PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: MARIANNE LOBO — CATEGORIA CONTO
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SOBRE A AUTORA
Sou Melissa de Mattos Pimenta, cientista social, doutora em Sociologia e professora no Departamento de Sociologia da UFRGS. Escrevo desde os 11 anos de idade e sonho em ser escritora desde então. Entre minhas experiências literárias estão romances e contos que lidam com os dilemas cotidianos da contemporaneidade. Em outras palavras, minha escrita é profundamente influenciada pela sociologia e torna-se um espaço para fazer o leitor sentir aquilo que mais nos angustia na pesquisa sociológica sobre as desigualdades e vivências humanas. Assino meus textos como Marianne Lobo, em homenagem à grande socióloga Marianne Weber e à inesquecível escritora Virgínia Woolf.
O CONTO SEMIFINALISTA
As Janelas de Tempo
A verdade é que ele o irritava. Não porque o tratasse mal ou falasse dele para os outros; eram coisas que ninguém percebia – disso tinha certeza – mas o intrigavam a ponto de desconcentrá-lo totalmente da planilha de custos que estava analisando. Pensou na coisa concreta, procurando identificá-la, mas não conseguiu; era preciso atacar o problema por outro ângulo. Decidiu enumerar, uma a uma, as ocasiões em que tivera a sensação de algo errado. Lembrou-se de uma tarde em que chovia forte, e JK – pois esse era o apelido do colega – entrou no escritório como se nunca tivesse saído, mesmo depois de terem se encontrado no restaurante habitual. Enquanto ele estava completamente seco, sem um fio de cabelo fora do lugar, Rogério era a própria imagem do desmazelo, molhado, desconfortável, inadequado, ao entrar na sala de reuniões com os sapatos encharcados e as calças respingadas até as coxas. Lembrou-se da última reunião com clientes, quando foram comer uma feijoada e depois estiveram toda a tarde acertando os detalhes do negócio. Lutara durante horas contra a sonolência provocada pela digestão – o que tornou todo o processo uma verdadeira tortura – enquanto JK – que parecia ter descansado tranquilamente a tarde inteira - apresentou os resultados do investimento de forma impecável, sem gaguejar ou esquecer um dado sequer... E agora, parecia ter acabado de voltar de férias. Até o tom da pele estava diferente, como se tivesse se bronzeado ao sol!
Rogério suspirou e voltou a se concentrar na planilha exibida no monitor à sua frente, maldizendo a si mesmo por tentar entender o impossível. Havia pessoas privilegiadas, cuja boa sorte na vida só podia ser explicada pelos desígnios obscuros de um destino cruel, que selecionava os eleitos segundo os critérios mais indecifráveis. Perguntava-se que diferenças fundamentais haveria entre ambos, já que ocupavam cargos equivalentes, levavam estilos de vida semelhantes e figuravam nos relatórios internos com os mesmos resultados de avaliação. Considerava-se uma pessoa honesta, trabalhador esforçado sem grandes ambições, a não ser a garantia de pequenos confortos pessoais – lugares comuns, sem ostentação ou maiores pretensões do que um motor 1.6 na garagem, uma boa garrafa de uísque dezoito anos para as ocasiões especiais e um plano de saúde com quarto privativo nas internações. JK é claro, era consideravelmente mais jovem, um pouco mais alto e certamente muito mais magro e do que Rogério, mas não era isso que o incomodava. Nem o rosto bonito, o cabelo claro e bem cortado, tampouco o sorriso muito correto. Era muito mais a superioridade que emanava dele, na postura nas reuniões, na segurança ao apresentar os resultados sempre à frente do seu setor, no tom quase arrogante com que se dirigia aos colegas. Rogério apenas suspirava e engolia em seco a inveja diante da injustiça inexplicável da vida.
Ora, não valia a pena perder tempo com conjecturas inúteis. Persistir era dar vantagem à dor de cabeça que já se insinuava pela têmpora direita. Levantou-se de súbito foi até o banheiro em busca de um minuto de solidão, em meio ao burburinho abafado dos colegas de trabalho em suas mesas e tarefas do escritório. Olhou-se no espelho e reconheceu o rosto rechonchudo, o bigode farto e os cabelos acobreados muito ralos nas laterais do crânio. Considerou a circunferência da cintura já debruçando por cima do cinto e sentiu-se um pouco mais velho. Entretanto, nunca se atormentara com a própria aparência. Não era do tipo que almejasse maior altura, menos peso ou uma aparência mais jovem. Tampouco incomodava a calvície. Suas ambições eram de outra natureza.
Mal havia acabado de abrir a braguilha para urinar quando notou pelo canto do olho que JK entrara no banheiro e, para piorar ainda mais as coisas, postara-se em frente ao mictório exatamente ao lado. Rogério fez um esforço para manter a cabeça erguida e os olhos fixos na parede de azulejos, mas o olhar sorrateiro e traidor desviou-se para a direita e fugiu ao seu controle, espiando com uma curiosidade quase genética os atributos do outro, esperando encontrar ali, ainda mais um motivo para se irritar com o colega.
Talvez o fato de não ter parado de pensar no assunto o dia inteiro o fez fazer a pergunta repentina, ou talvez tenha sido a necessidade desesperadora de uma resposta para suas indagações. Sem desviar os olhos da parede, sem mover um músculo da face, lançou o desafio:
─ Como você consegue?
─ Consegue o quê? - devolveu o colega, como se não houvesse compreendido.
─ Você sabe. Estar impecável, descansado, com tudo pronto, sempre. Antes dos outros, antes de nós.
─ Não sei do que está falando.
─ Passou o fim de semana em uma praia? Está com uma cor ótima - interrompeu, pensando que era um idiota, devia estar mesmo vendo coisas.
─ Ah... Deu pra notar, né? Bem...
─ Bronzeamento artificial?
─ Não...
Rogério terminara de urinar. Era hora de sair, ficar enrolando poderia apenas piorar ainda mais o constrangimento. Fechou o zíper, deu uma molhadela nas mãos e virou-se para sair, mas a curiosidade o vencera. Antes de se encaminhar para a porta, interpelou-o:
─ Na verdade eu só queria saber como você consegue estar sempre um passo à frente em tudo. Parece que nada te afeta.
─ Quer mesmo saber?
Um lampejo de alerta percorreu sua espinha quando o outro virou-se, ainda acomodando-se nas calças e arrumando o zíper, enquanto o encarava, com frieza. Um rapidíssimo cálculo mental o levou à conclusão de que talvez fosse melhor não saber - mas agora já era tarde. Sem poder se conter, ouviu surpreso a própria voz soar-lhe nos ouvidos ao responder, como se daquilo dependesse a própria vida:
─ Quero.
Tudo que seu colega fez foi manter aquele sorriso arrogante e pedir-lhe que o acompanhasse até o café em frente ao escritório, onde sentaram-se a uma mesa reservada. Rogério olhava impaciente ao seu redor enquanto o outro pedia dois expressos. Permaneceram em silêncio até que a garçonete trouxesse o pedido e só então falou, mirando Rogério – àquela altura já sentindo-se constrangido – nos olhos:
─ É uma janela de tempo.
Rogério ficou longos segundos sem dizer nada, esperando uma explicação.
─ Você abre uma janela de tempo, sai por ela, faz o que tiver de fazer então volta no momento seguinte ao que você saiu. Simples assim.
No intervalo em que se mantiveram em silêncio, Rogério procurou, primeiro, entender o significado do que o outro dissera. A princípio a ideia lhe pareceu tão absurda que, por um momento, teve a certeza de que ele estava brincando e aquilo era apenas uma piada de mau gosto, uma pegadinha dos colegas. Já se preparava para se levantar e abandonar o café, irritado, quando se permitiu pensar sobre a questão. Rogério respirou fundo e, baixando os olhos, considerou as possibilidades implicadas, o próprio significado da janela. Isso explicaria por que JK estava sempre bem-disposto. Uma pessoa que tivesse uma janela de tempo no meio da tarde poderia tirar uma sesta tranquilamente e só depois de estar descansado retornar ao trabalho. Poderia fazer um lanche se tivesse fome, escapulir de uma reunião entediante, procurar resolver um problema no meio do expediente e até mesmo.... Fugir? Viajar?
─ Quanto tempo uma janela tem? - perguntou, ainda seguindo a cadeia de raciocínio que o outro despertara.
─ Depende. Um minuto, dois. Ou o resto da vida. Você é quem determina.
─ Eu poderia sair por uma semana no meio de uma tarde de trabalho e retornar na mesma tarde?
─ Sim. Você pode passar quanto tempo quiser nesse intervalo, mas sempre voltará no minuto seguinte ao que saiu - explicou o outro.
─ Por onde se sai?
─ Para onde se sai, você quer dizer?
─ Bem, como você faz?
─ É simples. Uma vez adquirindo uma credencial, terá a habilidade de abrir a janela como e quando quiser. O ideal é fazer isso em um local reservado, pois algumas pessoas podem perceber que você saiu, assim, vamos dizer, sumiu no ar e apareceu no mesmo lugar alguns microssegundos depois, e isso gera perguntas desconfortáveis. Eu costumo usar banheiros, salas vazias, um beco, algo assim.
─ E onde você sai?
─ Digamos que é uma dimensão paralela. Você pode escolher se quer ampliar o acesso a essa dimensão. Pode ser a sua casa, a sua rua, a sua cidade, ou então... Todos os lugares. Porém, na dimensão paralela nem tudo é igual ao que você conhece. Geralmente a sua casa é outra, e as pessoas são desconhecidas, mas a estrutura do mundo é praticamente a mesma.
A explicação soou tão surreal que Rogério emudeceu por um momento. Tinha certeza, agora caíra na pegadinha, feito um patinho! Imediatamente sentiu um calor em torno do pescoço e percebeu o rosto enrubescendo, conforme se dava conta do papelão que deveria estar fazendo. JK, porém, continuava impassível, fitando-o com toda compreensão. Naquele momento, o café chegou.
Enquanto tomavam a bebida, ocupando-se dos pequenos gestos que preenchiam o silêncio constrangedor que se instalara entre eles, Rogério buscava uma saída para aquela situação.
─ Você deve estar achando isso tudo uma piada, mas posso lhe garantir, é bem real. Lembra-se a que horas foi ao banheiro?
─ Umas quinze para as quatro, eu creio.
─ Olhe para o seu relógio.
Rogério conferiu as horas. Ainda eram quinze e quarenta e seis.
─ Meu relógio parou.
─ Exatamente. Veja, o meu também está parado - disse o outro, exibindo o mostrador no braço esquerdo. ─ Isso é porque estamos em uma janela de tempo.
Rogério pensou que aquilo poderia ser apenas uma coincidência, mas a dúvida pouco a pouco ia se instalando. Se estivessem mesmo em uma janela de tempo, poderiam ficar naquele café o quanto quisessem.... Decidiu testar a veracidade do que ele estava dizendo. Olhou o relógio na parede do estabelecimento e marcou as horas mentalmente.
─ Ok. Digamos que você está me dizendo a verdade. Vamos passar mais um tempo aqui dentro. Posso pedir algo para comer?
─ Esteja à vontade.
Rogério pediu uma fatia de torta de limão e uma água mineral. Esperaram juntos que o pedido fosse atendido e seu colega observou-o enquanto comia, em silêncio. Depois, pediram a conta e retornaram ao escritório, sem dizer nada um ao outro. Rogério marcou bem o horário em que saíram do café. Entraram novamente no banheiro e JK disse:
─ Olhe para o seu relógio agora.
Eram quinze e quarenta e sete. O relógio voltara a funcionar, inexplicavelmente. Para tirar a prova, Rogério conferiu seu relógio do computador, o mostrador sobre a mesa da secretária e perguntou as horas para sua colega de setor. Embora tivessem estado quarenta minutos no café, somente um minuto se passara desde que entrara no banheiro masculino e saíra com o colega. Estupefato, Rogério permaneceu incrédulo, procurando uma resposta para aquela incrível demonstração. Seria um truque? Ilusionismo? Sem saber o que pensar, procurou seu colega antes de retornar à sua mesa.
─ Isso é incrível! Como conseguiu fazer isso?
Foi então que ele sorriu, de maneira enigmática, olhou ao redor como se estivessem sendo observados e, aproximando o rosto, disse, sussurrando:
─ Você quer mesmo saber?
A coisa toda era um bocado mais complicada do que parecia no início. Sentaram-se por cerca de meia hora em uma das salas de reunião desocupadas naquele dia e JK procurou explicar, da melhor maneira possível, o que significava obter uma credencial. Rogério procurou prestar atenção, mas a ideia tomara tamanha dimensão, que ele perdeu trechos da explicação enquanto imaginava o que poderia fazer com uma janela de tempo. Poderia ir ao banheiro todas as vezes que quisesse e levar o tempo que fosse necessário antes de retornar à sua mesa ou a uma reunião. Poderia descansar após o almoço, fazer uma sesta como nos finais de semana. Pensou na possibilidade de sair num sábado à tarde e viajar para o interior... ou até mesmo para fora do país. Era como ganhar na loteria inesperadamente. Um mundo de possibilidades abriu-se diante dos seus olhos.
─ Rogério. Você prestou atenção no que eu disse?
─ Desculpe, estava divagando. Pode repetir?
─ Isto não é para qualquer um! Na verdade, é muito perigoso. O tempo gasto na janela de tempo é descontado da sua linha da vida. Significa que três minutos em uma dimensão paralela são três minutos a menos de vida. Quanto mais tempo você passar em outra dimensão, menos tempo viverá nesta.
─ Como é que é?
─ Se você passar muito tempo em uma janela, pode não conseguir mais voltar. É preciso muita força de vontade para retornar ao trabalho depois de meses de férias em outro lugar. Você pode morrer na outra dimensão, ou então passar tanto tempo fora que, quando voltar, as pessoas não te reconhecerão. Você estará um velho gagá, que ninguém saberá de onde veio.
─ Puxa... Não tinha pensado nisso.
─ Geralmente as pessoas não pensam. Esquecem que, mesmo na janela, o tempo passa.
─ Mas os relógios ficaram parados!
─ Relógios da sua dimensão. O relógio do café onde estávamos continuou a andar.
Rogério ficou em silêncio, pensando sobre as implicações. Realmente, no início parecia muito tentador, mas e se ele gastasse muito tempo fora? Seria do tipo que abandonaria sua esposa, seus filhos, para viver numa dimensão paralela? Como dosaria o tempo extra sem saber...
─ Como sabemos quanto tempo temos?
─ Não sabemos. Você pode sair por uma janela por uma semana e morrer até mesmo antes de voltar, porque nessa dimensão você viveria até os quarenta e morreria em um acidente de carro. Ou pode viajar anos e anos e ainda viver aqui até ficar um velhinho de cento e nove anos. Ninguém sabe quanto tempo tem.
─ Parece um empreendimento muito arriscado. Por que aceitou uma coisa dessas?
Um sorriso matreiro insinuou-se nos lábios do colega, que o fitava com um ar de cumplicidade.
─ Pelo mesmo motivo que o fez me perguntar como eu faço isso... – respondeu JK, enigmático.
A resposta do colega inicialmente o deixou confuso, mas pouco a pouco se deu conta de que era esse o problema que o vinha atormentando há tantas semanas! Desejava, na verdade cobiçava, ser como ele, estar sempre um passo adiante em relação aos outros. Queria estar no controle da situação, fazer as coisas como melhor lhe aprouvesse, sem estar sempre atrasado, correndo atrás do relógio. Um peso enorme caiu de seus ombros. Toda a sensação de urgência, o tempo que não tinha para executar suas tarefas diárias, o sono sempre insuficiente, as viagens eternamente adiadas, tudo se tornou passado diante da possibilidade de ter acesso a uma janela de tempo. Sem pensar duas vezes, perguntou ao colega:
─ Como faço para obter uma credencial?
O processo todo foi relativamente rápido. Depois das explicações, combinaram uma data para a formalização do negócio. Seu colega contataria o supervisor das janelas e o pagamento seria efetuado no mesmo dia, mediante a assinatura de um contrato. Rogério trocaria sua alma pelo direito de acessar um portal para a dimensão paralela BX952, na qual poderia estar na mesma casa onde morava, frequentar o mesmo bairro, cidade, estado, país e planeta de residência original sem, contudo, ter acesso às pessoas com as quais se relacionava habitualmente. Somente aqueles que possuíam credenciais transitavam pelas janelas de tempo. Isso também evitava a perda de referência, uma vez que a frequência de uso da janela de tempo poderia causar esquecimento em relação à qual dimensão o usuário estava originalmente ligado. O supervisor mencionou qualquer coisa acerca do caso de um sujeito que esqueceu qual era a sua vida original e desapareceu na dimensão paralela ao não sair mais dela.
A coisa da troca da alma pelo acesso às janelas era um tanto cômica e Rogério não levou a ideia a sério. Se aquilo realmente funcionasse, seria apenas uma mera formalidade, já que sua preocupação era o quanto aquilo lhe custaria. Se tivesse que desembolsar uma quantia à vista, ou então fazer um financiamento, teria ficado preocupado, mas sua alma? Como isto seria possível? Parecia uma piada de mau gosto, mas naquele momento, tudo o que importava era verificar, com os próprios olhos, se era mesmo verdade tudo o que JK lhe dissera e se a experiência no café não passara de um grande truque. Talvez aquilo fosse uma enorme brincadeira, e no final do dia ele se veria exposto ao mais completo e absurdo ridículo, ao assinar um contrato daquela natureza. Parecia uma grande roubada, mas a curiosidade tomou conta dele de tal forma que nenhuma outra consideração era possível a partir do momento em que a ideia se formou em seu imaginário.
O acesso à janela era extremamente simples. Bastava apertar o minúsculo chip na sua nova credencial que uma passagem sutilmente indicada por uma linha luminosa se abria à sua frente. A luminosidade não seria percebida por outras pessoas não credenciadas, e a discrição ao entrar e sair por uma janela de tempo era uma recomendação para evitar perguntas desconfortáveis de pessoas extremamente observadoras.
Tão logo obteve sua credencial, Rogério pôs-se a usá-la. Seu primeiro teste foi sair alguns minutos antes de uma reunião de equipe e fazer um passeio até uma confeitaria próxima ao escritório, onde tomou um café, comeu uma fatia de bolo e leu o caderno de esportes até ter certeza de que chegaria pelo menos meia hora atrasado. Contudo, ao retornar ao escritório, ainda aguardou cerca de cinco minutos até a reunião ter início, pontualmente às dez horas.
A experiência causou-lhe tamanha satisfação que seu trabalho naquele dia foi pouco produtivo. Saiu mais duas vezes na mesma tarde, deu uma volta a pé e aproveitou o tempo ensolarado, apenas observando as pessoas na rua e as vitrines. Depois, foi até o parque, onde gastou duas horas estendido na grama, olhando para o céu e imaginando inúmeras coisas que gostaria de fazer com sua nova fortuna... de tempo.
Primeiro, decidiu que jamais se atormentaria outra vez com os prazos absurdos que a empresa lhe impunha para entregar análises de custos, relatórios e tudo o mais que tanto o infernizava em seu trabalho. Gastaria o tempo que fosse necessário para montar as apresentações de resultados e nunca mais entraria em uma reunião sem ter total domínio de todos os assuntos a serem tratados. E se a reunião fosse depois do almoço, dormiria uma boa sesta antes de começar. Melhor ainda, dormiria depois do almoço todos os dias! Nunca mais lutaria contra o sono na frente do monitor! Aliás, almoçaria com toda a calma na outra dimensão e só depois de estar suficientemente descansado retornaria ao trabalho. Entregaria tudo em dia, garantiria todos os bônus e aumentaria sua participação nos lucros com excelentes avaliações de desempenho! Quem sabe conseguiria ser promovido a gerente de área? Ou então... alcançar algum cargo de direção? Poderia fazer aquela tão adiada pós-graduação na outra dimensão...! Será que o certificado teria validade? Consultaria o colega acerca deste detalhe, tão logo fosse possível. Finalmente conseguiria deslanchar na carreira! Rogério tinha vontade de rir, pular, gritar, jogar tudo para o alto! Sentia o mundo aos seus pés.
Naquela noite mal conseguiu dormir. Sua cabeça fervilhava de planos. Considerou o que o colega lhe dissera - deveria ter cuidado ao dosar o tempo que passava dentro da janela. Era tentador simplesmente abandonar tudo e passar a viver em outra dimensão. Mas a ideia pela qual se apaixonara era poder usar a janela de tempo para levar uma vida mais confortável e prazerosa, livrando-se da eterna sensação de nunca ter tempo para nada.
Primeiro, deixou-se ficar na cama até sentir-se completamente descansado. Passou a se levantar às seis da manhã, pontualmente, e ir até o banheiro, onde abria a janela de tempo e voltava a se deitar na outra dimensão. Conseguia dormir mais três ou quatro horas e só então retornava, para tomar banho e sair, descansado e bem-disposto, pronto para o trabalho. Com isso, deixou completamente de se preocupar com o horário em que se deitava e simplesmente dormia o quanto pudesse na outra dimensão. Em pouco tempo convenceu-se de que obter a credencial foi a melhor coisa que fizera na vida.
Paulatinamente, foi modificando a sua rotina diária. Chegava pontualmente ao trabalho, participava das reuniões e saía para almoçar sozinho. Nesse intervalo, comia na outra dimensão, em lugares que não tinha tempo para frequentar, apreciando a gastronomia e degustando os cardápios como se estivesse num final de semana qualquer, sem pressa. Tomava um café e ia sempre caminhar no parque, aproveitando para fazer uma longa sesta sob ou sol, ou quando chovia, voltava para sua casa e só retornava ao escritório cerca de quatro horas depois. Também passou a utilizar a janela de tempo para preparar os relatórios e análises de custos de modo a estar sempre adiantado em relação aos colegas.
Com o tempo distribuído dessa forma, decidiu ocupar-se com coisas que sempre adiava para depois. Matriculou-se em uma academia de ginástica e começou a fazer musculação. Algumas semanas depois, ingressou em um clube de tênis. Inicialmente, o maior número de atividades acumuladas em um período real de vinte e quatro horas, mas efetivamente vivido em trinta e seis ou até quarenta e oito horas, deixou-o um bocado cansado. O tempo ganho na janela fazia-o sentir que precisava ir para a cama por volta das seis da tarde. Era como se estivesse vivendo em dois fusos horários ao mesmo tempo. Passou então a fazer ajustes, limitando o tempo que passava fora por dia e organizando suas atividades de modo a não sobrecarregar o organismo. Encaixou mais um dia na semana de trabalho, inteiramente despendido na janela de tempo, para adiantar todas as coisas do escritório e, então, acrescentou mais um dia inteiro ao final de semana, depois dois, para dedicar-se exclusivamente ao lazer. Assinou uma quantidade de canais de streaming e passou a acompanhar a liga de basquete, os campeonatos de tênis e outros esportes para os quais nunca tinha tempo suficiente para se dedicar. Passou a frequentar o cinema regularmente e descobriu que gostava de ir ao teatro. Nunca mais levou trabalho para casa, exceto na outra dimensão. Aos poucos, percebeu que podia passar mais tempo no final do dia em companhia da esposa e dos filhos.
Porém, logo se deu conta de que não faziam nenhuma atividade juntos. Sempre chegara tarde do escritório e não tinham o hábito de sentarem-se à mesa para jantar. Sua mulher preferia assistir à novela e seus filhos estavam sempre na internet. Certa noite, convidou a mulher para ir ao cinema, e ela não lhe respondeu, voltando os olhos para a trama que se desenrolava no canal aberto depois do jornal. Tentou comprar comida em restaurantes interessantes que descobria na outra dimensão e levar para casa. Estabeleceu um horário fixo para estar de volta do trabalho e passou a pôr a mesa, chamando a esposa e os filhos para comerem com ele. Por algum tempo, o desconforto e o estranhamento natural deram lugar à curiosidade, mas os assuntos pouco evoluíam para além dos lugares comuns: conversas vazias sobre o tempo, os vizinhos, a escola e o time de futebol. A verdade é que nunca tivera tempo para conviver com sua família e estar disponível para eles agora não significava que eles teriam a mesma disponibilidade ou interesse. Sentia-se como se fosse um estranho em sua própria casa. Resignado, propôs a si mesmo explorar outras possibilidades em sua realidade e dentro da janela.
No início, fazia apenas pequenos passeios nos arredores, depois tirou um fim de semana para viajar ao litoral e, finalmente, decidiu antecipar o período de férias. Fez um empréstimo no banco e comprou um pacote de sete dias em Natal. Pensou em levar sua esposa, mas sua credencial não autorizava o trânsito de terceiros para a outra dimensão. Embora nunca tivesse viajado sozinho na vida, a experiência o agradou muitíssimo. Fez todos os passeios oferecidos no pacote, comeu bem todos os dias, desfrutou do sol, da areia e da água do mar, e conheceu Helena, uma mulher um pouco mais jovem que sua mulher, divorciada e... disponível.
Naquele momento, Rogério entrou num impasse. O desejo de aventurar-se em uma sequência infinita de dias ensolarados, praias exuberantes e um romance extraconjugal fizeram-no considerar a possibilidade de não voltar mais à dimensão de origem. Pensou com enfado no trabalho no escritório, na rotina familiar insípida, no olhar vago e desinteressado da vida de sua esposa e aquilo tirou um pouco o brilho das férias. Como se despertasse de um sonho, deu-se conta de que a janela era imperfeita, exatamente porque era um espelho invertido de sua própria vida. O encanto de abandonar-se completamente ao ócio e ao cultivo dos prazeres para os quais jamais tivera tempo desvaneceu-se quando percebeu que tudo o que vinha fazendo até ali dependia do seu trabalho na empresa, do salário ganho com tanto esforço e dos anos de dedicação a uma vida profissional difícil, mantida a duras penas. Sua família, sua casa, as pessoas que dependiam dele, formavam a base da sua existência alheia, do seu desfrute roubado, do seu hedonismo recém-descoberto. Pois era o mesmo Rogério quem pagava por tudo aquilo, com seu salário e dias que deixaria de viver no futuro, em nome de uma alegria tão efêmera quanto a vida de uma borboleta.
Ao retornar da viagem, toda a disposição inicial desapareceu. No escritório, passou uma semana infernal, produzindo pouco e maldizendo cada minuto em que passava sentado à mesa, analisando custos de negociações de terceiros, para gerar lucros sobre os quais tinha pouquíssima ou nenhuma participação. De repente, sentiu um misto de ódio e indignação contra aquela realidade à qual estava preso, janela de tempo ou não. Para que lhe serviam dias seguidos de lazer despreocupado, se não detinha os recursos para desfrutá-lo? Sentia-se como um andarilho perdido no meio de um deserto que, subitamente, encontra uma fonte, mas um abismo intransponível o separa da água vital. Frustrado e deprimido, alegou uma indisposição súbita e deixou o escritório, caminhando a esmo pela cidade.
A certa altura, viu-se diante da vitrine de uma loja de penhores, e decidiu entrar para ver quanto conseguiria pelo seu relógio. O funcionário que o atendeu foi muito solícito e esclareceu todas as suas dúvidas. Enquanto ouvia o homem, Rogério fixou o olhar em um anel com brilhantes que estava numa bandeja com diversas outras peças em ouro. Sem pensar muito sobre o que fazia, pediu para ver de perto uma pulseira que disse reconhecer como tendo sido de sua mulher, mas tão logo a pegou, devolveu-a ato contínuo e, pedindo desculpas pelo engano, deixou-a cair sobre o tampo de vidro, de onde a mesma deslizou para o chão, do lado de dentro do balcão. Enquanto o funcionário se abaixava para pegar a pulseira, Rogério se desculpava e discretamente colocava o anel com brilhantes no bolso do paletó. Agradeceu mais uma vez o funcionário e despediu-se, saindo o mais rápido possível da loja.
Assim que se viu na rua, tratou de entrar numa lanchonete perto dali e foi ao banheiro, onde passou pela janela de tempo e saiu logo em seguida na outra dimensão. Com a mão no bolso, dirigiu-se à loja de penhores da outra dimensão, onde deixou o anel, levando consigo uma boa quantia em dinheiro. Naquela mesma tarde, abriu uma conta num banco, e começou a fazer planos.
A estratégia era bem simples. Rogério cometia pequenos crimes na própria dimensão e, rapidamente, escapulia para a outra. Comprou uma pistola calibre 38 no mercado negro da internet e uma valise com fundo falso, onde guardava a arma e os pertences roubados. Começou no ramo de penhores, depois entrou em contato com revendedores de ouro e joias que não se importavam com a origem das mercadorias. Sempre trajando roupas sóbrias, formais, procurava esconder as características mais evidentes que o tornariam reconhecível nas câmeras de segurança. Perucas para disfarçar a calvície, apliques falsos de costeletas e cavanhaques, óculos escuros, chapéus variados foram adquiridos aos poucos em sites de acessórios para o teatro. A cada assalto, um disfarce diferente, rapidamente removido assim que chegava à outra dimensão. Especializou-se em identificar estabelecimentos cujos arredores tinham falhas na segurança, como câmeras falsas ou sem recursos de gravação. Selecionava cuidadosamente suas rotas de fuga, como banheiros públicos e provadores de lojas. Sempre entrava primeiro sem o disfarce, para que as câmeras captassem Rogério, o consumidor habitual das redondezas, e saía pronto para a ação, tendo deixado do outro lado da janela de tempo a valise com o disfarce e a arma. Rápido e incisivo, em pouquíssimos minutos já estava de volta à dimensão paralela, carregando consigo joias, relógios e equipamentos eletrônicos roubados. Alugou um carro com o qual se dirigia aos seus clientes e, em pouco tempo, havia construído uma boa reputação no submundo do contrabando.
Com o passar dos meses, os ganhos com as revendas superaram seu salário, os bônus e a participação nos lucros da empresa na qual trabalhava, o que o fez considerar demitir-se do emprego. Mas como manter a aparência de respeitabilidade para sua esposa e seus filhos? Após duas semanas atormentando-se entre diferentes respostas e possibilidades, tomou coragem e pediu demissão, sem nada dizer à mulher. Todos os dias, repetia a mesma rotina, saindo de casa no mesmo horário, como se fosse trabalhar. Alugou uma pequena sala comercial e ali passou a manter uma empresa de consultoria de fachada, onde planejava cuidadosamente os assaltos, armazenava os produtos roubados e depois saía para revendê-los na dimensão paralela. Tomava o cuidado de estabelecer intervalos irregulares entre os crimes, atento às notícias que saíam na imprensa e à possibilidade de ser descoberto pela polícia. Na janela de tempo, usufruía dos rendimentos da venda das joias, desfrutando de um estilo de vida sofisticado e cosmopolita, que incluía restaurantes caros, viagens na classe executiva, entre outros confortos com os quais sempre sonhara, mas jamais imaginara ter.
Certo dia, dirigindo-se ao banco ainda pela manhã, pouco depois de despedir-se da esposa e dos filhos, encontrou JK a caminho do escritório. Um calafrio percorreu todo seu corpo, imaginando se ele desconfiava dos motivos da sua demissão e do estilo de vida – alternativo – que vinha levando na outra dimensão. Estranhamente, ao fazer contato visual, pareceu-lhe que o outro não o reconhecera. Parou no meio da calçada e manteve o olhar fixo, esperando o cumprimento, mas JK simplesmente o ignorou, distraído. Por um momento, ficou desapontado. Imaginara – ainda que por apenas um segundo – que ele perguntaria como iam as coisas. Teria ficado satisfeito em agradecer mais uma vez pela credencial e dizer como estava indo bem, como tinha mudado de vida, a ponto de largar o trabalho e dedicar-se a todas as atividades para as quais nunca tivera tempo, mas o outro passou por ele sem pestanejar. Ligeiramente desapontado, pensou em voltar atrás e convidá-lo para um café, na esperança de... contar sobre a carreira criminosa que vinha seguindo? Revelar sua vida dupla com Helena, as viagens ao exterior com dinheiro de joias roubadas? Subitamente horrorizado diante da possibilidade de alguém descobrir seu segredo, encolheu os ombros, sobressaltado, e olhou para trás. Foi então que viu o colega, já do outro lado da rua, parado, fitando-o. Mas o que o aterrorizou não foi a constatação de que não apenas havia sido reconhecido, mas a certeza de que JK sabia de tudo. Era o mesmo sorriso que ele exibira no rosto quando fez a pergunta: “você quer mesmo saber?” Um sorriso verdadeiramente... diabólico.
Em pânico, Rogério pôs-se a correr em direção ao escritório onde mantinha a consultoria de fachada. Chegou completamente sem fôlego e trancou-se lá dentro. Apavorado, fechou as persianas e pôs-se a andar de um lado para o outro, procurando entender o que havia acontecido. JK era a única pessoa que sabia da janela de tempo. Naturalmente deveria conhecer todas as possibilidades de usá-la. Como jamais conversara com ninguém a respeito, não tinha como saber quantas pessoas dispunham de uma credencial, exceto por ele. Talvez por essa razão se assustara! Mas ora, por que haveria de se preocupar? Em sua sala alugada mantinha apenas papeis referentes à sua própria empresa. Os produtos dos assaltos, bem como sua arma, eram mantidos em um cofre do outro lado da janela de tempo. As únicas pessoas com quem se relacionava na dimensão paralela desconheciam sua real identidade. Suas transações eram efetuadas em dinheiro vivo, sem recibos e os depósitos eram feitos em nome de sua empresa, sem a intermediação de terceiros. O contrato! Subitamente, Rogério lembrou-se de que assinara um contrato com diversas cláusulas sobre o uso de sua credencial. Uma cópia ficara com ele, mas não se lembrava do seu conteúdo. Cada vez mais nervoso, procurou entre os papeis da firma, depois dentro do cofre, na sua casa dentro da janela, sem sucesso. Depois lembrou-se que o deixara na sua própria casa, na última gaveta da mesinha de cabeceira. Ainda estavam no meio da manhã – não era possível ir até lá sem levantar suspeitas. Maldizendo sua própria imprudência, Rogério pôs-se a revisar todos os detalhes dos seus planos, procurando identificar brechas que poderiam comprometê-lo. Finalmente, deu-se conta de que a sorte estava lançada. Se havia algo que lhe passara despercebido, certamente ele saberia dizer. Consultou o relógio pela enésima vez. Estava quase na hora do almoço. Tomando coragem, telefonou para o escritório da antiga empresa e pediu para falar com o colega.
─ Olá, Rogério. Tudo bem com você?
─ Sim, quer dizer, claro. Como vai?
─ Soube que deixou a empresa. Aconteceu alguma coisa?
─ Não, não, apenas gostaria de convidá-lo para almoçar. Que tal agora ao meio-dia?
─ Perfeitamente. Encontro você ao meio-dia – respondeu JK, desligando o telefone.
Por alguns minutos, Rogério permaneceu em pé, ainda inseguro. Foi até o banheiro e lavou o rosto, pois transpirava copiosamente. Pensou em desistir do encontro, mas a curiosidade o venceu. Fechou a porta cuidadosamente atrás de si e dirigiu-se ao elevador.
Encontraram-se num dos restaurantes habitualmente frequentados pelos colegas da firma. Ainda nervoso, Rogério enumerava as perguntas que gostaria de fazer sobre as janelas de tempo, mas a cada vez que abria a boca para dizer alguma coisa, encarava o sorriso impassível de JK e emudecia. A conversa girou em torno de amenidades e, em nenhum momento, seu ex-colega fez qualquer menção à sua saída do emprego, ao contrato, à credencial ou à janela de tempo. Aos poucos, a conversa foi minguando e Rogério arrependeu-se de tê-lo convidado. Terminaram de comer e pediram a conta, que foi igualmente dividida entre ambos. Alguns segundos antes de se levantarem da mesa, porém, JK disse, mirando-o com aquele olhar arrogante que Rogério tanto detestava, mas que agora o aterrorizava:
─ Eu sei o que você está fazendo. Espero que esteja se divertindo, mas tome cuidado. Não esqueça que tudo tem um preço.
Rogério piscou duas vezes e abriu a boca, sem proferir som algum. JK levantou-se e piscou para ele, com aquele sorriso absolutamente diabólico e o deixou sozinho. Uma sensação gélida o invadiu, e Rogério deixou o restaurante a passos largos, completamente apavorado. Fora descoberto! Mas como? Não via JK há meses e jamais cruzara com ele desde que saíra da empresa, nem nessa, nem na outra dimensão. Dirigiu-se à própria casa o mais rápido que pôde, maldizendo a si mesmo por tê-lo convidado para almoçar. Ao chegar, deixou o molho de chaves cair no chão duas vezes antes de conseguir abrir a porta, de tão nervoso que estava. Não havia ninguém em casa. Aliviado, respirou fundo algumas vezes, tentando recobrar a serenidade. O contrato! Rogério correu até o quarto e abriu a gaveta da mesa de cabeceira com tanta força que ela caiu no chão, espalhando todo o seu conteúdo pelo tapete ao lado da cama. Revirou os pertences que haviam saltado para todo lado, mas não encontrou papel algum. Procurou na mesa de cabeceira de sua mulher, depois nas gavetas onde guardava seus documentos e papeis, e no fim gastou boa parte da tarde procurando, sem sucesso. Estava a ponto de desistir quando pensou que deveria estar guardado do outro lado da janela de tempo, no cofre da empresa de fachada. Saiu correndo sem trancar a porta de casa e tomou um táxi ali mesmo na esquina, até o edifício onde alugara a sala comercial.
Antes que pudesse entrar no prédio, entretanto, foi abordado por dois policiais à paisana, que imediatamente o declararam preso por roubo e enriquecimento ilícito. Rogério foi algemado e conduzido à delegacia, onde passou algumas horas desconfortáveis sendo confrontado com imagens de suas ações ousadas. Aos poucos, deu-se conta de que não havia saída possível e, tendo sido pego em flagrante, foi colocado em uma cela, preso preventivamente, até que o processo fosse apreciado por um juiz. Sem conseguir desvencilhar-se do horror que a perspectiva de passar anos encarcerado lhe causava, Rogério entrou em pânico e, tão logo viu-se sozinho, acionou sua credencial e passou logo para a outra dimensão. Porém, esqueceu completamente de que a janela de tempo abria em uma dimensão em muito semelhante à sua e, do outro lado, encontrou-se em uma cela exatamente igual à que fora confinado. Desta vez, contudo, encontrou como companheiro de prisão JK. O colega, que estava impecavelmente trajado, como se estivesse pronto para uma reunião de trabalho, olhou para ele com aquele sorriso diabólico e disse:
─ Ora, ora Rogério. Pois então, o que aconteceu com você? Parecia que estava indo tudo bem!
Rogério olhou para ele, envergonhado, sentindo-se derrotado. Sem saber o que dizer, cobriu o rosto com as mãos e começou a soluçar.
─ O que eu faço agora? O que será de mim?
─ Você deve estar se perguntando como veio parar aqui.
─ Pois é isso mesmo, não sei! Tomei todos os cuidados, nunca deixei que ninguém me visse, sempre planejei tudo, nos mínimos detalhes!
─ Não teria deixado escapar alguma coisa? Pense!
Rogério levou as mãos à cabeça, puxando pelos cabelos que não tinha mais, girando o corpo em busca de uma saída, em vão. No tempo em que estivera na outra cela, permanecera em silêncio em um canto, revisando todos os seus passos e decisões, examinando os próprios erros, procurando uma resposta. Desesperado, murmurava alto, como se conversasse consigo mesmo. De repente, um ruído estranho interrompeu seus pensamentos e ele olhou em volta, imaginando que alguém estivesse chegando, procurando-o e seu rosto se iluminou, mas era apenas JK, que o fitava rindo. Uma gargalhada gorgolejante, que brotava dos seus lábios esticados em um sorriso demoníaco.
─ Rogério, meu caro Rogério. Você tinha tudo para usufruir da janela de forma tranquila e honesta, mas enveredou pelo caminho mais fácil. Mas você é igual a todos os outros... – disse JK que, em seguida, desapareceu no ar, abandonando-o ao seu desespero.
Rogério também foi processado e julgado, na outra dimensão, condenado a uma pena longa de doze anos e nove meses, por ter violado a cláusula número 95 do contrato, a qual estipulava que as ilegalidades cometidas na dimensão original poderiam ser aplicadas na dimensão para a qual se transferia por meio da janela de tempo. JK foi o juiz e, durante todo o julgamento, manteve o sorriso impassível que tanto o irritava. Transferiram-no para um presídio estadual, onde foi colocado em uma cela com mais outros quatro detentos, todos os quais também tinham credenciais para viajarem por dimensões paralelas. Rogério deu-se por perdido, desfez-se em lágrimas de desespero e arrependimento, mas tudo o que conseguiu foi prolongar seu próprio sofrimento. Havia vendido a alma ao diabo, e agora pagava o preço da sua cobiça. Resignou-se à própria sorte e passou longos anos oprimido pela vergonha, consumido pela autocomiseração. Levou muito tempo até decidir retornar à sua dimensão original e encarar sua família, pensando que, talvez, sua esposa pudesse ajudá-lo, contratar um advogado e recorrer de qualquer sentença a que tivesse sido condenado. Porém, quando retornou, ela não o reconheceu. Havia envelhecido a tal ponto que ninguém sabia quem ele era, tampouco o que estava fazendo ali, pois sequer era o mesmo homem que os investigadores tinham perseguido e apanhado em flagrante. Foi solto no mesmo dia, sem ter para onde ir. Perdera sua fortuna, sua casa, sua família, suas referências e, mais do que tudo, seu precioso tempo de vida. Caminhou a esmo pela cidade, até que se viu em frente ao escritório onde trabalhara. Reconheceu o porteiro e acenou para ele, mas não foi correspondido. Por um minuto, desejou estar diante de uma planilha de custos, fazendo cálculos, sem pensar no que faria depois. Sem vínculos empregatícios, sem identidade, passado ou futuro, sentou-se num banco de praça. Naquela tarde de quinta-feira, pouco antes de começar a chover, Rogério Avelino de Castro morreu, no dia em que completaria cinquenta e dois anos, tendo vivido entre aqui e acolá, setenta e seis.
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