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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: MARÍLIA MANCINI CASTILHO — CATEGORIA CRÔNICA

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SOBRE A AUTORA


Paulistana, nascida em 1997, caçula de dois irmãos.

Dedica a eles a inspiração de seus primeiros textos: rabiscos e mais rabiscos em que tentava, admirada, imitar a elegância de suas letras cursivas…

Graduada em Administração pela FEA-USP, com um feliz desvio, este ano forma-se psicóloga pela PUC-SP.

Em 2024, foi destaque em antologia do Selo Off-Flip, na categoria Crônica.

Escreve quando dá na telha - usualmente quando o telhado está meio capenga.



A CRÔNICA SEMIFINALISTA


Sabiá-laranjeira


— Vou ter que me mudar.

Foi isso que me disse, em um almoço despretensioso, uma amiga que não era nem um pouco afeita a imprevistos. Cogitei logo uma questão financeira, talvez de relacionamento, estaria se divorciando?

Busquei não demonstrar espanto nem indiferença – não era nem um nem outro que a situação exigia. Apesar do meu esforço, só alcancei uma expressão um tanto ambígua, talvez mais próxima do que eu gostaria da chamada “cara de paisagem”.

— Vai, diz, o que você acha? Por que me olha assim?

Nesse tipo de situação, uma boa saída é arriscar uma pergunta. Uma pergunta qualquer, não alguma em específico. As perguntas sempre dão uma chance a mais ao interlocutor de desviar a coisa toda para onde ele quiser. Uma afirmação há que se descontruir, contra-argumentar, retrucar. Uma pergunta pede resposta e pode-se responder o que bem quiser.

— Não sei, de onde veio isso?

Curiosamente, a resposta foi precisa:

— Ai, olha, a verdade é que veio de um pássaro. Um pássaro que por algum motivo pia às 3 da manhã.

Dei risada, não me contive. Uma risada solidária, de quem não duvida da imensa variedade de dificuldades que pode se enfrentar para ter uma boa noite de sono.

Depois entramos nos detalhes mais técnicos, quão alto piaria um passarinho? Passarinho pia ou passarinho canta? Às vezes, o entendimento que você tem da coisa faz você se relacionar de uma forma diferente com ela. Fosse um canto bonito, poderia ser até um privilégio. Quem sabe não valorizaria o imóvel?

Nesse dia, à noite, me peguei observando mais atentamente os barulhos da minha própria casa. Nada de pios, nem de cantos, só um carro ou outro. Secretamente, senti um fio de inveja do problema da minha amiga. Tantos problemas para se ter com um imóvel, e o dela sofria de passarinho. Nada de chuveiro queimado, vazamentos, vizinho barulhento... Só passarinho.

— Pássaro. Para de chamar ele de passarinho. É muito carinhoso. Eu vou gravar e te mandar, você vai ver como é irritante.

Dito e feito. A sinfonia estava gravada. Era bem característica e não dava para dizer que não era afinada. Começava assim: piiiiuu piiiiuu. Depois repetia, piiiiuu piiiiuu – talvez aqui fosse o refrão. E, com uma pausa um tanto dramática, o canto final: piu piu.

Passaram-se alguns dias sem se tocar no assunto. Já ia me esquecendo do vilão, quando recebo a seguinte mensagem no celular:

— Eu descobri. É um sabiá-laranjeira. Agora vou descobrir como mata.

Antes de terminar de ler, já torcia para ter me enganado. Às vezes leio sem óculos e me escapa coisa ou outra.

— Como assim, como mata?

— Mata, ué, como mata um bicho desse. Não aguento mais. Ontem inclusive notei que meu vizinho também acordou.

Protestei. Questionei, reclamei, argumentei como pude. Era questão profunda que se discutia ali, sobre vida e morte, que direito teríamos nós sobre a vida e a morte?

— Vou pensar. Agora vamos mudar de assunto? Não aguento mais falar dele.

Eu mesma passei dias diferentes. Cruzei tantos pássaros, me comovi com todos eles, nunca havia notado a beleza das pombas. Quando via um passarinho, sentia até um incômodo no estômago, um começo de gastrite. Não imagina esse sabiá o quanto torci por ele. Só não rezei porque não sabia, meu ateísmo tinha me servido até ali. No auge do meu desespero, até torci pelas laranjeiras - quem sabe o nome não tivesse também relação com elas.

Na próxima vez em que nos encontramos, tive até medo de perguntar. Pensei em não tocar mais no assunto, fingir que esqueci, que me preocupo com o trabalho ou coisa qualquer. Mas me escapou:

— E o sabiá?

Para a minha surpresa, a torcida pelo passarinho e pelas laranjeiras surtiu efeito:

— Sumiu. Desapareceu.

— Do nada?

— É, do nada.

E mais nada. Do lado dela, nada, nenhuma expressão de alegria. Nem mesmo sinal de alívio... Tinha a cara fechada, fechada como quem sofre de passarinho às três da manhã... Não, pior. Fechada como quem sofre, mas não sabe bem de quê.

— E tem dormido melhor?

Senti a coisa efervescer. Minha impressão era de que ela se irritou com a pergunta, com o assunto inteiro. Disse que ainda não estava dormindo bem, mas que com certeza ia melhorar, afinal, ela dormia perfeitamente bem antes do pássaro.

Exigente como sempre foi, suspeitei que ela se irritava com a própria falta de desempenho em uma tarefa tão simples quanto... dormir. E agora, não havia mais algoz. Não havia pássaro a quem se pudesse culpar. Não havia piado, canto, sinfonia a que se apontasse o dedo.

O dedo ficaria ali, desapontado, quase que o indicador perderia a força de se manter esticado frente aos outros dedos, que antes se curvavam encolhidos respeitando a coragem do primeiro. De repente, um braço colado ao corpo, a mão apontada para baixo, ninguém específico a se dirigir.

A solução que ela encontrou, não cheguei a saber. Me peguei, na verdade, admirada com o passarinho. Não tanto pela sua sinfonia, nem pela laranjez da sua barriga, mas pela sua coragem de estufar seu peito de passarinho e cantar às 3 da manhã. Honrar sua arte independente de ela ser tomada por algoz. Afinal, sabe-se lá a quantos não cairia bem um sabiá-laranjeira a quem culpar.



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