PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: MAURIZIO RUZZI — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros

- 7 de ago.
- 6 min de leitura

SOBRE O AUTOR
Cão miserável, verme rastejante, mentiroso maldito, descendente de uma raça de ladrões e rameiras, sangue marcado por todas as pragas e todas as maldições. Má companhia, azedo como o vinagre de uvas crescidas na lama pútrida de um cemitério pagão. Vaga por essa terra urrando suas calúnias imundas, e se há justiça no mundo ele deve ser banido de toda vila, povoado ou cidade onde tentar fixar seu lamentável esqueleto.
Por algum motivo impossível de se compreender, dado que os desígnios dos deuses fogem à compreensão do espírito humano, é cercado de boa gente: mulher, família, amigos, parceiros e comparsas. Pessoas de fibra, caráter, com história e queixos erguidos mais por coragem do que por orgulho. A sombra de tais pessoas é a única coisa digna que pode ser vista neste homem.
O CONTO SEMIFINALISTA
Lítométatôrazinóide Sulfúrico
Eu às vezes sonho com o futuro. Eu sei que é o futuro, um futuro talvez distante, mas não há nada, ou quase nada, que revele isso de imediato. Eu só sei que é o futuro. As ruas e as pessoas e as coisas são todas como essas agora à minha volta, os paralelepípedos são tão paralelepípedos como nossos próprios paralelepípedos, estes que vejo no chão em que piso, nesta rua tortuosa que subo, cheia de pequenas portas e janelas. As das casas estão geralmente fechadas, enquanto as dos comércios, abertas. Portas e janelas adentro estão as pessoas, que falam e se movem, ou simplesmente olham para a rua, esperando brotar algo de novo da realidade maçante que as envolve.
Sigo subindo, é uma longa e íngreme ladeira, e é bem possível que eu não tenha escolhido o melhor dos caminhos. Mas agora é tarde para mudar, quando passar de frente a uma tasquinha qualquer entro e me refresco. Uso o tempo gasto na subida para pensar nesse futuro que sonho de vez em quando. Tem uma coisa faltando nesse futuro, uma coisa da qual gosto, mas nem sempre me apercebo disso. Tantas vezes tudo passa como se fosse um dia comum, um dia enfadonho qualquer, daqueles em que não prestamos atenção em nada, em que não sentimos falta de nada, a não ser talvez de algum prazer em estar vivo. Mas há os dias em que é explícito, a coisa lá faz falta, uma falta que dói no peito como uma saudade órfã, qual a que sente um pobre velhinho com Alzheimer, que esqueceu de quem sente saudades, mas das saudades não esqueceu. Ele só suspira e olha para o céu com uns olhos doloridos e vazios.
Essa coisa faltando no futuro dos meus sonhos é poesia. É um futuro sem poesia. Com o tempo os livros se foram, só sobraram uns tantos, eletrônicos, mas ninguém queria poesia eletrônica. Ninguém queria ouvir poesia declamada por um rosto numa tela, e então ninguém mais declamou poesia. E ninguém mais escreveu poesia. E ninguém mais sequer se lembrou da poesia.
Mas alguém lá sabia que a poesia iria um dia, sim, fazer falta, que acabariam procurando por ela, e olharam nos livros e nas enciclopédias (eletrônicas…), procurando por um substituto. E perceberam que poderiam imitar a poesia, fazer uma poesia artificial com umas drogas potentes e uns choques elétricos. Eram drogas com nomes longos, horríveis, Lítométatôrazinóide Sulfúrico, ou qualquer coisa assim. Isso, e mais uns 15 volts na altura das pálpebras.
Nos sonhos que a poesia sintética aparecia de frente, nesses eu suava frio. Mas não acontecia muito. Como disse, em geral em meus sonhos os dias futuros eram como outros quaisquer. Eu não dava pela falta de nada. Balancei a cabeça, tentei tirar a imagem da minha memória, e ao parar, quase ofegante, vejo a tasquinha que tanto queria encontrar. Entrei sem pensar.
O lugar era agradável. O ar lá dentro era fresco, o calor foi embora assim que entrei. Tinha um cheiro de café delicioso que decidiu por mim o que eu iria tomar. Sentei de frente ao balcão sem escolher o lugar, e me vi ao lado de um homem de uns quarenta anos, expressão séria, pequenos óculos ovais e um bigode que parecia deslocado no tempo. Mas logo apareceu alguém para me atender, que não pareceu surpreso quando me ouviu pedir o café. Aguardei impaciente, esfregando as mãos, olhando para os lados e sem parar quieto um instante sequer. Eis que chega o café, o atendente o coloca à minha frente, porém muito próximo a um jaleco branco cuidadosamente dobrado, que sem dúvida pertence ao meu vizinho quase bicudo de tão circunspecto.
Puxei o café para mim, fazendo um movimento exagerado para deixar claro que estava tomando cuidado com a peça de vestuário ao meu lado. Meu vizinho ignorou completamente a pequena cena. Mas aquele jaleco tão obstinadamente branco e tão laboriosamente dobrado acabou por conquistar totalmente minha atenção. Por algum motivo quis saber de onde ele vinha. Fui direto ao ponto:
– Meu amigo, decerto esta é sua vestimenta de trabalho, não é mesmo?
– É – foi a brevíssima resposta, dita sem virar o rosto, sem piscar, sem mover um músculo além da mandíbula.
Deixa estar, bruto, deixa estar. Posso perdoar um pouco de falta de cerimônia.
– E com que o amigo trabalha?
– Na indústria.
Indústria? Não podias ser mais genérico, pensei comigo. Acontece que não tenho medo de respostas curtas, nem mesmo de monossílabos.
– Mas exatamente o quê faz o amigo?
Agora ele não tinha escapatória, ele precisaria responder algo de concreto se quisesse demonstrar um mínimo de educação. Mas o desgraçado não titubeou:
– Você não entenderia.
Era demais. Ou meu vizinho era o supremo mandatário dos antissociais, ou estava tão desatento, tão absorto em seus próprios pensamentos, que não tinha a menor noção de sua grosseria. Apostei desleixadamente nisso, e continuei:
– Tente lá, meu amigo, eu sou um rapaz esperto, talvez eu entenda.
Qualquer um teria rido dessa resposta. Qualquer um. Ou um riso surpreso, envergonhado, de quem subitamente percebe a própria grosseria, ou um riso sarcástico, cheio de escárnio e desprezo. Qualquer ser humano com algum sangue nas veias teria rido. Mas não, meu vizinho não riu, não se dignou a olhar para o lado. Apenas soltou mais uma palavra:
– Duvido.
Até aqui eu estava sendo educado. Falante demais, concordo, mas educado. Porém, já que é assim…– Pois eu duvido que trabalhes. Acho que és um vagabundo. Não fazes nada, por isso não pedistes nada e estás aí, a olhar para o vazio. Não tens dinheiro para pagar nem por um copo de água da torneira.
Agora o desgraçado vai no mínimo virar para mim, pensei. Mas não. Ele só respondeu, impassível:
– Eu posso provar.
Sua pequenina pessoa finalmente se moveu, e tirou algo do bolso de seu jaleco dobrado. Quando mexeu na peça, pude ver o nome “Fernando” bordado no bolso, em letras azuis e chamativas. Colocou sobre o balcão um pequeno frasco, e nele pude ler claramente:
"Lítométatôrazinóide Sulfúrico".
Dei um passo para trás, horrorizado, derrubando a banqueta em que estava. Então meu vizinho levantou-se, e finalmente olhou para mim.
Fitei seu rosto, incrédulo, ainda caminhando para trás.
– Quem é você?
– Quem sou eu, seu idiota? Não me reconheces? Eu sou o poeta da indústria!
Meu coração batia furioso. Com muito custo, parei de recuar, mas meu vizinho não deixava de avançar, seu rosto chegando cada vez mais perto do meu, sua boca contorcendo-se cada vez mais num sorriso que parecia que lhe viraria do avesso.
– Você tem nome?
– Fernando.
Raios, eu sei, sei que é Fernando… mas não pode ser. Não você, não você, não você!!! Você está indo para Sintra, num carro emprestado, você está na janela de casa gritando pelo Esteves da tabacaria. Você não está aqui!
– Fernando… Fernando de quê, Fernando o quê?
– Não é óbvio? Fernando…
Meu coração disparou além dos limites do humano, enquanto aquela enorme boca se preparava para martelar o nome em minha cara. Eu tinha um medo tenebroso, infinito, desesperador do que estava para ouvir, do que sabia que iria ouvir.
– Fernando MÁQUINA!
Acordei gritando, encolhido num canto da cama, segurando o lençol amarrotado, qual fosse um escudo desesperado em frente ao rosto.
Lentamente recuperei o fôlego, enquanto secava o suor do rosto no lençol que ainda tinha nas mãos. Apostando que a brisa noturna faria me sentir melhor, levantei-me e fui para a janela. Abri-a completamente e me apoiei no parapeito, debruçando o corpo para fora. Mas a noite não me fez bem, muito pelo contrário. Os sons distantes da cidade insone, as luzes maquinais acesas, os anúncios piscando ao longe, nada disso me confortou. Ah, diabos, o que pode fazer um homem com medo do futuro? Fechei a janela ao sentir no rosto uma lufada de vento gelado.
Mas agora eu já não tinha a opção de simplesmente acordar gritando.




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