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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: LUÍS ANTÔNIO HANGAI — CATEGORIA CONTO

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SOBRE O AUTOR


Luís Antônio Hangai nasceu em Londrina (PR), em 1986. Já foi jornalista, hoje trabalha com outros textos. Vencedor do Concurso Nacional de Contos das Livrarias Curitiba (2019) e do Concurso Literário UEL 50 Anos (2022), além de selecionado no Pena de Ouro 2024. Tem publicações em diversas antologias e atualmente desenvolve seu primeiro livro de contos.



O CONTO SEMIFINALISTA


ONÍRICA


I


Mathias intrigou-se quando Júlia começou a falar. Ele tomou nota no caderninho sem perder a atenção sobre a paciente que o consultava há meses. Era um caso de insegurança, baixa autoestima e extrema timidez, fatores típicos de quem vive sob o peso opressivo, e com frequência ilusório, da vergonha. Mas agora, em sua mais recente visita ao consultório, a jovem de quase trinta anos estava falante, desinibida e articulada. Mathias se perguntou como ela teria modificado o comportamento de forma radical em tão pouco tempo.

Sentada ereta na poltrona, ela encarava Mathias e gesticulava com entusiasmo, suas mãos movendo-se no ar como se desenhassem as cenas de seu sonho: 

— Não me recordo de um sonho tão vívido assim. Aliás, quase nunca lembro deles. São tão vagos, confusos. Mas desta vez foi diferente. Consigo me lembrar de cada detalhe. — Júlia contou sem gaguejar ou desviar os olhos de Mathias, o que era completamente oposto ao seu comportamento típico. — Eu estava andando pelas ruas de uma cidade muito movimentada, com muito medo de estar sendo observada, quando uma mulher se aproximou de mim. Tive a sensação de sermos amigas há muito tempo, desde a infância. Ela se chamava Onírica. Nem sei como me lembro disso. Sempre esqueço meus sonhos logo que saio da cama e ponho os pés no chão. 

— Onírica? Interessante — interrompeu Mathias, fazendo anotações. Agora estava intrigado não só com a nova Júlia, mas com o nome incomum que ela pronunciava.

— Que nome estranho, não é? Sua aparência também era única — contou Júlia, cruzando as mãos e as pernas num gesto enérgico. — Seus olhos eram grandes e dourados como nunca vi iguais. Ao seu lado eu não sentia vergonha nenhuma. Nós ríamos e andávamos por aí sem dar bola para ninguém. Só que, de repente, essa Onírica começou a flutuar. Lá de cima, ela piscou para mim. Seus olhos brilharam de um jeito que não sei explicar. Estavam explodindo de... vida, eu acho. O que importa é que, nesse instante, nós duas trocamos de corpo. Assumi a posição dela e, através de seus olhos, me vi lá embaixo.

Júlia fez uma breve pausa e sorriu de uma maneira que Mathias nunca tinha testemunhado. Fora dos sonhos, Júlia não tinha amigas sobre as quais contar. Também não se fazia de sorridente. 

— Sabe, doutor, os espelhos enganam. Para começar, a gente se vê invertida neles. Nem quando você aparece em foto ou gravação você se enxerga direito. Existem distorções. Mas quando você se vê com os olhos de outra pessoa, é diferente. Ainda mais os olhos de uma amiga tão extraordinária como Onírica. 

— Como foi a experiência de ser vista pelos olhos de outra pessoa? 

— Sem querer me gabar, mas o que vi era uma mulher muito inteligente, divertida e até bonita. Nunca que o espelho me devolveu essa imagem. Pensei, poxa, não faz nenhum sentido ela ser assim, tão retraída. Não sei se fui eu que pensei isso, ou Onírica, ou nós duas ao mesmo tempo. Sonho é difícil de explicar! O fato é que eu senti algo mudar dentro de mim. Neste instante eu acordei, mas a sensação ficou gravada. Quando saí da cama, me senti uma pessoa completamente diferente. Dá para acreditar?

Para Mathias, não, não dava para acreditar. Ele nunca soubera de pessoas que passaram por súbita transformação comportamental devido a um único sonho catártico. Mudanças assim, quando ocorriam, levavam muito tempo, às vezes anos, décadas, uma vida inteira para acontecer.

Embora despertasse incredulidade, a jovem não mentia. Ela deixou o consultório radiante, sem ter conhecimento do ceticismo de seu terapeuta. Mathias teve o impulso de anotar e memorizar bem o nome Onírica. 


II


Júlia dera seu tratamento por encerrado e, por volta da mesma época, Mathias recebeu uma nova paciente. Seu nome era Sara, tinha trinta anos e gozava de ascensão na carreira de dentista, dona de uma clínica própria. Consultou Mathias porque, apesar de próspera, vinha sofrendo com crises de ansiedade e oscilações bruscas de humor. Acordava agitada no meio da noite com o coração palpitando, às vezes sob um ataque de pânico. Quando isso acontecia, pensava que ia morrer. Um psiquiatra lhe prescrevera ansiolíticos e antidepressivos, mas não pareciam estar surtindo efeito. Ela também não faltava a nenhuma sessão de psicoterapia.

Estes eram os pontos que Mathias considerava em suas anotações: descobriu que Sara sentia-se em dívida com os próprios pais, que já eram dentistas bem estabelecidos e impulsionaram sua carreira logo ela concluiu a faculdade, presenteando-a com um estabelecimento próprio, todo planejado com equipamentos de ponta. Desde pequena, ela havia sido convencida a seguir os passos da família e nunca a decepcionar. Fora treinada a sufocar os próprios desejos a fim de corresponder às expectativas da mãe, do pai e, posteriormente, da alta sociedade que a cercava. 

— Eu amo minha profissão — ela disse como uma aluna que havia decorado o ponto a ser cobrado no exame final. — Adoro as pessoas, cuidar delas, dar uma qualidade de vida melhor para elas. Vê-las sorrir é satisfatório. Mas não sei bem como dizer. Tem dias que eu sinto um vazio no peito.

— O que este vazio significa para você? Ele lhe diz algo? — provocou Mathias.

— Significa que terei um ataque de pânico — ela respondeu, rindo de nervoso. Depois, se recompôs como alguém que deixara a máscara cair por um segundo, uma falha inadmissível. — Acho que quero ter um filho. Pelo menos é o que meus pais dizem que eu preciso para dar sentido à vida. Tenho vocação para ser mãe, penso eu. Quando era pequena, eu queria muito ter gatos, cachorros e até coelhos, mas meus pais nunca permitiram porque os bichinhos, bem, os bichinhos cagavam pela casa — Sara corou ao proferir uma palavra que ela considerava de baixo calão. — Quando cresci, parei de pensar sobre isso. Nem sei por qual motivo este velho desejo me veio à mente agora. Fazia tempo que não lembrava dele.

Então, certo dia ela chegou ao consultório com um semblante diferente. Sara, cujo comportamento padrão era cheio de pudores e necessidades de impressionar os outros, por sua elegância e educação, veio à sessão com um olhar desafiador, sem papas na língua. Sentada na poltrona, cruzou as pernas e contou a Mathias — sem medir as palavras durante as cenas mais escatológicas — um pesadelo que a transformara profundamente.

Neste pesadelo, um paciente assustador viera consultá-la. Deitado na cadeira odontológica, com a luz forte sobre o rosto, ele encarava Sara com um misto de ódio e loucura. Quando ela lhe pediu para abrir a boca, o homem arregalou apenas e extremamente os lábios, mostrando dentes enormes, tortos e revestidos por crostas de tártaro marrom-escuro. Pressionava os caninos com tanta força que pareciam a ponto de quebrar. O som era de ossos trincando. Ainda por cima exalava um mau hálito de carniça.

Sara aproximou suas mãos dos dentes repulsivos com ar de uma profissional experiente. O homem deu uma cusparada no chão, depois avançou sobre ela, tentando mordê-la. Apavorada, Sara afastou-se e encolheu-se no canto da sala. O homem ficou de pé e começou a expelir uma série de palavrões contra ela. Por fim, ele abaixou as calças, contorceu-se e fez cocô bem em cima da cadeira odontológica. Horrorizada, Sara gritou:

— Pelo amor de Deus! Pare com isso, pare agora!

Mas o cocô do homem nunca acabava. Era interminável, como se ele guardasse um esgoto inteiro dentro de si. As fezes já começavam a se acumular pelo chão, e não parecia a ponto de acabar. Desesperada, Sara começou a jogar objetos nele. O homem revidou os ataques com mais xingamentos. E com punhados de merda fumegante.

Em pânico sob o bombardeio fecal, com a merda quente cobrindo o chão a ponto de tocá-la, Sara esgueirou-se pela janela e fugiu do consultório. Perplexa no meio da rua, ela notou que todos a olhavam do mesmo jeito que o monstro do qual acabara de fugir. As pessoas babavam e rangiam os dentes para ela. A próxima coisa que Sara se lembra é de estar fugindo de um bando de malucos animalescos ansiosos para fazê-la de almoço.

Fugia, mas fugia em círculos. Nunca conseguia sair da frente do seu consultório, por mais que tentasse traçar uma linha reta. Depois de muito correr, quando o fôlego escasseou e o coração estava a ponto de parar, ela caiu. Ao tentar se reerguer, escorregou, como se o chão fosse uma superfície lisa coberta de sabão. Desatou em choro. Em meio às lágrimas, ela avistou uma mulher de olhos dourados vindo a seu socorro. Junto a ela galopava uma criatura imponente: uma leoa que botou toda aquela gente bestial para correr. Fora de perigo, Sara cessou os débeis esforços para se levantar, aliviada. Sua salvadora apresentou-se. Chamava-se Onírica. A leoa deitou-se ao lado de Sara. Lambeu-a. Exigiu-lhe afago e atenção.

— Lembro-me muito nitidamente dessa Onírica — contou Sara a Mathias. As olheiras dela, carregadas por muitas noites mal dormidas, haviam desaparecido.

Mathias escrevia furiosamente em seu caderno de anotações. 

— Onírica tinha minha idade, mais ou menos. E olhos cor de ouro muito vívidos. Eu tinha a sensação de conhecê-la há anos. Éramos como velhas amigas — falou Sar. — Mas te garanto que não conheço ninguém assim no mundo real. No fim, Onírica disse que eu podia ficar com a leoa. O animal só precisava ganhar um nome autêntico. Isso mesmo, “autêntico” foi o que ela enfatizou.

Poucos dias depois do sonho-pesadelo, Sara, imbuída de uma intrépida independência que nunca sentira antes, confrontou os próprios pais e abandonou a carreira de dentista. Voltou a estudar, mas desta vez medicina veterinária, agora convencida de que essa era sua real vocação. Havia também deposto a ideia de ter filhos. Decidiu devotar-se somente aos animais. O episódio desencadeou uma revolta familiar, mas Sara vinha se mantendo. Ela, assim como Júlia, deu por encerrada a terapia pouco depois do sonho com Onírica.

Mathias indagava-se: como é possível que duas pacientes desassociadas tenham sonhado com a mesma figura e, logo depois, modificado suas estruturas comportamentais em um estalar de dedos?

Em noites de agenda mais sossegada, permitia-se ler livros e artigos sobre inconsciente coletivo e seus arquétipos, mas não encontrou nada que pudesse explicar de modo científico a extraordinária reviravolta de suas pacientes, muito menos a coincidência que as ligava. Não havia correspondência teórica para eventos de tal natureza. Só indícios de um acaso muito difícil de acreditar.


III


Dias se passaram até que na porta de Mathias bateu um paciente chamado Eric, um homem de trinta e poucos anos, mas que não aparentava querer atravessar a próxima década de vida.

— Sem enrolação, doutor — Eric disse logo no começo da primeira consulta —, mas estou pensando em acabar com tudo.

Mathias se considerava treinado para lidar com este tipo de situação, mas a ideação suicida explícita nunca deixava de lhe comover. E assustar. Seguiu o protocolo: verificou se Eric estava se medicando adequadamente, se tinha alguma rede de apoio, se já havia sido hospitalizado, se tinha família e se praticava atividades físicas.

Eric revirou os olhos diante das perguntas padronizadas de Mathias.

— Nada que possa fazer frente ao meu desejo de nunca ter nascido.

Por semanas, Eric foi seu paciente mais complicado, como sempre eram os casos depressivos e antissociais. Apesar de ser muito aberto quanto à sua coragem de morrer — que para Mathias muitas vezes soava como um medo de viver —, Eric nada falava sobre sua história de vida, como se ela não tivesse relevância alguma para sua cura.

Entretanto, demonstrou predileção por relatar aventuras narcóticas.

— Esta existência só é suportável quando uso drogas — disse sem pudor. — Bebo, cheiro, fumo, de tudo. Comecei até a vender essa porra toda, pois fiquei desempregado, entende? Graças a isso estou aqui, pagando você por mais esta reveladora sessão. Minha vez de perguntar: o que o doutor acha de ser financiado pelo tráfico?

— Esse abuso de drogas te faz mal, Eric. Desregulam sua química cerebral e podem estar contribuindo para a sua depressão — Mathias respondeu, nunca se deixando provocar.

— Claro, só as drogas que vocês doutores receitam e ganham uns trocados em cima é que fazem bem, certo?!

— E ainda assim, aqui está você, se consultando comigo. Mesmo que conscientemente você não acredite, no fundo isso indica que aí dentro — disse Mathias, apontando para o peito de Eric — há um desejo de se curar, não concorda?

Eric jogou a cabeça para trás, no encosto da poltrona. Ficou olhando para o teto sem dizer mais nada até o fim daquela sessão.

À certa altura do tratamento, Mathias perguntou-lhe sobre sua dieta.

— Doutor, ontem eu estava tão chapado que achei que minha geladeira estava me julgando — Eric respondeu, as mãos cruzadas sobre o peito, a cabeça jogada para trás em ar de deboche, olhos fixos no teto. — Ela ficava lá, com comida saudável dentro, me encarando com aquele brilho na porta. Vi a cenoura, o feijão, a água. Acabei fazendo um discurso de meia hora sobre como a junk food também tem seu valor emocional.

Mathias tentou abordá-lo por outros ângulos:

— Você considera tentar hobbies novos para encontrar algo que goste?

— Claro, já pensei em colecionar cactos. Pelo menos eles não reclamam quando eu esqueço de dar atenção — cerrou os olhos, murchou o riso irônico. — Podem bem sobreviver quando eu partir.

Mathias precisava que Eric se abrisse mais, porém o homem vivia dentro de uma concha. Fez do cinismo sua armadura. E sua mordaça. “O que ele não diz quando tanto diz?”, pensava Mathias.

Outras sessões improdutivas transcorreram até que Eric veio ao consultório com semblante modificado, roupas alinhadas e cheirando a banho recente, o que era um forte contraste ao seu típico e efusivo desinteresse por tais “frivolidades”. Não cheirava a bebida e cigarros, seus olhos eram claros, as pupilas, normais.

Mathias pôde rapidamente sentir uma vibração diferente vindo dele, apesar da conservação de seu humor sombrio:

— Tive um sonho, doutor. E não foi com o colapso da civilização que eu tanto gostaria de testemunhar.

— Que ótimo, Eric — respondeu Mathias, tentando disfarçar o frio na espinha que lhe percorria. Ali teve a certeza de que Eric também sonhara com Onírica. — Gostaria muito de ouvir sobre um sonho seu. Acho que você nunca me falou deles. Conte-me mais, por favor.

No sonho, Eric encontrava-se perdido em um deserto. Enquanto andava sem norte pelas areias escaldantes, tentou se convencer de que estava disposto a morrer de sede ou fome, mas, no íntimo, como todo mundo, não pôde lutar contra o medo que toma o ser humano de assalto diante da morte iminente. Com um fiapo de esperança de escapar da situação, andou e andou até dar de frente com um cacto enorme coberto de espinhos assustadoramente longos. Eric contemplou-o, fascinado. Uma boca abriu-se bem no tronco do cacto, que se tornou uma criatura sorridente, embora sem olhos ou nariz, e disse:

— Eric, você não vai me abandonar, certo?! — Os braços do cacto se mexeram em sua direção — Vem cá, me dá um abraço.

Ao ver o cacto esticando os braços espinhentos, Eric deu meia volta e se afastou. Em um piscar os olhos, o deserto se encheu de cactos bocudos com braços que se moviam frenéticos no ar, como bonecos infláveis de um posto de combustível. Porém, ostentando espinhos letais.

— Olhem lá o Eric! Foi abandonado no deserto — disse um cacto.

— Acho que o pobrezinho precisa de um abraço — comentou outro.

— Ei, Eric, sabia que a vida no deserto é como estar sempre na seca? — cantarolou o terceiro.

— Eric, venha cá! Tenho dentro de mim uma substância especial. Uma espetada minha e você vai ficar doidão!

— Venha cá, amigo, prometemos que não vai doer mais do que a vida real.

— Vejam, ele não entende que já é um de nós.

— Que porra é essa? — respondeu-lhes Eric. — Eu só posso estar sonhando!

— Sim, você está.

Esta última era uma voz feminina. Não estava impregnada com o mesmo tom malemolente dos cactos. Flutuando suave pela aridez do deserto, a poucos centímetros acima das areias, aproximou-se de Eric uma mulher de olhos dourados vívidos, que lhe pegou pela mão e o levou para longe do falatório frenético dos cactos. Seu nome era Onírica.

— Oras, então estou mesmo sonhando — disse Eric enquanto se deixava guiar por Onírica. — Que estranho, nunca que dentro de um sonho eu soube estar sonhando. Aliás, quando isso acontece, eu acordo imediatamente.

— Bem-vindo ao seu primeiro sonho lúcido. Nele você pode ser feliz — Onírica então parou de percorrer o deserto. Soltou a mão de Eric. Apontou o dedo indicador para o céu, que de ensolarado anoiteceu subitamente, como se ela guardasse todo aquele cenário sob controle. A lua cheia se aproximou deles, tornando-se uma gigante no céu, enquanto uma infinidade de estrelas começou a dançar pelo espaço sideral. Pareciam vaga-lumes na cor da noite. Eric assistia a tudo boquiaberto.

— Sinto sua tristeza, Eric — disse Onírica. — Você sofre tanto. Como viver no mundo real pode ser assim tão doloroso?

Ao lado de Onírica, Eric sentiu-se à vontade como nunca se sentira com alguém antes. Teve a sensação de conhecer aquela mulher há muito tempo, a ponto de reconhecê-la como confidente. Desarmou-se de seus mecanismos mordazes de defesa. Botou afora tudo o que se impedia de falar aos outros, incluindo seu bem-intencionado terapeuta.

Em pleno sonho lúcido, Eric contou a Onírica uma de suas mais antigas memórias:

Era ainda um garotinho quando sua mãe engravidou e seu pai os abandonou poucos dias depois de receber a notícia. Sozinha e com uma nova vida a gestar no ventre, a mãe sustentou a si e a Eric, batalhando dia e noite. Na luta do cotidiano, ignorou o cansaço e o dinheiro escasso. Seguiu em frente. Apesar de tudo, ela vivia alegre, pois, além de Eric, teria também uma menina para criar. Ser mãe de menina era seu único sonho, o único que a mantinha de pé.

Porém, a mãe de Eric, na corrida da sobrevivência, não podia assentir a todas as precauções médicas e enfrentou severas complicações no parto. Não sobreviveu. Com muito pesar, o médico informou que a pequena bebê também não conseguira. O que se seguiu disso foi um vácuo na memória de Eric. Sua próxima recordação o leva à noite em que um agente da assistência social, com ar de cansado e indiferente, o deixou na casa de um tio, o irmão do seu pai sumido. Eric tinha apenas quatro anos, mas a imagem da porta se fechando atrás dele estava gravada em sua mente.

O tio, com cheiro forte de álcool, o olhou de cima a baixo antes de soltar um grunhido de desdém. As noites que se seguiram foram um borrão de medo e dor, onde a escuridão não trazia consolo, mas terror. O tio alcoólatra o maltratava. E certa vez, o molestou.

Eric contou a Onírica sobre o entardecer em que, ao voltar da escola, encontrou o tio morto na banheira, asfixiado em seu próprio vômito, e como sentiu-se aliviado, quase feliz, ao deparar-se com a cena.

Contou-lhe sobre o interrogatório hostil da polícia, os vindouros anos de orfanato, mais os anos no reformatório, os anos morando na rua aglomerado a outros viciados e como sempre sozinho e abandonado havia carregado o peso da existência que haviam lhe imposto e que ele se sentia no direito de meter um fim, embora faltasse coragem para tanto.

Contou-lhe sobre a sociedade que nunca desapontava em impor obstáculos à sua cura e autossuperação: marginalizado, empobrecido, dependente químico, ainda exigiam tudo o que lhe restava para funcionar como uma engrenagem limpa e digna. Contou-lhe como, num gesto rebelde de ironia, precisou se tornar um traficante para receber algum respeito desta mesma sociedade, fazer dinheiro e poder pagar por seu refinado terapeuta.

— Essa sociedade é imprestável. Não passa de um amontoado de pessoas que acreditam ter o direito de dizer umas às outras como elas devem viver suas vidas. Às vezes acho que não me matei ainda porque não quero dar tamanha satisfação aos filhos da puta — disse Eric para Onírica.

Para a imensa surpresa de Eric, Onírica apenas escutou tudo o que ele tinha a dizer, olhando-o nos olhos com uma expressão tranquila e carinhosa. Não havia um traço sequer de julgamento em sua face. Ela não lhe deu conselhos, não buscou consolá-lo com o vazio palavreado das pessoas que, sempre impotentes, não sabem o que dizer quando confrontadas com tristes histórias de vida.

Frente ao atento silêncio daquela misteriosa mulher, uma lágrima escapou de Eric, mas ele logo se apressou a secá-la com as costas da mão.

— Um dia, quem sabe, vou querer saber mais sobre como é a parte dolorosa de viver no “mundo real” — Onírica disse, quebrando o silêncio e enfatizando as aspas em “mundo real”.

— Não queira saber. Seria melhor nunca ter nascido.

— O que você sabe sobre isso?

— Bem, nada. Mas sei como nunca é ter vivido.

Onírica deu risada, mas Eric não entendeu se era dele mesmo. Neste momento, ela faiscou os olhos, o que fez revirar algo dentro dele e acordá-lo.

— Agora, doutor Mathias, eu só ando pensando nessa mulher, nessa Onírica. A cada noite que me deito, espero reencontrá-la em sonho.

Em algum momento, Mathias, perplexo, parou de anotar e deixou a caneta cair. Tomado de incredulidade, não se abaixou para pegá-la. Não precisou. Já havia gravado bem toda a história. Eric recuperou o fôlego depois da longa história e, diante do silêncio do terapeuta, continuou:

— Estou até largando as drogas, aos poucos. Também parei de vender. Comecei a ler sobre sonhos lúcidos e estou praticando algumas técnicas. Dormir bêbado e drogado prejudicaria o processo, entende? Não sei explicar muito bem, doutor, só sei que minha compulsão agora é outra — um sorriso de malandro escancarou-se em seu rosto. — Viu, será que o doutor não conseguiria me arranjar um bom remédio para dormir mais? Assim dormirei e sonharei por mais tempo e...

— Acho que você já sabe a resposta, Eric. Não é uma boa ideia.

Após aquela sessão, Eric começou a dar sinais promissores de melhora. Uma fagulha reascendeu a esperança dentro dele. Isso era tudo que Mathias precisava para desenvolver seu trabalho. Saber mais sobre a história de Eric também o colocava em melhores condições para ajudá-lo a superar os próprios traumas.

Porém, assentou-se em Mathias a perplexidade: não conseguiu processar muito bem a informação espantosa de que três pacientes seus sonharam com a mesma figura e sofreram formas semelhantes de transformação súbita. Era extraordinário demais para ser mera coincidência. Desconfiou se Júlia, Sara e Eric eram conhecidos e estavam aplicando-lhe alguma trama. Mas não conseguiu ver o que poderiam ganhar com isso. Sua intuição também não aceitava tal hipótese.

Por outro lado, o suposto fantástico escapava ao seu paradigma racional e científico. Mathias seguiu convicto de que poderia encontrar uma explicação plausível para a coisa mais inusitada que aconteceu em toda sua carreira. Às vezes, ao término de sua movimentada agenda diária, ele passava a noite no consultório, enquanto abordava o enigma com olhos cansados, mas atentos. Começou a compilar notas detalhadas sobre os três pacientes e seus sonhos, buscando padrões ou pistas que pudessem oferecer uma explicação plausível para o estranho incidente.

O que Mathias encontrou de tão pouco material foi que os três pertenciam à mesma faixa etária. Jovens adultos com cerca de trinta anos. O que os assimilava também era a natureza de suas transformações: Onírica havia posto abaixo suas rígidas estruturas psíquicas para dar lugar a algo novo e desconhecido. Ela provocou mudanças internas radicais em seus sonhadores. Despertou uma nova força dentro de cada um. Com uma simples aparição, levou-os para além de suas próprias perspectivas de si mesmos, dos outros, da vida.

Cada sonho também começou como uma experiência dolorosa, beirando o pesadelo. Júlia sentia-se acuada e paranoica em uma cidade povoada por olhares alheios; Sara teve que lidar com um paciente fora de controle e uma turba esfomeada; Eric sentiu-se perdido no deserto com cactos falantes zombeteiros. Só depois Onírica surgia para salvá-los e lhes causar uma espécie de experiência catártica.

Baseado em novas leituras sobre simbolismo e mitologia, Mathias testava, com muito ceticismo, os eventos sob um ângulo que ele considerou metafísico, algo inconvencional em sua prática clínica. O fenômeno Onírica, contudo, forçava-lhe a abrir a mente a outras possibilidades. No fundo, sabia que a amplitude da chamada realidade não poderia ser totalmente abraçada pelo empirismo e racionalismo científicos.

Mathias entretinha-se com a ideia de que as personalidades dos três pacientes sofreram um processo de “morte e renascimento”. Porém, a morte e o renascimento haviam se dado de modo muito abreviado. Algo neles nasceu logo ao morrer. Cada sonho, embora começasse doloroso, acabava em redenção.


IV


Em mais uma noite no consultório, Mathias espalhou livros e anotações sobre a mesa, preparando-se para mergulhar fundo nas investigações sobre o mistério de Onírica. Não perdera ainda a convicção de encontrar, dentre as múltiplas teorias que tinha à disposição em sua biblioteca, uma explicação razoável para os eventos que acometeram seus pacientes.

Porém, pouco após o anoitecer, a luz acabou. Mathias suspirou na escuridão repentina, frustrado. Nem um minuto se passou e ouviu alguma coisa bater sobre o chão com um baque grave e macio, depois outra e mais outra. Compreendeu que os livros da biblioteca caíam como se empurrados por uma força vinda de dentro das paredes, pois a cada volume que tombava, abria-se em seu lugar uma fresta por onde entrava no consultório um feixe de luz azulada. Os olhos perplexos de Mathias apenas observavam sua querida coleção científica ir ao chão enquanto a iluminação surreal brotava de dentro das estantes.

Muitos livros caíram até que um portal completo, irradiando azul celeste, se abriu bem no meio da biblioteca, como se uma caverna brilhante houvesse escancarado a boca por entre as estantes. Então, bem devagarzinho, a cabeça de uma moça pendendo na horizontal começou a surgir por uma das laterais do portal. Ela tinha longos cabelos pretos, sorriso juvenil e olhos dourados.

— Oi! — ela disse.

— Oi... Oi? — Mathias respondeu, esfregando os olhos e tentando manter a respiração controlada.

— Você sabe quem eu sou, certo? — ela perguntou num tom brincalhão.

— Acho que sim — Mathias aprumou-se e deu alguns passos em direção ao portal. — Você é a Onírica, da qual tanto ouvi falar.

— É isso mesmo.

Onírica atravessou o portal para dentro do consultório e acomodou-se à vontade na poltrona destinada aos pacientes. Os olhos de cor extraordinária percorreram o aposento e, por alguns segundos, pararam sobre os livros caídos ao chão, os que ela havia derrubado para abrir seu portal.

Mathias sentou-se à sua frente. Abriu o caderno de notas só para em seguida fechá-lo e pô-lo de volta à mesa. Com as mãos cruzadas, incapaz de dissolver a expressão de estupefação em seu rosto, ele a observou em silêncio.

— Vim fazer uma consulta, responder suas perguntas, abrir-me um pouco. Minhas últimas visitas ao “mundo real” estão me cobrando isso. Também vim te pedir um favor — disse Onírica voltando seus olhos dourados para Mathias.

— Ah sim. Bem, eu... Primeiramente, eu estou sonhando?

— Sim, estamos, eu e você. Eu sou um sonho que vive sempre no mundo dos sonhos e nunca saio dele, pois praticamente nasci aqui. Já o “mundo real” ainda estou explorando — Onírica gesticulou as aspas ao falar “mundo real”.

— Acho que não entendi muito bem. — Mathias inclinou-se para frente, um pouco menos assustado com a visita, que não se apresentava ameaçadora. — Veja, você não me sai da cabeça. Eu preciso entender quem ou o que é você, e por que está interferindo na vida dos meus pacientes.

— Você parece ter dificuldades em aceitar o inexplicável — Onírica respondeu, também inclinando-se para frente, em direção a Mathias. Seus olhos ardiam como fogo vivo. — Todos estes livros, toda sua lógica, eles não te darão resposta alguma. É preciso sentir.

— Ajude-me a entender.

— Há pouco a se entender e, como disse, mais a se sentir. Gosta de literatura poética? — Onírica apontou o dedo para o portal aberto no meio da biblioteca. — Pois veja.

Mathias assistiu ao portal. Lá dentro algumas silhuetas humanas iam tomando forma. Três ao todo. Seus contornos aos poucos se delinearam e ele identificou Júlia, Sara e Eric andando lado a lado. Seus pacientes que haviam sonhado com Onírica conversavam como se fossem velhos conhecidos e riam absortos em uma reunião alegre e descontraída. Eric e Júlia caminhavam de mãos dadas, trocando olhares apaixonados, enquanto Sara contava-lhes alguma coisa muito engraçada, ao que parecia. Tudo se passava como se fosse um filme mudo.

— Não pode ser. Então eles se conhecem mesmo! — exclamou Mathias.

— Não, meu caro Mathias. Isto que você está vendo é uma possibilidade que se perdeu. Um sonho que morreu — a voz de Onírica baixou de tom, descendo para quase um sussurro. — No mundo dos sonhos, em meu habitat natural, onde nasci e cresci, posso enxergar muitas coisas, muitas possibilidades do seu mundo real. As que aconteceram, as que poderiam ter acontecido, as que se perderam para sempre.

Mathias então notou que um quarto vulto assomava na tela do portal. Era a própria Onírica, que trazia consigo na coleira um enorme cão vira-lata. Ela libertou o cão e este saiu em disparada ao encontro de Sara, lançando-se sobre ela e lambendo-a no rosto. Enquanto Sara e o cão brincavam no chão, Onírica se aproximou do casal. Onírica e Eric trocaram um profundo e fraternal olhar de cumplicidade, mas Júlia não demonstrou nem um fio de ciúmes quanto a isso. Nenhuma desconfiança e suspeita entre eles.

— O que você vê é como seria a realidade de cada um de seus três pacientes, se eu tivesse nascido no “mundo real” — disse Onírica. As ponta de seus dedos e seus olhos brilhavam como pequenas lâmpadas. Pareciam exercer algum controle sobre o que se desenrolava na tela do portal. — Se eu tivesse nascido e sobrevivido no “mundo real”, nós quatro teríamos formado uma amizade para a vida inteira. O que você vê no portal é como teria sido uma história comigo dentro dela. Sara, Júlia e eu teríamos nos conhecido ainda pequenas, apesar das diferenças entre nossas “classes sociais”. Teríamos despertado nossas autenticidades umas nas outras. Nossos sonhos verdadeiros umas nas outras. Cada uma teria se tornado aquilo que era para ser, desde o começo. Como não nasci, elas e Eric permaneceram para sempre desconhecidos. Não formaram uma ligação profunda. Uma pena. Quanta diferença uma única vida faz, não acha?

Enfeitiçado, Mathias assistia as imagens se desenrolarem no portal enquanto escutava com a mesma atenção o que Onírica tinha a dizer. Então franziu o cenho, levou os dedos ao queixo e perguntou:

— Você, Júlia e Sara teriam sido amigas se você tivesse nascido no mundo real. Mas e Eric? Onde ele entra nessa história?

— Se eu tivesse nascido, Eric teria sido abençoado com uma irmãzinha.

Mathias finalmente tirou os olhos do portal e virou-se para Onírica. Notou que o sorriso zombeteiro em seu rosto desaparecera, substituído por uma expressão sombria. O brilho em seus olhos e ponta dos dedos se apagaram.

— A mãe de Eric morreu ao tentar dar à luz — disse Mathias, pensando em voz alta. — A propósito, ele desabafou isso com você mesma, durante um sonho no deserto! Ele me contou tudo.

— Pois é — respondeu Onírica, agora repentinamente lacônica.

Mathias foi tomado por uma sensação deveras familiar: a de estar frente a uma paciente traumatizada. A forma como a postura e o tom de Onírica mudaram quando a conversa tocou sua ferida lhe revelou isso.

— Entendo — Mathias cruzou as pernas e se ajeitou na poltrona como se estivesse dando início a uma de suas sessões. — Por que não me conta sua história, Onírica?

— Como já dei a entender, não sobrevivi ao “mundo real” — as pálpebras dela se estreitaram e ela cruzou os dedos da mão sobre o colo. — Era o grande sonho dela ser mãe de uma menina. Ela me carregou no ventre feliz e radiante durante os nove meses, mesmo quando foi abandonada pelo meu pai e o de Eric, que, como você já sabe, era apenas um garotinho à época. Com pouco dinheiro que ela possuía, em meio à luta de sobreviver no “mundo real”, ainda preparou um quarto e um enxoval para minha chegada, sacrificando muito com isso. Ela não tinha escolhido meu nome ainda, mas brincava, em segredo, de me chamar de Onírica, porque ela sonhava dia e noite comigo, estivesse dormindo ou acordada. Eu era sua grande esperança... de criar uma família feliz.

Onírica levitou da poltrona e deitou-se no ar. Depois contorceu-se em posição fetal, abraçando com força as pernas dobradas contra o peito. A cada segundo que passava ela diminuía mais e mais. Voltou de uma jovem adulta para uma adolescente, e dessa para uma criança até chegar ao ponto de uma bebê recém-nascida. Então irrompeu num choro agudo, penetrante, que demoliu com o silêncio estagnado do consultório, onde Mathias observava, pasmo, a metamorfose de Onírica.

Mas o choro não durou muito. Logo a bebê Onírica quedou num silêncio mortal. Seus dedos e membros pararam de se mover. Sua pele ganhou uma tonalidade cinzenta. Tinha a boquinha semiaberta, o corpo inerte, a pequena barriga imóvel, pois não respirava mais. Nenhuma luz dela emanava.

Do portal que permanecia aberto na biblioteca surgiu um cordão prateado que serpenteou pelo ar adentro do consultório. Mathias observou o cordão com vida própria, como se fosse um tentáculo, a se aproximar da bebê desfalecida e a se conectar a seu umbigo. Uma espécie de cordão umbilical vindo do além. Lentamente, o pequeno cadáver de Onírica foi puxado pelo cordão de volta ao portal, que se conservara aberto e reluzente na biblioteca. Júlia, Sara e Eric já não estavam mais na tela do portal, que agora era apenas um profundo azul que tremulava como o mar. Puxada para o outro mundo, o dos sonhos, a bebê sorriu e abriu os olhos mais uma vez, renascida, antes de desaparecer nas suas profundezas.

— Minha mãe e eu não sobrevivemos ao parto — disse Onírica, que reaparecera bem atrás de Mathias, em seu formato de jovem mulher, como se nunca tivesse se transformado em bebê e sumido do consultório. Ela o contornou e sentou-se novamente na poltrona. Prosseguiu:

— Separamo-nos para sempre. Não sei se ela ascendeu a um plano superior, se reencarnou, se a consciência se apagou, se virou pó de estrela, se voltou para o nada, se agora é uma criança, não tenho como saber — o sorriso e os olhos dourados faiscantes haviam voltado ao seu rosto. — Ironicamente, meu poder se limita ao “mundo real”, ao “mundo dos vivos” e aos sonhos deles. Meu mundo é o dos sonhos, mas dos vivos.  

— Como foi ter morrido e renascido no “mundo dos sonhos”? — perguntou Mathias no mesmo tom calculado que perguntava a seus pacientes quando intencionava explorar suas vidas.

— No começo era tudo simples e divertido, apenas flutuava no caos imaginário da criação. Nas correntezas da mente universal. No expandir-se do todo. Mas, aos poucos, fui aprendendo o que acontecera comigo. Descobri que o “mundo real” perdeu algumas coisas bonitas com a minha ausência. Também descobri o que eu perdi ao morrer no “mundo real”. Perdi amor maternal e fraternal, perdi amizade. Senti muita tristeza e solidão ao constatar isso.

Onírica baixou os olhos para o chão. Fez uma breve pausa e, como Mathias não a interrompeu, ela continuou:

— A tristeza e a solidão despertaram em mim um grande desejo, na verdade um sonho, o sonho de viver um pouco no “mundo real”. Movida por este sonho, aprendi com muito esforço a visitar a mente das pessoas enquanto elas dormem. Porém, está fora do meu alcance nascer de novo no “mundo real”. O máximo que posso fazer é visitar o sonho das pessoas e tocar-lhes em suas profundezas inconscientes para que, ao despertarem, vivam um pouco do que eu gostaria de viver. Posso fazê-las ver, sentir e aceitar novas possibilidades do viver, ainda que eu esteja morta. 

Mathias tinha o olhar preso sobre ela. Fez-se um silêncio entre ambos. O conhecimento teórico dele não tinha valor algum nesta situação. Porém, mesmo que hesitante, ele tinha uma hipótese e verbalizou-a:

— Onírica, eu acho que você tem projetado seus próprios desejos e sonhos sobre seu irmão e suas amigas. Não me entenda mal, isso é positivo. Você contagiou Eric com seu desejo de viver, ele que estava a ponto de se matar. Você também aguçou algo em suas amigas, tornando-as mais decididas, ousadas e alegres como você mesma, reconheço. Mas preciso admitir que isso me preocupa — Mathias inclinou-se, apoiando os cotovelos sobre os joelhos. Depois acomodou o queixo por cima das mãos cruzadas.Onírica o escutava com olhos serenos, impassível.

— Preocupa-me a forma como você lida com o próprio luto. Ou seja, transformando de modo radical meus pacientes. Mas Júlia, Sara e Eric não conquistaram a si mesmos por seus próprios esforços. Foram, por assim dizer, manipulados e modificados por sua aparição — Mathias suspirou, mas não perdeu o impulso de continuar dizendo o que pensava. — Meu trabalho é que eles se tornem pessoas autênticas através de um processo introspectivo. Não apenas felizes, mas capazes de suportar as dores da vida e aprender com elas. Autoconhecimento. Você, por exemplo, acabou de me dizer que aprendeu a viajar por entre os sonhos das pessoas e chegar perto do seu desejo de viver no “mundo real”, pois foi movida pela tristeza e solidão que a acometeram. Sem estes sentimentos, você não teria feito o que fez. Foram indispensáveis para a evolução de sua existência. Você negou aos três o direito a isso.

Onírica escutou atenta a tudo que Mathias lhe disse. Seu semblante não se tencionou ou relaxou nenhuma vez. Seus olhos dourados, porém, olhavam para o terapeuta como se este ainda fosse uma criança.

— Você tem toda razão, Mathias — ela respondeu.

Mathias arqueou as sobrancelhas, surpreso com a rápida aceitação de suas ideias. Em um lampejo de intuição, ele pensou que Onírica também o estava manipulando.

— Você tem muita razão, o que é indispensável para viver no “mundo real” recheado de leis físicas, teorias psicológicas e regras sociais. Deste ponto de vista, eu manipulei todos para viverem o que eu mesma desejaria viver. Porém, do meu ponto de vista, eu corrigi aspectos causados pela minha ausência. Eu estou apenas consertando as coisas: Júlia, Sara e Eric só estão acessando o que sempre existiu dentro deles, mas que nunca puderam conhecer, pois lhes faltava a chave para isso.

Mathias absorveu as palavras, mas não teve tempo de elaborar a próxima pergunta. Não era tão simples discutir sobre valores com alguém que não vivia neste mundo.Ao perceber que Mathias queimava neurônios, Onírica disse:

— Tenho uma ideia: por que você não convoca Sara, Júlia e Eric para uma reunião e lhes conta toda a verdade? Deixe que eles decidam se foram mesmo enganados por mim ou não. Mas você precisará se despir de toda racionalidade científica para fazer isso — Onírica sorriu. — Fique tranquilo, você não será tomado como louco. Lembre-se de que os três já sonharam comigo. E você também. O terreno já está preparado. Do mundo dos sonhos, posso enxergar a possibilidade dos três se tornarem amigos e, talvez, algo mais que isso no caso de Eric e Júlia. Ainda dá tempo, eu acho. 

— Foi para isso que você visitou meu sonho, não é mesmo? Você quer que eu os aproxime.

— Sim! Diante da minha ausência no “mundo real”, Júlia, Sara e meu irmão Eric não puderam se conhecer, mas o destino, em sua trama misteriosa, quis que os três permanecessem indiretamente conectados a um ponto em comum: você! Uma grande coincidência, ou melhor, sincronicidade, não acha? Por um enorme acaso, só possível mesmo num universo fantástico como é este em que todos nós vivemos, aceite isso você ou não, os três deram um jeito de se aproximarem. As dores de cada um os levaram ao Mathias, este excelente e empático terapeuta — Onírica levou uma das mãos ao peito e fechou os olhos. — Talvez eu tenha dado um empurrãozinho. Seria muito difícil disso acontecer se eles não tivessem um conhecido em comum no “mundo real”. Façamos um trato. Se você os reunir, prometo não os visitar mais. Aliás, prometo não projetar meus sonhos e desejos em mais ninguém. Nenhum sonho, como você diz, será manipulado de agora em diante. Trato feito?

Sem esperar uma resposta de Mathias, Onírica levantou-se e caminhou em direção ao portal. Antes de passar por ele, virou-se uma vez mais e lançou uma piscadela. Depois de atravessado, o portal se fechou.

E Mathias acordou. Havia dormido debruçado sobre a mesa de estudos, em cima dos livros. O sol já se infiltrava pelas cortinas da janela. Espreguiçou-se. Conferiu a biblioteca. Estava intacta. Nenhum livro no chão, nenhum portal aberto. Havia sonhado mesmo. Por mais de meia hora, andou de um lado para o outro, contemplando seus livros, seus artigos e suas anotações. Notou que havia repentinamente se desinteressado pela grande maioria das obras científicas das quais dispunha. Teve desejo de ler algo mais fantasioso. Teve desejo de escrever sobre seu sonho sobrenatural. Teve desejo de abrir a mente para o desconhecido e o inexplicável.

Depois, em movimentos lentos, revisitou sua agenda em busca dos contatos de Júlia, Sara e Eric. Sentia que precisava lhes telefonar.                



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