cidinho. Tudo era um conto de fadas, ou quase: faltavam os filhos, e não por falta de tentativas. As noites de amor do casal eram tórridas, bem como as manhãs e as tardes dos fins de semana, feriados e férias. Na expectativa de gerarem uma criança, seus corpos iam à exaustão, o que não era ruim, pelo contrário, ela e ele adoravam. O bebê seria o complemento desse ardor, não fosse Açucena estéril.
IV. Não há diferença entre o perfume da morte e o aroma do sexo
Não houve luto. Dada a magnitude de sua frustração, Açucena lidou bem com a inelutável esterilidade. Mais do que conformada, poucos dias após ter recebido a notícia do médico ela voltou a sonhar, a replanejar um futuro que se mostrava promissor: na impossibilidade de ser mãe, ela aproveitou a chance de ser mulher. Só a incomodava o fato de Cidinho haver se apaixonado por ela e não por outra moça que o pudesse cumular de rebentos. O marido, ao menos aparentemente, superou a situação da mesma forma que a esposa. “Será que ele fingiria tão bem?”, a dúvida a martelava.
Sussu era uma jovem e realizada professora, Cidinho recebia um bom salário. Ela se sentia mal com os problemas que costumavam surgir na sala de aula, reclamações de pais incompreensivos, certos desaforos que ouvia de colegas; ele se aborrecia com muitas situações cotidianas no trabalho, ainda assim, a consciência de que ninguém vive no paraíso os fazia encarar com alegria cada manhã seguinte.
Entre as ilusões de uma vida sem problemas e o infortúnio da máxima desgraça, os dois formavam um casal como os que existem de fato, desses que gozam a utopia da realidade.
Em poucos anos os pais de Cidinho faleceram e a morte também impediu que dona Alzira continuasse sonhando em se tornar uma costureira renomada, de fama internacional, como brincava. Então era só o casal, o mundo concreto e o futuro.
Não, não, não, não, não: antes, o presente. Quando Celeste nasceu, o apartamento de Sussu e Cidinho fugia ao padrão das casas dos seus conhecidos: interior bem acabado, confortável, mobília razoavelmente elegante, sem falar que poucos casais podiam contar com uma fiel diarista como Alcina. Ela era tão eficiente que Sussu podia se dedicar integralmente à profissão-professora, e quando ficava em casa, lia, jogava, conversava, cochilava... Vivia um pouco como madame, um pouco como plebeia, sem a miséria desta e sem a arrogância daquela. A certo custo, a base de economias e muito controle, o casal até fazia viagens de finais de ano. O melhor: marido e mulher gostavam do prazer que seus corpos ofereciam um para a outra e vice-versa.
Amavam-se furiosamente, degustavam-se quase como nos primeiros dias. Na verdade, eram melhores agora na arte da mútua satisfação, pois os anos podem revelar aos casais cada segredo sensual que a inexperiência da juventude oculta.
V. Intimidade
O banheiro era o palco escorregadio e perfumado de cenas intensas. A cada banho algo inédito acontecia, novas regiões daqueles corpos eram exploradas em incursões reveladoras: pintas, pelos, dobras, manchas... as descobertas eram diárias. Ambos ardiam em desejo e desespero.
Suas horas de prazer emprestavam vigor aos momentos cotidianos de tédio.
Quando não acontecia no banho, era na cama que marido e mulher se refestelavam feito amantes de um amor sempre casual e com um renovado repertório de palavras e expressões singelas, agressivas – nessas horas os xingamentos não magoam e as ofensas soam elogiosas –, infantis, imperativas, poéticas, chulas, piegas, descontextualizadas, bestiais, santas e por aí, sempre por aí... Na hora do orgasmo, os dedos dela se flexionavam o quanto a pele e o ossos lhes permitia, em ardorosa luta contra a impenetrabilidade da matéria, traduzindo naquelas mínimas juntas uma sensualidade incomum, o que os levava ao mais delicioso flerte com a morte.
– Misericórdia! Mé que pode um negóço dêss! Será que que é cleps... cleps... quê? ... idra?! Pesqueiro? Donde? Flor... Floresta? Florida? Flórida... Pesgueiro? Pessegue... Nó! – perguntava-se Alcina, que adorava escutar atrás da porta, por curiosidade e para aprender novos chamamentos, no intuito de ao menos tentar repeti-los com os esfrangalhados com os quais dividia seu corpo e sua miséria.
Nos dias em que ficavam a sós, Sussu e Cidinho adoravam explorar suas zonas de prazer ao ar livre, na área de serviço aberta. A possibilidade de serem vistos os excitava ainda mais. O desejo dos dois era o de que meia dúzia de moleques se tocassem vendo aquelas cenas, ou de que maridos e esposas engolissem suas salivas de inveja vendo tanta alegria descompromissada.
Eram invejados, se não pelo desempenho entre os lençóis, ao menos pelo respeito que nutriam um pelo outro. Eram companheiros de uma amizade difícil de definir. O companheirismo seria para a eternidade, o desejo sofreria um duro golpe: 25 anos passados (como se fossem 25 dias), ainda belos e sexualmente vigorosos, até o ponto em que o tempo permitia, Alcides sofreu uma completa amputação em decorrência de um silencioso, raro, agressivo e incurável câncer peniano.
Ele foi ao mais profundo inferno. Aqui ela morreu pela primeira vez.
VI. Recordações de 1969 a 1971
Alcides adoeceu do corpo e da alma, aposentou-se por invalidez, e sua dor retirou da esposa o sagrado direito de sofrer. Os cuidados com o marido exigiam que ela permanecesse aparentemente alegre, forte. No lugar das lágrimas, choradas às escondidas, as rugas se tornaram o sinal visível da sua tristeza. Sorria apenas com os dentes, seus olhos perderam a luminosidade. Décadas se passaram em poucos meses.
O século 20 chegava ao fim, gordo de promessas. Açucena lia livro após livro. Quanto mais cruel melhor: ela se esquecia de si mesma ao conhecer as agruras alheias, reais ou fictícias. Mas não havia ficção mais desastrosa que sua vida.
Quando leu Das Catacumbas, de Frei Betto, ela se pôs a pensar sobre o que acontecia em sua vida entre 1969 e 1971, período em que o religioso belo-horizontino, da prisão, escrevia as cartas que comporiam o livro. Ela e Alcides eram jovens, estavam se casando. “O moço que Frei Betto era pelo menos tinha esperança. A minha...”
Nenhuma carta a tocou mais que a de 5 de outubro de 1971, endereçada à família do frade. Nela, Betto transcreveu o poema A noite dissolve os homens, que Drummond dedicou a Portinari em seu Sentimento do Mundo.
“Como eu ainda não li esse livro, meu Deus! Vou ler pra ontem e trabalhar com meus alunos...”
– Sussu.
– Oi, anjo.
– Cê tá triste?
– É que hoje faz três anos que a Alcina morreu. – Ela dava desculpas para o que sentia, buscando na memória ocorrências tristes: a morte do pai, da mãe, a doença de um colega da escola. Aquele não era aniversário de morte de Alcina. Confiando na desatenção do marido a toda e qualquer data, ela inventava coincidências que surtissem o efeito desejado: mascarar seu permanente sentimento de miséria.
– Eu desgracei sua vida.
– Bobagem, amorzinho. A gente vive bem do jeito que dá. Eu trabalho e cuido de você. Você é minha alegria.
– Mas nessa situação...
– Shhhh... Pode parar com isso.
– Já tem mais de cinco anos que eu não te dou prazer. Até podia... de outros jeitos, mas sinto tanta vergonha, não tenho vontade de nada.
– Anjo, você é mais homem que muito homem e me deu prazer enquanto pôde e enquanto eu quis. Tem muita mulher que durante a vida toda não sentiu metade do que a gente sentiu. Você engoliu o desejo de ser pai quando descobrimos minha esterilidade! Eu te frustrei primeiro, não por minha culpa, assim como a perda... né?..., não foi sua culpa, e você ainda me fez ver que o útero não faz uma mulher, que a mulher que eu sou não mora nos meus ovários nem lá – apontou com os dedos o meio das suas pernas.
Ela sabia deixar o marido tímido com a forma resoluta com a qual falava. Já que eles não podiam transar, que ele a presenteasse com o silêncio.
– Já tem mais de cinco anos que você não faz amor...
Ela o olhou, fez nele um afago e, no seu íntimo, conseguiu lhe dar razão. Porém, não ter feito amor nos últimos anos não significa que ela não tenha tentado saciar a fome do seu corpo de outras maneiras, com outros corpos.
– Vem cá, deixa eu ler pra você uma historinha que escrevi. Ela se chama “Sebastião e Ofélio”:
Sebastião tinha 327 anos quando morreu: quisera ele ter-se ido no raiar de seus primeiros dias, antes de todos os seus lutos.
Ofélio viu Sebastião nascer. Na verdade, ele ajudou a sua mãe, uma jumenta brava, a dar à luz o amigo que o acompanharia por toda a sua vida.
– Eita, filho de garanhão daquele tamanho, só podia custar pra nascer, esse bichão!
Foi o menino Ofélio quem o batizou, quem cuidou do burrinho recém-nascido, deu a ele bom leite em mamadeira de bico de látex, ensinou-lhe uma porção de coisas – quase todas. Diariamente Ofélio levava Sebastião com ele à escola, sem jamais montá-lo, mas caminhando a seu lado. Ambos se entendiam como irmãos, na reciprocidade de duas criancices amenas como as esperanças das pessoas jovens. Caminhavam juntos, galgando morros e descendo ladeiras, comendo frutas roubadas de quintais alheios, amando o céu, não importasse a sua cor, se azul matizado por nuvens brancas ou cinza anunciando a chuva que alimenta o chão. Um levava o outro a todos os lugares, do mesmo modo como algumas pessoas levam suas malas e todas carregam as suas dores. Qual forma de viver não é doída?
Na sala de aula, Sebastião ficava ao lado do amigo, prestando atenção à professora; no recreio, desajeitado, pulava amarelinha com as outras crianças, que riam e riam de seu charme desengonçado. Ele acompanhou todas as fases da vida de Ofélio, fez-se cúmplice de seus amores, viu o menino-homem crescer, trabalhar, enrugar-se, curva-se sob o peso da vida, perder as forças e despedir-se do mundo.
Foi ele quem levou o falecido amigo de toda a vida ao cemitério, sobre uma carroça de madeira e tristeza.
Sebastião sobreviveu quase dois séculos sem o amigo, apreciando feno amargo, e com apenas uma mágoa: a de Ofélio não tê-lo ensinado a chorar.
Concluída a história, Sussu contemplou o marido e percebeu que narrava a amizade entre o burrinho e o garoto somente para si mesma.
VII. Liberdade de Cátedra
− Os suicidas tinham razão. – O diretor trazia nos olhos um misto de ódio e medo quando pronunciou essas palavras.
− Isso é Carlos Drummond de Andrade! Faz parte do conteúdo...
− Açucena, não! – Vários pais ligaram falando em “defesa do suicídio”, em “liberdade de se matar”. A dona da escola ficou... irada e ameaçou meu pescoço por causa desse seu poema...
− Augusto, esse poema não é meu, é do Drummond. – Ela adorava irritá-lo; seus ódios eram recíprocos.
− Você sabia que o Alfredo, do 2º B, você sabia que o pai dele enfiou uma bala na cabeça há muitos anos? Ah, claro que não! O menino chegou destruído em casa depois dessa sua aulinha de poesia de morte. Teve mãe que me procurou dizendo que já ia tirar a filha da escola, eu contornei a situação e disse que a senhora errou e que não faria mais isso, pelo amor de Deus!
− Pode deixar. A partir de hoje eu vou ensinar pra filhinha dela que a vida é linda. E o Alfredo do 2º B, deixa comigo: vou mostrar pra ele que ninguém morre...
− Trabalhe Drummond e quem você quiser, mas aquela porcaria de e agora José que amava João que amava Maria que amava a mãe... Esse troço de suicida, aqui, de jeito nenhum!
Enquanto isso, ela pensou sussurrando, não tão baixo que Augusto não pudesse escutar:
− ... se você cantasse... se você morresse... José não tem nada a ver com Raimundo e... Joaquim suicidou-se ... também, morte, suicídio... e Lili casou com J. Pinto Fernandes... – O olhar de Açucena estava baixo.
O diretor esbravejou e ameaçou por mais uns 15 minutos, contudo, Açucena não ouviu nada. Deixou na sala o seu corpo movido por reações automáticas e saiu com o seu pensamento. Viajou até a sua casa e deitou-se ao lado de Cidinho. Só ele importava.
− Desta vez você não vai ser demitida, agora, pensa que o meu emprego também fica a prêmio com esse lixo de poesia.
Ela se levantou, ainda pensando no marido, e saiu da sala, sem nada dizer ou prometer, nem com os olhos nem com gestos.
Uma terceira pessoa esteve o tempo todo ali, trêmula, calada: a coordenadora, dividida entre o monstro do desemprego e o desejo sincero de ajudar Açucena. Os monstros sempre vencem os duelos reais?
VIIIa. Encontros, histórias...
Açucena adorava ser professora, e adorava quase todos os seus alunos.
Seguir adiante tornou-se a sua meta. Onde chegaria, ela não fazia ideia. A sua única certeza era a de que sentia um amor devotado e por Cidinho, e isto a levava a caminhar. Com o esposo. Sem obrigações. Até com alguma alegria.
Aos 50 anos, o rosto de Açucena trazia impressas as marcas daquela devoção. Ainda assim, ela despertava desejos. As rugas diminuíram a sua beleza, de fato, mas não a fizeram feia; e mais: a dor em seus olhos e seu corpo relativamente conservado pela ausência de filhos emprestavam a ela algum charme.
Cidinho notou que a esposa ficava cada vez mais tempo na escola, e que voltava cansada para a casa, porém satisfeita. Mas ele nunca perguntou a ela se haviam aumentado as suas turmas ou se as reuniões se acumulavam. A nova rotina da mulher o confortava das suas incapacidades.
Os atrasos eram divididos com Antônio, professor de Educação Física, 25 anos, rosto de 19, também casado. Há muito Açucena notara os olhares do colega; um dia cedeu. Na primeira vez ela teve medo de se sentir culpada, mas veio outra, vieram outras.
Cidinho começou a apresentar novos problemas de saúde; debilitado, entregue à fraqueza do corpo e do espírito, ele mal se levantava da cama. Com a ajuda de Celeste, a esposa administrava os horários da medicação do marido, mantinha-o sempre limpo, cheiroso, com a barba feita. Fazia-se presente, contava-lhe histórias sorrindo para ele, como as mães para os seus bebês.
Fatigada da juventude de Antônio, Sussu começou a sair com Anacleto, sessentão charmoso e solteiro que morava em frente à escola e sempre a alvejava com olhares maliciosos. Ela gostava do que estava vivendo, e continuava sem sentir culpa. Sua leveza de consciência não provinha de uma desforra contra o seu destino, do tipo “Deus me colocou nessa merda, agora eu quero viver”. Não. Do mesmo modo, não era o fato de cuidar tão bem do marido que dava a ela a sensação de que tinha o direito de se extraviar do caminho da fidelidade. Tudo isso era muito abstrato. Ela não sentia culpa, só isso. O remorso era contrário à sua natureza.
Lembranças comprometidas, crises nervosas: Cidinho começou a desaparecer dentro de si, tragado como que por um rodamoinho interior; foi deixando de estar ali. Uma violenta força centrípeta o distanciava do mundo.
Quanto a Sussu, suas horas com Anacleto passaram a ser divididas com Andreísa, ex-aluna de seus primeiros anos como professora, moça machucada por uma série de abusos. Quase cansada de viver, reencontrou nos braços da antiga professora a mulher que nunca havia existido, exceto nos seus sonhos de criança. Muitos desses encontros aconteciam na casa de Açucena, quando Celeste não estava, já que Cidinho nem se levantava mais sem ajuda. Ambas experimentavam um prazer diverso, sem cobrança, sem porquês, sem necessidades outras, sem razão nem amor, com paz.
Trabalho na escola, fastio, cuidados com o marido, encontros com Anacleto, tardes com Andreísa, provas, trabalhos, exercícios, preparação de aulas, reuniões, cansaço, reencontros nostálgicos com Antônio, noites mal dormidas, tristeza sufocada, rugas escavando diariamente seu rosto...
− Celeste, dá mais não. – Disse aos prantos, abraçada com a moça. – Ele ainda tem força, acabou de me dar um tapa... Qualquer hora ele se mata, me mata...
− Tem jeito mais não, né, don Sussu?
Todo o choro represado em anos arrebentou as comportas.
VIIIb. ... e desencontros
Açucena fez o que pôde. No momento de maior agravo, ela contratou um enfermeiro particular. Rapaz bonito, simpático e cheio de músculos, ele permanecia quase integralmente na casa da professora, revezando-se entre os cuidados que a situação de Cidinho exigia e o calor noturno da cama de Celeste. Bastou uma troca de olhares para o desejo falar mais alto, e Açucena não se importava com a algazarra: Ájax era um ótimo profissional, e se Celeste conseguia mantê-lo sempre por perto, sem acréscimo de honorários, tanto melhor! Como complemento, ela passou a ter uma distração: ouvir os gemidos atrás da porta era como sentir, ao mesmo tempo, os beijos de Andreísa, a virilidade de Antônio, a safadeza de Anacleto e o amor do seu Cidinho.
Bateram-lhe à porta os seus 55 anos, embora suas rugas lhe acrescentassem outros tantos. Seus amores paralelos se foram: apaixonada por uma mulher mais jovem, Andreísa despediu-se agradecida; Anacleto reatou com uma antiga namorada; Antônio, com crise de consciência (ao menos foi esse o motivo que apresentou), falou sobre suas traições à esposa que, depois de perdoá-lo, exigiu-lhe uma renovação formal das bodas, novo juramento de fidelidade e amor eterno.
Certa noite, depois de ler para o marido (já alheio a quase tudo), Açucena se aproximou daquele rosto semivivo, respirou o ar que saía dos seus pulmões e se levantou. Despiu-se defronte ao espelho e se pôs a observar seus antigos atrativos. Ájax e Celeste davam o que tinham e o que não tinham no quarto próximo, esfomeados, ao passo que tudo em Açucena era cansaço. Varizes, musculatura e pele flácidas, raízes dos cabelos esbranquiçadas, uma touceira a ocultar-lhe o sexo, um completo desânimo.
Só restava a ela a devoção abnegada e fervorosa a Cidinho.
IX. Um mergulho na solidão
“Não existe nada mais desgraçado que isso que chamam de amor, essa aberração”, assim ela começou a pensar.
Depois de sete anos no asilo, pouco sobrou do que fora o seu Alcides, feito homenzinho minúsculo, pele e ossos, frágil como as pétalas secas que têm os livros velhos como túmulos. Não que isto fosse um problema, mas o casal nunca teve muitos amigos, até que passaram a ser, definitivamente, os dois e a indiferença do mundo. À exceção da esposa e de Celeste, nenhuma das outras pessoas se lembrava de Cidinho.
Enquanto Alcides perdia os movimentos, as Irmãs do asilo rezavam para que Deus se “lembrasse dele” – eufemismo para “já deu, leva embora” –, aborrecidas com o trabalho, do qual reclamavam em silêncio, por medo de punições da Madre-Superiora ou do próprio Pai. Pecar por palavras é mais grave que pecar em desejos e pensamento?
Ao receber as visitas diárias da esposa, Cidinho chorava de medo, implorando para que as Irmãs a retirassem dali, ou a chamava de mamãe, pedia seu colo, seu peito, seu abraço. Açucena não sabia qual das reações lhe doíam mais. Ela deixara de existir como mulher para a pessoa mais necessária, sua outra parte. A melhor parte. A única?
Certo dia, aproveitando a calma do marido, ela começou a passar afetuosamente a mão no quase nada que sobrara de seus cabelos, olhou nos seus olhos e disse:
− Amor, amanhã é meu último dia de aula. É, aposentei, sabia? Agora vou ficar mais tempo com você. Ai, Cidinho, eu sinto tanta saudade da gente!
O quarto era puro silêncio, as paredes transpiravam tristeza, os olhos de Açucena exalavam amargura, os de Cidinho eram vazios, perdidos no absoluto alheamento – melhor assim?
Durante a volta para a casa, naquele dia, ela se pôs a questionar a respeito de algumas decisões que havia tomado com Cidinho. Por que não adotaram um filho? Uma criança aliviaria a sua dor? Um cachorro, um gato, por que nunca quiseram ter? Não fosse a sua esterilidade, que cara seus filhos teriam? Que nomes teriam dado a eles?
Em casa, noitinha estendida sobre todas as almas, ouviu Celeste e mais alguém em um momento de total entrega. Depois do que aprendera com Ájax, ela não dispensava quem a levasse ao céu um pouco a cada dia.
Pensativa, Açucena abriu a janela que dava para a rua e passou a noite e a madrugada a contemplar, insone, as luzes dos prédios, que aos poucos se apagavam ao som dos passos e dos motores. O ar fresco a provocar arrepios em sua pele, o mau-hálito de fome em sua boca e o cheiro dos cigarros completavam a experiência vivida pela Açucena daquela noite, saudosa da flor que havia sido em tempos distantes.
X. A volta
− Demorou, meu amor!
− Oi, Cidinho! Demorei nada, bem. O horário da visita é esse mesmo.
Nada era mais doloroso que os lapsos de lucidez de Alcides. Ele chorava, pedia para ir embora e, em seguida, caía na risada, infantilizava-se, falava coisas desconexas. A realidade fugia-lhe novamente. Porém, o que mais corroía a alma da esposa eram as esperanças efêmeras que esses instantes traziam. Eram como bolas de sabão: multicoloridas, translúcidas, cheias de ar, de vida. E de brevidade.
− Ah, sim. Amor, hoje você vai me levar pra casa, não vai?
Açucena respondeu com os olhos carregados de lágrimas e um balançar desesperançado de cabeça.
− Aqui, deixa de ser boba. Eu tô bom. Vamos embora?
− Tem certeza? Vou avisar a Irmã e a gente vai. – Falou com o rosto iluminado.
Pouco depois, viram-se a caminho de casa, a pé, leves, com uma animação juvenil, sem malas nem bolsas. Ele nem mudou de roupa, saiu com o pijama do corpo e o chinelão de dedo que o fez tropeçar várias vezes nas calçadas e rir desses tropeços. “Ôpa, tem ouro aí!”, comentava às gargalhadas. Pararam numa padaria e comeram pão de sal com manteiga, “na chapa”, tomaram café com leite quentinho, depois pediram um saco de carolinas para mais tarde, depois dos afagos, do cochilo.
Fizeram projetos: viagens, troca de móveis, restauração do Corcel enferrujado, reforma no apartamento, pintura nova, novos canais de televisão, comer, engordar. A alegria era tanta que o câncer, a amputação do órgão, os anos sem prazer, o sofrimento rotineiro, nada mais existia.
Quando chegaram em frente ao prédio, Alcides chorou. Seu olhar era o de uma criança encantada com o moço do algodão doce colorido, “que saudade daquele sininho do moço!”, Açucena pensou, quase em voz alta. Entraram, para a surpresa do porteiro, que os cumprimentou custando a sorrir, chamaram o elevador e chegaram em casa. Agora é vida nova!
− Oi... Já voltou? Vou fazer um cafezinho, tá bom?
De costas, Açucena ouvia a voz que insistia em lhe falar: essa voz passava, a cada instante, de um tom rouco e velho, para outro, igualmente conhecido. Ela afeminava-se, rejuvenescia-se: era Celeste, ao mesmo tempo contente e preocupada com o sorriso que Açucena trazia no rosto, sorriso que aprofundava ainda mais as suas rugas, embora emprestasse a seus olhos a alegria daquela tarde em que trouxera o marido de volta, ainda que todo o caminho estivesse concentrado apenas dentro dos seus mais sinceros desejos.
XI. Paisagem da janela
− Céu.
− Oi, don Sussu.
− Vê aquela moça lá embaixo? Então... Ela é bonita. E rica.
− A vista da senhora é boa, viu? Cá de cima e não consigo perceber não.
− Na verdade, eu enxergo o mesmo que você, mas eu vejo outras coisas. Ela anda bonito, tem um gingado desses que faz homem virar a cabeça pra olhar sem pudor. Eu não vejo os traços dela, mas sei que é bonita e rica pelo andado dela.
− Rico anda diferente?
− Rico anda igual rico.
− E tem mais: ela faz isso direto. Já vi. Ela passa nesse horário, fim de tardinha. Lá na esquina ela entra num carrão, a lá, entrou, viu? E passa umas duas horas e meia ela volta, desce do carro, cabelo molhado, sim, dá pra ver daqui, o mesmo andar bonito, só que mais triste...
− A senhora tem passado bastante tempo na janela, né? A senhora tá triste hoje?
− Quase todo dia... Quase todo dia ela faz isso.
− Sussuzinha, psiu! A senhora está triste.
− Só um pouco mais que o normal. A janela ajuda a gente a viver a vida do outro. Mas aquela moça rica é bonita e triste. O moço do carrão, acho que é um moço, deve ser, ele deve dar um trato nela pra ela voltar pra casa. Deve que mora num desses prédios bonitão ou num condomínio mais lá na frente. Mas ela é triste. Sofre da tristeza das casadas.
− Casamento é tão ruim assim, don Sussu?
− Eu não disse que é ruim, eu disse que é triste.
− Mas a senhora foi... seu casamento foi bom...
− Por isso que é triste. O Cidinho nem sabe quem eu sou. Eu vivia bem sem a gente..., você sabe, sem a gente ter relação na cama por causa do problema dele. E queria ele, só isso, só. Hoje, quando eu não sou uma ausência total na vida dele eu sou a sua mãe, sua tia, a dona que vendia doce pra ele na mercearia... Ontem ele me pediu doce de leite Ninho, uns que há muito tempo a gente comprava na venda do sô Dilon do pandeiro. Tempo bom. O sô Dilon já deve ter morrido...
− Fica triste não, meu amor. Isso parte meu coração, a senhora sabe.
− ... mas aquela moça é triste. E é rica. E é bonita.
XII. ... você entende, Celeste?
Difícil descrever o despertar daquele sonho e os sentimentos que ele provocou em Sussu. Celeste se pôs a ouvir, atenta, embora Açucena o narrasse mais para si mesma, numa busca de fruí-lo um tanto mais em vigília:
− Era eu a bonitona que eu te mostrei ontem. A pessoa do carrão era o Cidinho. A gente era casado, mas se tratava com indiferença dentro de casa. Ah!, e dinheiro não faltava pra gente, viu? Como ele tinha dinheiro, e eu tinha joias e a casa era incrível! Acho que era um apartamento, porque era alto toda a vida e eu via até o dedo de Deus apontando pra minha cara de vez em quando. Sonho é muito doido. Mas, fora de casa, no motel, vixe! A gente se pegou, mas pegava mesmo! Nó! Mal desci do carro e foi ali mesmo, na garagem do motel, já com um tesão danado, Celeste. Eu vi tudo direitinho, nem parecia sonho. Até cheiro o sonho tinha. Cidinho era uma delícia. Maior, mais forte, mais peludo e até mais cheiroso, mas era o Cidinho, mas não era o Cidinho. Sabe como é que é sonho, não sabe, Celeste? Então, era ele sem ser ele, eu sem ser eu. E a gente saiu da garagem já doido pra arrancar a roupa. Quando ele começou a beijar meu peito eu já pus uma mão dentro da calça dele e a outra dentro da minha calcinha... Ah, mas, aqui, eu fiquei com dó das nossas roupas, era tudo de butique, cara, não queria deixar sujar, nem rasgar... Era como se uma parte de mim permanecesse acordada apontando pra eu dormindo só pra falar “você é pobre, hein” – que bobagem! Pobre sonhando sonho de rico... Celeste, eu chupei ele tão gostoso! Ele gozou na minha boca, na minha cara e me levantou, e eu era a moça gostosa que eu te mostrei ontem... Engraçado, eu também não vi o rosto dela direito, era tudo meio embaçado, o rosto que era dela e era meu, não consegui ver, mas sei que ela, eu, sei lá, a gente era bonita, e que corpão a gente tinha! Nada dessas mulheres que parecem boneca, não, nada disso. Eu era uma gostosura imperfeita, de verdade, humana, mulher. Ela era. Ele também. Era gostoso sem ser escultura, entende? Ele me jogou de quatro na cama, e eu nunca usei droga, mas meu estado era doido pra caramba, Celeste. Aqui, eu fiz tesourinha na boca dele! Eu queria que morrer fosse daquele jeito! E teve daqui pra lá, de lá pra cá, de cima, de baixo, na banheira, no chuveiro, vixe, que delícia! – Celeste acompanhava com diferentes sorrisos, ora tímidos, ora desejosos, como se se colocasse no lugar de Açucena, ora sem graça. O monólogo se estendeu em repetições e detalhes.
− Dominica – prosseguiu Sussu – Dominica, o nome dela, meu, nosso, eu era ela e eu, sabe?, a gente se chamava Dominica, eu não era eu, nem ela era ela, sabe? Dominica não é mesmo nome de quem tem dinheiro? Dominica...
A experiência quase cinematográfica elevara a sonhadora a alturas inimagináveis. Ela sentira, dormindo, sendo ela e outra ao mesmo tempo, sensações inéditas, dolorosamente saborosas, antes de ser reconduzida ao dia a dia pela luz do sol.
XIII. Ele lembra da gente!
Mais uma manhã como as outras, comuns. Nada pior que um dia sem novidades, ainda que elas sejam tristes. No espelho, Açucena se viu com uma aparência incompatível com a sua idade e, pela primeira vez, odiou o dia em que conhecera Alcides. “Muitos me dariam uns 90 anos”, pensou, apalpando a flacidez amarga de seu rosto deformado pelo amor.
À tarde, embelezou-se o quanto pôde, rodou no dedo sua aliança e beijou a de Alcides, que há anos, feita pingente de sua correntinha de ouro, adornava um colo estrelado de pequenas manchas e pintas altas. Perfumou-se, como era seu costume, e foi para mais um dia de visita ao marido – já distante de tudo.
Com a curiosidade despertada pela narrativa do sonho, Celeste aproveitou a saída de Açucena para exercitar a bisbilhotice. Afinal, não era todo dia que ela via uma septuagenária com tanto desejo! Deparou-se com vários cadernos, impecavelmente organizados, nos quais a professora de Literatura escrevia suas ficções, a fim de tornar a sua vida mais real. Celeste, que nada lia, aventurou-se pelo primeiro caderno, que trazia, na primeira página, em grandes letras maiúsculas feitas a mão, o título “MÁXIMAS MÍNIMAS”.
Pensando na pessoa amada, algumas pessoas fazem música, outras se masturbam.
– “Masturbam”, que nome pra siririca! – pensou, em alta voz, sorrindo. Estendeu as mãos, pegou um caderno de pequenos contos, mas leu apenas este, ainda sem título:
Ele tinha dois metros. A sua envergadura também. Sem trabalho, arranjou emprego de distanciador, categoria profissional nova. Cristo que era, ele marcava, com os braços estendidos, as distâncias entre as pessoas na fila. Quando chegava ao final, percebia que os dois metros não haviam sido respeitados pelas pessoas ansiosas, então se punha novamente a pedir “gente, por favor, dois metros de distância!”, recebendo ao fim do dia um dinheiro minguado pelo seu esforço infinito.
− Gente, ela escreve bonitinho! Que gracinha!
Quase tudo era micro naquela vida que tentava se inventar pela escrita, porém, no maior dos cadernos havia trechos longos, que surpreenderam Celeste:
(...)
triste momento este das pessoas sem rosto
(...)
As mãos de uma e do outro invadem os espaços alheios, o cheiro de sexo se intensifica, a cegueira os dilui, à rapidez das horas se opõe a suspensão do tempo. O eterno vivido durou horas, prolongadas em infinitos presentes, em agoras perenes. Ela, quiçá incapaz de cometer transgressões, atinge a santidade. Ele se alegra no inferno.
(...)
As horas passaram, Celeste sequer sentiu fome, enquanto no asilo Açucena se depararia com o inesperado.
XIV. Para sempre
Da entrada do Lar de Idosos, onde cumprimentou as Irmãs, até o quarto do marido, Açucena navegou por um rio povoado de solidões, caminho que perfazia há anos, mas que naquele dia parecia ter menos vida. Muitos dos idosos que ali viviam, mulheres e homens, haviam recebido como benção a perda da razão. Sim, os que permaneciam mentalmente sãos eram os que tinham os olhares mais tristes. Açucena incluía-se entre aqueles desolados, na aparência e no desespero silencioso. Era a véspera do Natal.
Quando entrou no quarto, Alcides estava de costas, sentado em uma cadeira alta o suficiente para que seus pés ficassem suspensos, num leve balanço. Aqueles pés que não tocavam o chão eram como ele próprio, sem contato com o mundo.
− Amor... – disse Açucena, pondo com ternura as mãos sobre os ombros do marido. – Amor, trouxe pastelzinho, bolinho frito, bombom, tudo o que você gosta.
Colocando-se a sua frente, com o corpo curvado até quase encostar seu rosto no do marido, Açucena pôs-se a acariciá-lo, mas o silêncio profundo permanecia. Ele se manteve de cabeça baixa, com os olhos fixos nos pés, que traçavam no ar um semicírculo imaginário, tão indeciso quanto trêmulo. “Ave Maria, Ave Maria, mãe de Jesus...”, vinha de fora do quarto um canto descompassado, com lamentações, risos, tosses.
Ansiosa com a total falta de reação do marido, Açucena pensou: “Agora já era. Ele foi tragado de vez pela escuridão. Ele já não mora mais nele”. Não foram exatamente nesses termos, mas ela vislumbrou o fim. E disse, chorando, antecipando-se à iminente desaparição total de Alcides no seu próprio abismo:
− Eu te amo, viu? Obrigado por tudo, meu amor, meu melhor amigo. Você foi tudo pra mim, viu? Nossa vida foi boa, foi tudo lindo.
Despedida consumada, ela sabia que velaria seu marido até o fim, ele que passava a ser apenas corpo. A morte, um dia, seria enfim generosa e o levaria. Ou a levaria. Açucena só desejava que ela não demorasse muito. Foi quando, de repente, Cidinho ergueu a custo a cabeça e a olhou nos olhos. Naquele olhar um ciclo se completou, e tudo passou a ser paz. Nunca, em momento algum, mesmo quando jovem enamorada, Açucena se sentiu tão bem, pois se convenceu de que o marido havia se lembrado dela. Restabeleceu-se a vida.
Ela o abraçou forte, encarou-o novamente, sem dizer palavra. O significado do silêncio era mais profundo e terno. Agradeceu ao marido dando-lhe um beijo nos lábios ressecados e depois respirou o ar mais pleno do melhor perfume que jamais sentira. Todas as coisas passaram a fazer sentido, nada mais a entristeceria. Açucena abençoou o dia do seu nascimento e o dia que viu Cidinho pela primeira vez. Não havia espaço dentro dela para mais alegria, simplesmente porque ela estava convencida de que o marido a reconhecera, e naquele olhar, ela viveu em segundos o lado mais belo da vida dos dois (a vida tinha um lado ruim?), reviveu, com mais intensidade, todo o amor do mundo, confiante de que ele sentia exatamente o mesmo, ainda que sem se expressar com palavras. Dante e Beatriz se reencontravam, sem antes nem depois, sem princípio nem fim, na eternidade revelada naqueles olhos opacos, inchados de espera.
Mas Açucena sabia que nada seria duradouro; a vida arrombaria novamente a sua porta, repleta de bagagens, pronta para se hospedar de vez. Entretanto, a realidade não a entristeceu, e por uma razão muito simples: ela se descobriu livre! Estava em suas mãos reter aquele instante, paralisar o tempo. Ela encheu os pulmões com a máxima força que sua condição física lhe permitia, como se assim absorvesse por completo todo o bem vivido, abraçou Cidinho mais uma vez, deu-lhe outro beijo, coçou sua cabeça com ternura, riu do jeito mais bonito, e sem se despedir, refez, no sentido inverso, o caminho que lembrava o rio das solidões desesperadas, agora colorido, iluminado pelo sol mais radiante que se possa pensar, ainda que a noite já se anunciasse, e sentindo todo o encantamento daquela nova condição, do lado de fora, leu no cinza das calçadas os versos dos seus poemas preferidos, como que lavrados no cimento, coroados pela melodia das sirenes e buzinas; expirou aliviada, sorriu, pôs os pés no asfalto, olhando ao mesmo tempo para as nuvens e para dentro de si mesma e, fazendo a única coisa que podia e devia naquele momento, com a alma completamente enlevada, cristalizou sua alegria ao lacrar definitivamente todas as entradas da tristeza.




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