PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: SIMONE NEJAR — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros

- 23 de jul.
- 25 min de leitura

SOBRE A AUTORA
Simone Janson Nejar Loba, ou Simone Nejar, como é mais conhecida, nasceu em Porto Alegre em 02 de janeiro de 1970, em uma família que se notabiliza pela arte, literatura e incentivo da cultura em geral. Advogada de profissão, mas também chefe de cozinha, publicou em 2012 o livro Entre Palavras e Panelas, que perambula entre a biblioteca e a cozinha, contando as histórias dos pratos que apresenta. Entre Palavras e Panelas foi lançado na Feira do Livro de Porto Alegre em 2012, e a Autora teve o prazer de autografá-lo ao lado do tio, Carlos Nejar, que também autografava naquele dia. Atualmente morando na cidade gaúcha de Gramado, Simone gosta especialmente de escrever contos e crônicas, que disputam seu tempo com a atividade cada vez mais volumosa da advocacia, entretanto, a paixão pelos livros e pela criação literária sempre encontram guarida em seu cotidiano. Para o futuro, a ideia é escrever mais contos e menos contestações, aumentando a literatura e diminuindo a advocacia.
O CONTO SEMIFINALISTA
L A B I R I N T O
Faltavam exatos trinta dias para o Natal. Regina estava atordoada com o trágico falecimento de Antônio, assim, de repente, infartado em seus braços, no momento em que descia do táxi, chegando ao hospital. Eram quatro da madrugada quando o táxi parou na emergência, Antônio falava de um jeito estranho, parecia que algo borbulhava em seu peito. Regina viu que se tratava de algo bem sério desta vez, só que, antes mesmo de ser atendido, Antônio arregalou os olhos e caiu para trás. Regina atirou-se embaixo do marido para que ele não se machucasse com a queda. Só que a queda foi fatal, ele ficou ali mesmo.
Horas depois, agindo de modo automático, Regina, agora sentada no banco da funerária, ainda não acreditava no que acontecera. Desejava ardentemente que se tratasse de mais um de seus pesadelos, quando acordava toda suada no meio da madrugada e Antônio a acalmava, fazia-lhe carinho, colocava-a no ombro até que dormisse novamente, agora em paz, protegida de qualquer mal. Mas as horas iam passando e ela não acordava, e uma sensação de estrangulamento foi tomando conta de seu ser.
É certo que nos últimos meses as coisas andavam tensas entre ambos, e que ela sentira até raiva dele, a ponto de mandá-lo embora de casa, mas isso já era demais. Sabia que mais dia menos dia os dois voltariam a se acertar, mas agora, sentada na capela mortuária ao lado do corpo do marido, isso já não era mais possível. Antônio parecia dormir, e estava lindo, mais bonito do que normalmente estaria, pois na funerária tinham-lhe feito a barba e metido um terno cinza. Terno ele só havia usado no dia do casamento, por sinal. Uma tia telefonou e pediu uma foto do morto, já que não poderia atravessar o Estado para o velório. Regina fotografou o marido e mandou a foto. Nunca a apagou depois disso, faltou-lhe coragem. Meses depois, tinha o estranho hábito de olhar a foto para dar mais um adeus a Antônio. Quando ficava triste, olhava a foto; embriagava-se, chorava, olhava a foto, chamava o marido. Completamente bêbada, pedia-lhe que viesse buscá-la. Não suportava a dor de viver longe dele.
Depois que Antônio se foi, Regina perdeu o rumo, afinal, foram tantos anos juntos... Chegando o Natal, ela fugiu de todo e qualquer contato com outras criaturas. Queria ficar sozinha, sozinha, sozinha, e as pessoas insistiam em convidá-la para todas as festas da cidade, e não houve vizinho ou parente que não a convidasse para passar o Natal em sua casa. Ela agradecia, a pessoa insistia, ela tentava não ser mal-educada, mas queria mesmo era ficar sozinha, encerrada em seu mundo de lembranças, onde apenas os dois estariam presentes. Trancou-se em casa, atirou-se num sofá com seus cachorros e lá ficou. E veio o Ano Novo, e mais convites, e mais sofá. Se não tinha a menor condição de sorrir, para que estragar a alegria dos outros? Também a incomodava que sentissem pena dela. Queria, tão-somente, que a deixassem quieta com suas lembranças, onde o mundo era mais seguro.
E os meses se passavam, e ela continuava letárgica, mas ia levando as coisas do jeito que dava. Os filhos a rodeavam, os amigos a cuidavam, ela até perdeu uns quilos, se ajeitou, deixou o cabelo crescer. Mas não se sentia bem. O luto não a vencera, mas a derrubara, e ainda não se tinha recomposto de tudo aquilo.
O ano virou. Empurrada por duas amigas, que na realidade só queriam carona em seu carro, foram para a festa de Réveillon numa boate da cidade, a Esfinge. “Que chato” - pensou, mas foi, com sua roupa toda branca – como se isso importasse! – no meio daquela multidão de branco. Parecia um centro espírita ou um terreiro de batuque, alguém comentou.
Sentou-se à mesa e começou com sua sequência de martinis, espumantes e o que mais tivesse aparecido por ali. Já nem queria sair, mas agora que saíra, o negócio era tomar um trago, e dos bons. Ninguém ia reparar mesmo. Ano novo, trago novo. E enquanto as companhias dançavam, ela ia enchendo o estômago quase vazio.
A Esfinge contratara um grupo para cantar. Não cantavam lá muito bem, mas a plateia estava animada, virada de ano, é que nem o Carnaval, ninguém sabe por que está pulando, mas, simplesmente, pula-se e comemora-se sabe se lá o quê... tinha uma cantora, uma gordinha simpática, e um magrelo, os dois alternavam o microfone, cantando um repertório variado. Regina pediu secretamente que não cantassem nada sertanejo, que detestava, e tudo ficaria em paz com mais alguns drinques.
Ela já estava mais para lá do que para cá, já virara uns oito martinis, fora os espumantes que bicava aqui e ali dos copos das amigas. Olhou para o palco e achou um tédio estar ali. Foi então que Baco lhe mandou a ideia brilhante... levantou-se, foi até o banheiro, deu uma olhada no espelho. Achou-se bonita, não estava com a melhor cara do mundo. Para falar a verdade, estava com a maior cara de bunda, mesmo. Aquela cara do “comeu e não gostou”. Deve ser a abstinência sexual, pensou, suspirando.
Caminhou até o palco procurando parecer sóbria, esboçou um sorriso e pediu o microfone à cantora, a fim de dizer algumas palavras. A gordinha simpática, que não esperava por aquilo, rapidamente pensou e julgou que sim, a criatura poderia ter algo importante para dizer àquela altura da madrugada, alguma mensagem de paz, qualquer coisa assim. Ademais, ela estava cantando há mais de duas horas e sua bexiga precisava ser esvaziada com urgência. Oportunidade de ouro! O colega tinha ido buscar uma cerveja e a deixara sozinha no palco, teria que cantar sozinha. Passou o microfone a Regina e saiu correndo pro banheiro. Ela pegou o gatilho e começou o seu discurso:
- Boa noite a todos e Feliz Ano Novo. Feliz Ano Novo para quem precisa de um pouco de felicidade. E quem não precisa nos dias de hoje, não é mesmo? Então eu pedi o microfone aqui para todos nós fazermos uma sessão de terapia coletiva. Isso mesmo, vamos iniciar o ano com um bom papo, pra ver o que está dando errado e mudar essa porra toda logo no início. Vamos fazer algo diferente hoje. E vai ser em favor da minha vida e da vida de todo mundo que estiver aqui.
O pessoal nas mesas se agitou. Não sabiam que a Esfinge tinha preparado uma atração na festa de Réveillon. Assim, ouviram atentamente o que a animadora ia fazer a seguir e Regina, muito animada com a atenção, prosseguiu:
- Como eu estou dizendo, o meu nome é Regina e eu estou aqui pra ajudar a todos. A minha vida está inserida no mesmo Cosmos que a de vocês. Não existe “lá fora” do Universo. Então, se eu conseguir ajeitar o meu lado, todo mundo vai ficar mais feliz no mundo. E quem sabe a gente não faz uma grande terapia e mais gente consegue se ajeitar também?
O pessoal se olhava... que tipo de animadora viria com um papo chato desses em plena festa de Réveillon? Típico papo de bêbado... porque todo bêbado filosofa, afinal...
- Olha, gente, no ano retrasado virou o ano e eu estava viúva... marido tinha acabado de morrer. Tive um Natal de merda, um Réveillon de bosta e pra ferrar com tudo de vez eu faço aniversário na virada... portanto, parabéns pra mim hoje..
A cantora, que voltara do banheiro, já estava apavorada por ter entregue o microfone para aquela maluca, aproveitou a deixa pra pegar o microfone de volta e dizer:
- Então vamos cantar o teu parabéns agora!
E a banda tocou o parabéns e todos cantaram, ansiosos por se livrar da criatura ali no palco. Por fim, após o parabéns, ela ainda tentou pegar o microfone, mas a cantora não deixou, apenas pediu que ela fizesse um desejo para o ano que se iniciava, e ela perguntou:
- Na verdade eu só queria saber se tem algum homem que preste aqui.
O povo desatou a rir da pergunta inusitada e a banda rapidamente voltou a tocar.
As amigas agarraram Regina pelo braço e a tiraram dali:
- Que merda foi essa, menina? Pára de queimar o filme, o teu e da gente, vamos embora que parece que tem uma festa boa ali no centro...
No dia seguinte, com uma ressaca daquelas, chegou a filha com a ideia brilhante do dia:
- Mãe, as suas amigas disseram que você fez o maior papelão ontem, que passaram vergonha contigo, que está todo mundo comentando que você pegou o microfone da banda ontem...
- Mais ou menos isso, acho eu. Estava de estômago vazio e bebi todas, queria dizer que não lembro mas infelizmente me lembro. Até onde me lembro, acho que estava procurando um cara decente no meio daquele povo. Vai que alguém se acusasse, né... entrei naquela porcaria procurando um cara que me lembrasse o seu falecido pai, alguém com uns dois metros de altura, quem sabe cabeludo...
- E tu achas que numa festa de ano novo ia aparecer um cara assim? Ah, fala sério.... ir buscar um Shrek, um ogro na Esfinge, mãe? Olha, vou te fazer um favor... vou criar um perfil num site de namoro pra ti. Aí tu te divertes e escolhes o teu neanderthal, ok?
E foi assim que Regina ganhou seu perfil no site de namoro. Gisele preparou um perfil com as preferências da mãe, suas melhores fotos, e deu uma selecionada básica. Não queria que a mãe, novata na coisa, esperando encontrar um namorado da altura de seu falecido pai, acabasse conhecendo um pigmeu ...
Regina, na verdade, achava que precisava de um oráculo, algo ou alguém que a aconselhasse com frases genéricas que ela lesse e que se adaptassem à sua realidade, para achar que lá em cima algo ou alguém se preocupasse com ela, já que Antônio se fora. Ela poderia ler uma frase tipo “ o nosso primeiro e último amor é… o amor-próprio" e achar que encontrara uma pérola de sabedoria, uma mensagem enviada de algum ser interplanetário que a visse como sua musa.
Tem gente que paga cartomante, pai-de-santo, todo este pessoal, a turma da “leitura fria”, que vai falando conforme a expressão facial e as respostas das perguntas que fazem. Gasta muito dinheiro e vai embora satisfeito, achando que encontrou alguém com todas as respostas para as perguntas do Universo…
Regina precisava justificar o fato de que não era perfeita, não porque não quisesse sê-lo, mas porque havia muita gente à sua volta que exigia que ela fosse. E foi assim que Regina curtiu no aplicativo o tal Marquinhos, que também a curtiu. Regina começou a conversar com mais dois ou três candidatos, só que depois de algumas horas de papo com Marquinhos, ele se sobressaiu aos demais, e ela começou a conversar direto com ele. E a conversa se estendeu na noite, e no dia seguinte, e no outro, no outro.... o sujeito parecia ter caído do céu... educadíssimo, fala mansa, tratando-a com o maior respeito, parecia encantador. Fizeram uma chamada de vídeo. O cara era muito interessante, certo que em nada se parecia com o seu tipo físico preferido, ou seja, um neanderthal, um ogro, um cara imenso, cabeludo e barbudo, mas talvez fosse mesmo a hora de mudar de gosto... enfim...
Os dias se passavam e parecia que os dois se conheciam há décadas! Já conversavam quase que o tempo todo, e Regina estava morrendo de vontade de pegar o carro e sair correndo atrás dele em Bertópolis, na tal Rua dos Pardais, em que ele disse que morava. Tentava se controlar, mas a carência era tanta que isso era quase impossível. A verdade é que a abstinência sexual a tornara carente e iludida.
Marquinhos tinha um estranho magnetismo e uma forte intuição. Parecia adivinhar todos os desejos da namorada virtual. Gostava muito de falar de si mesmo, de suas qualidades altruístas, de como ajudava as pessoas que se aproximavam dele, de como cuidava com carinho dos pais idosos. Regina ouvia embevecida aquelas histórias e jurava ter encontrado o grande amor de sua vida. Não podia mais ignorar isso!
Foi assim que em um dia simplesmente pegou a estrada com uma desculpa qualquer e foi atrás dele. Queria apenas vê-lo pessoalmente. Um breve olhar, uma avaliação, só isso. Estava tentando ser coerente, pensou. Pegou o carro, desceu até Bertópolis e ligou pra ele. Por coincidência, disse, estava passando pela cidade, e só queria dar um alô. Se ele estivesse ocupado, ela iria apenas parar o carro, dar um oi e seguir viagem.
Ele estava ocupado. Tinha que trabalhar logo mais, mas dispunha de uns minutinhos. Ela entrou no bairro, guiou para o endereço e parou o carro. A casa era extremamente simples, e ela intimamente censurou-se por estar discriminando alguém por sua casa. Ele veio até ela. Ela o achou muito interessante, forte, quase bonito. Podia até ser um pouco mais alto, mas, enfim, dava – e muito – para o gasto.
Trocaram um beijo. Ela sentiu gosto de vodka em sua boca. Eram 10h da manhã e ele tinha gosto de bebida na boca. Ela ficou meio chateada com isso, pensou, coitado, ele bebe. Seguiu viagem de volta para sua cidade, que ficava a 100 Km dali, e, continuando a conversar com ele, a lembrança do gosto da bebida desvaneceu-se. Ele era simplesmente tudo o que ela podia querer.
Mais uns dias se passaram e novamente ela desceu a Bertópolis para vê-lo. Desta vez, ele ia trabalhar dali a duas horas apenas. Ela sugeriu um motel, ele hesitou um pouco, afinal estava de bermuda, sem carteira, dali a pouco ia para o trabalho. Ela disse que não se preocupasse com nada. E dirigiu pro motel.
O test drive foi um sucesso. Marquinhos era doce, querido, uma máquina sexual! Ela saiu do motel com a certeza de que nunca tivera uma tarde como aquela na vida, e isso que era apenas a primeira vez! O cara era fenomenal, simplesmente o melhor cara que ela tinha tido, o primeiro depois que Antônio se fora. Saiu dali apaixonada.
E as vindas a Bertópolis começaram a se suceder, até que ela resolveu alugar um apartamento ali para ficar mais perto dele. E o sexo era a coisa mais maravilhosa que podia haver no mundo, e ele a tratava bem demais. Regina andava nas nuvens, rejuvenesceu, estava magra e linda, maravilhada com Marquinhos. E sempre era ela que pagava as contas, afinal, ele sempre esquecia a carteira... e ela nem estava se importando com isso, pura bobagem. Aquele sexo maravilhoso não tinha preço...
Só que de repente Marquinhos começou a ficar agressivo. Bebia e começava a xingar Regina, por nada. Foi demitido do emprego novo que tinha arrumado há poucos meses e mudou-se para a casa dela. Começou a beber dia sim, dia não, e quando bebia, atirava-a no inferno, xingando-a e acusando-a de traí-lo.
Regina passou a suportar aquilo em troca do sexo, que era maravilhoso. Só que agora sua vida passou a ser dois dias no paraíso, um dia no inferno. Dia de cerveja e churrasco era dia de inferno. Dia de jogo era dia de inferno. Dia de compras no shopping (geralmente de coisas para ele) era dia de paraíso.
Marquinhos aos poucos foi isolando Regina de sua filha, de seus amigos, de seus colegas. Achava-se no direito de vasculhar o celular dela à procura de supostas infidelidades, mas o seu celular era indevassável. Ele nunca largava o seu celular, e as notificações tocavam 24h por dia. Todavia, uma notificação no celular de Regina era motivo para ela ser chamada de cadela, de vadia, de puta – mesmo que fosse uma notificação de um vídeo de jardinagem de um canal do YouTube.
Acostumou-se a ser humilhada diariamente. Já nem respondia às acusações, afinal, ele era o dono da verdade absoluta, e ela, apenas uma pecadora, na melhor das hipóteses, ou uma vadia, cadela, prostituta e sabe lá mais o que, nos dias em que ele bebia. E ele bebia dia sim e dia não, e às vezes dia sim e dia sim também. Também a chamava de endemoniada.
Ela suspirava enquanto era ameaçada; convencera-se de que era tudo aquilo que ele dizia e mais um pouco, afinal, se permanecia ao seu lado com tantas agressões e impropérios dele, certamente era muito pior que ele. E se era pior que ele, que suportasse tudo muito quieta.
Marquinhos tinha algo muito estranho em seus olhos: costumava dizer que tinha olhos de lince, mas pareciam mesmo de chacal: olhos amendoados, muito pretos, havia algo terrível neles. Várias pessoas já haviam falado isso a Regina, mas o que viam de ruim, ela sentia como desejo.
A maneira dele olhar e de atacar lembrava um tubarão, o olho parado, preto, imóvel, e de repente, ela já tinha levado – o tapa, o soco, o empurrão. E com o tempo passando, ela já estava com praticamente todo o corpo marcado pelos ataques dele.
As pessoas já a tinham apoiado, oferecido ajuda, tomado suas dores, ajudado a cicatrizar suas feridas, seu joelho quebrado, o cotovelo roxo, o braço com os dedos dele marcados. Algumas vezes ela se afastou, mandou-o embora, terminou a relação e até tentou conhecer outro homem. Mas o tempo passava, a saudade batia e lá ela ia atrás dele, desesperada, igual um drogado em abstinência, tamanho o desejo, a saudade, a dor e o amor que insistia em permanecer na aridez de sua vida monótona e insossa. Sim, ela o amava, caso contrário, como poderia suportar aquilo tudo?
Da última briga conseguira ficar exatos quinze dias sem vê-lo. Durante este tempo, manteve-o bloqueado em redes sociais e tentou levar uma vida normal, sair com amigos, passear, foi ao psicólogo, e tudo parecia sob controle, até que uma madrugada chegou e ela, revirando-se na cama sem conseguir pregar olho, lembrando dele, garganta seca, corpo tremendo de desejo, agarrou o celular e o desbloqueou sumariamente. Precisava ver o que ele estava fazendo àquela hora. Sabia-o notívago, certamente estaria acordado. E exatos dois minutos após ele ser desbloqueado, ela recebeu a primeira mensagem dele. E respondeu. E muitas e muitas e muitas outras se seguiram. Lágrimas escorriam em seu rosto. A saudade falara mais alto novamente. Caíra na armadilha de novo…
Na manhã seguinte, sem muitas explicações, ela pegou o carro e tomou o rumo de Bertópolis. Combinara apanhá-lo na casa de um amigo. Já tinha vergonha dos pais dele, de tanto vai-e-volta, de tanto aparecer de madrugada na porta da casa dele implorando por atenção. A viagem foi rápida, ela simplesmente acelerou no mesmo compasso de seu coração ferido, cuja cura tinha nome: assim ela parou no tal endereço indicado por ele e quando o viu sentiu as pernas tremendo, o estômago revirando, a cabeça tonta... e correu, correu pra ele, não conseguia disfarçar o que sentia. Ele estava todo suado, de bermuda e camiseta sem mangas azul, e ela fez o improvável: começou a lamber seus braços, seu pescoço, sua boca, ela o lambia com fome, com fúria, e se ele a tivesse tomado nos braços ali, no meio da rua, ela teria feito sexo com ele ali mesmo, à vista das pessoas, como se fossem animais de rua, tamanho o desespero em que se encontrava...
E agora, relembrando esse dia enquanto ele a xingava, ela ficava quieta e baixava os olhos: sim, era muito pior que ele... que a xingasse, que a matasse, se quisesse, desde que ficasse com ela. Queria seu gosto, seu cheiro, queria tudo dele, nem que fosse a sua fúria. Já nem ouvia mais e já nem sabia do que era acusada. Ele usava fatos de seu passado, de quando sequer se conheciam, para chamá-la de puta, vadia, prostituta, cadela. Vai ver que era, sim.
Gisele sentia-se culpada por ter criado aquele maldito perfil para sua mãe e por ela ter escolhido – com certeza – o pior sujeito da face da terra. Só que Regina nem queria saber da opinião da filha, simplesmente se isolara com Marquinhos em algum apartamento na cidade dele. Pouco falava com a filha nos últimos meses, limitava-se a mandar dinheiro (escondido dele) para ela, que ainda morava em casa e era solteira.
Marquinhos dizia que a filha queria extorqui-la a todo custo, e ninguém, ninguém no mundo além dele, iria gostar dela ou amá-la por alguma qualidade sua: todos viam nela um cifrão, e só chegariam perto para lhe tirar alguma coisa, dinheiro, vantagens, etc.
Regina, cada vez mais isolada, mais machucada, mais reprovada por seus amigos, que dela se afastaram, acabou por acreditar nisso. Sim, Marquinhos que prestava, Marquinhos que a amava, ele sim lhe queria bem. Ele tinha aqueles modos estranhos, mas, coitado, era por conta do alcoolismo, e ninguém é perfeito. Ele bebia mas a amava, sem dúvida. O sexo entre ambos era a coisa mais maravilhosa que podia haver. Ele não poderia fingir tão bem. Ele a adorava na cama, era fato! Ela era viciada nele. Viciada em sexo com ele.
Ele tinha razão quando lhe dizia que ela era a melhor mulher do mundo na cama. Esforçava-se para isso. Entre quatro paredes, era perfeito, mas, fora da cama, tudo era desastroso. Ele não trabalhava, bebia demais, chegava a beber quase vinte litros de cerveja em 24h, isso sem falar nos destilados e no que mais houvesse para misturar. Ele a chamava de vadia, inventava casos para ela, imputava culpas, jurava que ela teclava com outros homens, vasculhava seu celular, e ainda ameaçava as pessoas que pensassem em curtir alguma foto dela em redes sociais.
O casal brigava, e alto. Os vizinhos do apartamento, não raras vezes, ligavam para a polícia, tamanha a gritaria. Em uma madrugada daquelas, enquanto ele a xingava, aos gritos, de tudo quanto era coisa, e ela o olhava, cheia de desejo, os vizinhos acionaram a viatura. Quando os policiais chegaram, ela disse que estava tudo bem, que o casal apenas discutira um tom acima do normal, e mandou a polícia embora. Queria que ele reconhecesse que ela sofreria qualquer coisa por uma boa noite de sexo com ele. Ele era a sua cocaína.
Atribuíra-lhe um toque peculiar de notificação no celular. A cada mensagem dele, e somente dele, ecoava aquele som. Com o tempo, e isso se deu muito rapidamente, aquele som passou a ser uma droga para ela. Cada vez que ele lhe mandava uma mensagem, não importava o seu teor, aquele som lhe causava um prazer incrível e louco. A mensagem, pouco importava: o que valia era ouvir a voz dele após aquela notificação, ainda que sua voz dissesse que ela ia morrer, o que ele dizia frequentemente. A química entre ambos era terrível, era irresistível, era fatal, e ela sabia disso, apenas não podia evitar. Aquela notificação personalizada era um verdadeiro orgasmo auditivo. Estava viciada.
No auge das bebedeiras, ele ficava onde estava, ou sentado, ou deitado, e dormia. Ficava de boca aberta, babando, e nada nem ninguém conseguiria acordá-lo naqueles momentos. Dormia um estranho sono comatoso. Entretanto, mesmo diante do cenário lamentável, ela o contemplava com olhos de paixão e compaixão. Olhando para ele, aqueles olhos puxados e pretos, malvados, achava-o lindo, e parecia impossível que ele pudesse, de fato, lhe fazer algum mal maior. Ele era apenas um cão que latia, mas que jamais a atacaria. Não para valer. Realmente acreditava que poderia mudá-lo. Seu amor imenso o mudaria, o curaria, o transformaria num homem de valor. Sim, ela e mais ninguém faria isso por ele. O amor tudo cura, ela pensava.
Gisele andava preocupada, apavorada, não sabia como ajudar a mãe a entender o que o sujeito estava fazendo com ela. Parecia-lhe óbvio que Marquinhos era um canalha, um gigolô, e que queria arrancar cada centavo de sua mãe, mas não sabia mais o que fazer ou dizer para que a mãe a escutasse. Já nem se preocupava mais com patrimônio ou dinheiro, temia, de fato, pela vida da mãe, que passava longas temporadas fora de casa e dava desculpas tolas para os hematomas nas pernas, nos braços, em locais visíveis.
Nunca Regina se havia machucado tanto: cancelou as massagens para esconder os hematomas da profissional; passou mais de um mês sem ir ver a filha em casa por conta de um olho roxo, resultado de uma cabeçada de Marquinhos, dada em meio a uma conversa trivial com ela. Já não sabia como esconder os machucados em seu corpo, e por isso se isolou, também.
Na rede social, o casal apenas sorria em fotos e vídeos, pareciam o espelho da felicidade, entretanto, os amigos próximos nada curtiam – apenas aqueles conhecidos com pouco contato curtiam as fotos, o que deixava Regina bastante chateada, e Marquinhos bem satisfeito. Afinal, não queria aproximação com ninguém. Ele a convenceu de que ela era apenas um cifrão para os outros. Sua vida nada valia mesmo, e ela passava um tempo todos os dias imaginando como seria bom ir para junto de Antônio lá do outro lado.
Regina aos poucos foi aprendendo como deveria se comportar quando estivesse com Marquinhos: aprendeu que andar de mãos dadas era algo raro, que deveria ser valorizado, um prêmio para quando ela se comportasse bem. Deveria andar sempre olhando para o chão. Esta lição aprendeu quando, ao saírem de um restaurante, ele acusou-a de olhar para um cara de dois metros de altura, sendo que ela sequer vira o tal sujeito. Se um homem bonito passasse perto dela, então que rapidamente abaixasse os olhos, para não ser acusada de olhar para ele. Lições do dia-a-dia. Tinha virado um cachorrinho adestrado por ele.
Enquanto ele a xingava, aos gritos, dentro do quarto, ela, com o olhar distante, arrancava um pelo na perna com a pinça. Queria parecer não notar que ele a estava humilhando, agredindo:
- Retardada! Porra loca! Imbecil!
Ela continuava sua depilação louca, dolorosa, fio a fio, com uma pinça. Doía nada perto do que ele falava. Sentia que talvez devesse se cortar, talvez abrindo uma fenda na pele a alma parasse um pouco de doer. Pensava em Antônio, sentia saudade, bebia, chamava por ele, queria que ele viesse buscá-la para acabar com aquele sofrimento louco.
Talvez Marquinhos quisesse que ela morresse logo, por isso aquele tratamento todo, ou talvez ele quisesse que ela mesma tirasse a própria vida, seria uma forma legal de matá-la sem sujar as próprias mãos, pois ela mesma se mataria, por ordem dele, sem comprometê-lo. Ela pensava que essa era a real vontade dele. Não suportaria uma infidelidade, não suportaria dividir o corpo dele com outra mulher. Simplesmente não suportaria! Já ele, não se importava de olhar para qualquer mulher que passasse na rua, e ela tinha que ouvir ainda que “olhar não tira pedaço”. Ele olhava descaradamente, mesmo. Um traste. Em segredo, para dentro, ela gritava “seu canalha!” mas externamente abaixava ou virava a cabeça e fingia que não notava. Ele sorria um riso diabólico, nestas oportunidades. Ela escreveu em seu diário:
“Que as lágrimas lhe escorram como um sorriso seco no deserto da tua alma, e a tristeza escorra, caudalosa, como uma avalanche de areia vermelha sobre onde já correu um rio. Que a sua vontade de gritar se traduza num longo silêncio que ninguém vai escutar. Afinal, ninguém quer escutar isso, nem mesmo você. Então, respire, suspire, sorria.”
E ela sorria, sorria chorando.
A teia
Em uma das muitas brigas que tiveram, Regina voltou para casa e conheceu Carlos. Ele era o oposto de Marquinhos, educado, carinhoso, cobria-a de gentilezas. A filha tentou apoiar a um possível relacionamento, convidou-o para almoçar, para jantar, para dormir na casa da mãe. Regina tentou, tentou, beijou Carlos, foi para cama com ele, uma, duas vezes. Tentava desesperadamente tirar Marquinhos da cabeça, do corpo, do coração.
Ele continuava bloqueado nas redes sociais, no WhatsApp, no telefone, mas de vez em quando ela o desbloqueava para espiar o que ele andava fazendo. Nestas oportunidades, geralmente ele postava músicas tristes, com letras que certamente eram indiretas para ela. Sabia que estava sendo monitorado e contava com seu charme irresistível e a dependência que havia criado na parceira. Era só aguardar. O desbloqueio era questão de pouco tempo.
Do outro lado, Regina estava de saco cheio de Carlos. À sua maneira, ele criara uma teia, enredando-a de todas as formas possíveis. Saía, almoçava e jantava direto com a filha e as amigas dela, e até um grupo de whatsapp chegaram a criar, “Gina feliz”, tendo uma foto dela sorrindo como imagem de capa. Estava completamente apaixonado, e como tal, acabou metendo os pés pelas mãos no pior momento possível.
Ela não gostara dele nem na cama, nem em lugar nenhum, apenas o aceitara, num momento de desespero, só que os dias passavam e o desespero, a abstinência de Marquinhos só faziam Regina sofrer ainda mais. Para piorar o quadro, Carlos mostrou-se excessivamente ciumento, obrigando-a a mandar sua localização em tempo real, o que a deixou furiosa, pois quem agia assim era o outro. Só que do outro ela gostava, de Carlos, não.
Por muito tempo pensou na figura de uma teia de aranha na qual tivesse inocentemente caído, como quem tropeça numa pedrinha e cai de um penhasco escondido. Agora, todavia, entendia que sua vida tinha sido transformada num jogo de xadrez. Naquele jogo, ela era a Rainha, não porque se achava ou o fosse, até porque sua autoestima era capenga, alguém lhe dissera. Tinha sérias dúvidas sobre isso. Ela apenas era a Rainha porque o jogo era a sua vida, alguém o transformara nisso.
Bom, a Rainha pode se movimentar para todos os lados. E a Rainha escolhe o seu Rei. E o Rei não tem valor de troca, já que não pode ser trocado por qualquer outra peça. Então por que tanta gente insistia em tirar-lhe o Rei? Por que Marquinhos não servia? Por que tinha que abrir mão dele?
Sim, queriam derrotá-la! Sua filha, suas amigas, o psicólogo, Carlos, queriam tirar dela o que havia de mais precioso em sua vida! Perder o Rei no jogo seria a derrota. Tentaram colocar um bispo no lugar do seu Rei, sim! Vestiram-no com vestes reais e tentaram impor sua escolha à Rainha, um verdadeiro complô! O próprio bispo ficou achando que detinha algum poder sobre ela, e começou a ditar-lhe regras e ordens, tal e qual o verdadeiro Rei. O asqueroso tornou-se um rei deposto antes mesmo de sê-lo! Quem nasceu para ser bispo, jamais será rei. Não enquanto eu for a Rainha, ela sentenciou!
E foi assim que Marquinhos foi desbloqueado e voltou à ativa. Em instantes, ela o havia desbloqueado, e, exatos dois minutos após o desbloqueio, ele retomou o contato. No dia seguinte, ela já estava na estrada indo atrás dele. Já ia sem muita esperança de que as coisas melhorassem, mas o vício nele a obrigava a ir.
E, de fato, a cada volta, a coisa piorava, ele ficava mais agressivo. Agora tinha ainda a ferida da traição dela com Carlos. Ela queria dizer que fora horrível, que Carlos fora péssimo na cama, mas se confessasse ter ido para a cama com outro, com certeza, ele a teria matado no ato. O sentimento de propriedade que ele detinha sobre ela fazia com que ele considerasse qualquer coisa uma traição, ainda que ocorresse quando os dois estivessem brigados. Sim, ela o traíra com o almofadinha do Carlos, o bonzinho, o bem-nascido, e agora teria que mentir, mentir, mentir, jurar de pés juntos que nada além de uns beijos ocorrera, sob pena de morrer.
A partir daquele dia, sob o fantasma do Carlos, a vida do casal tornou-se ainda pior, como se isso fosse possível. Marquinhos torturava Regina o tempo todo, atirando-lhe na cara que ele jamais a traíra, enquanto ela saíra com o primeiro cara que apareceu pela frente. Os xingamentos cresciam em progressão geométrica:
- Puta, puta, prostituta, cadela, tu foste a única mulher que eu nunca traí, e me fazes isso...
E ele especializou-se em bater sem deixar marcas. Ela andava com o corpo totalmente dolorido, machucado, mas agora, as marcas eram poucas. Tinha dor no seio esquerdo? Lembrava-se do soco recebido há dias. A dor era na panturrilha? Era o empurrão aquele. Perdeu a sensibilidade em uma parte do polegar devido a uma mordida dele, os dois dentes marcados, o sangue grosso brotando dos buracos no dedo..
Só que, por uma das últimas ocorrências contra ele, em que fora feito exame de corpo de delito, o Promotor ofereceu denúncia contra Marquinhos. Embora ela fizesse boletins policiais esporadicamente, quando a coisa ficava muito feia, ela sempre corria lá e retirava a queixa. Assim é que o sujeito tinha mais de vinte boletins de ocorrência por violência doméstica e nenhuma condenação, porque as vítimas sempre se compadeciam dele, como Regina, ou com medo mesmo, e retiravam as queixas. E assim ele seguia livre, fazendo o que bem entendesse com as suas mulheres. E não eram poucas.
O sujeito era um verdadeiro Don Juan no ambiente virtual. Fora dele não passava de um bêbado, um traste, um espancador de mulheres, mas na internet ele falava bonito, chamava todas as mulheres de “amada” e tinha uma coleção de dezenas de perfis escondidos em seu celular, que ele tratava de analisar para ver onde conseguiria alguma vantagem, que poderia ser apenas sexo, ou algum presente, ou uma rodada de cervejas, ou qualquer coisa que fosse. Não escolhia mulheres nem pela cara nem pelo corpo, mas pelo perfil.. mulheres com carro, independentes financeiramente, mais velhas, carentes, eram suas presas favoritas. Regina foi um prato cheio para ele, só que nunca foi a única. Sempre houve muitas mulheres, na internet e fora dela.
Embora fosse bonita, Regina estava excessivamente preocupada com a própria aparência. Marquinhos a convencera de que ela era pouco mais que lixo, e tinha adjetivos especiais para ela: barriga de égua, peito caído, coisas do tipo; só que ele fingia que era perfeito: aos 45 anos, careca, usava um boné para disfarçar e parecer um garotão. E tinha só cinco anos menos que Gina. Ela, sim, aparentava menos idade do que tinha, só que os ataques dele a faziam achar-se horrível, indigna de andar com aquele “bonitão”.
Ele tinha olhos estranhos, havia alguma coisa muito ruim neles. Muitas pessoas comentaram isso com Regina, mas onde eles viam maldade e sentiam medo, ela sentia desejo, muito desejo. O psiquiatra, que fora contratado para analisá-lo, mudou de opinião sobre ele várias vezes, e sobre ela também; ora dizia que ela tinha Síndrome de Estocolmo, ora dizia que todos merecem uma chance. Na verdade, estava mais interessado em dizer o que ela queria ouvir, pois ela pagava – e caro – pelas consultas. Antônio, apesar de partida prematura, deixara-a amparada. Marquinhos sabia disso. O psiquiatra sabia disso.
Regina custou a entender que Marquinhos criava brigas para fugir dela e ir encontrar-se com outras mulheres. Ficava se perguntando o que fizera de errado para ele ficar tão furioso a ponto de voltar para a casa dos pais. Sim, aos quarenta e cinco anos, o cara era solteiro, sustentado pelos pais e morava no fundo da casa deles, num quarto com confortos e luxos que em nada combinavam com a pobreza do lugar. Meses depois ela descobriu que a TV de 60 polegadas, assim como o som e o home theater, haviam sido “financiados involuntariamente”, digamos assim, por sua antecessora, a Joana.
No dia anterior, Marquinhos acusara-a mais uma vez de ter dormido com Carlos, e, muito indignado, avisou que estava voltando para a casa dos pais. Nestas horas Regina sentia um misto de alívio, pela iminente possibilidade de reaver sua liberdade, e de dor, pela falta que o sexo faria em sua vida. Sim, ela sabia, no fundo, que era apenas sexo que a prendia a ele. Não conseguia admirá-lo por absolutamente nada: o cara era um fracassado, bebia desde a adolescência, não adquirira sequer uma bicicleta e passava o tempo todo invejando os outros e largando o seu recalque contra tudo e contra todos. Não tinha amigos, os parentes o ignoravam, só mesmo os pais para aturá-lo. E ela. E as mulheres para as quais ele mentia.
Ela corria sério risco de vida, e sabia disso. Aos poucos, com o corpo todo machucado, sentiu que talvez ela estivesse buscando algum tipo de punição pela morte de Antônio, como se inconscientemente ela tivesse culpa disso. Não era algo consciente, mas ela buscava um algoz para, de alguma forma, aliviar seu sofrimento.
Em uma madrugada em que Marquinhos estava completamente bêbado, caído sobre uma cadeira, ela viu que seu celular estava desbloqueado, e rapidamente o pegou. Como encontrasse um pedido de senha para ter acesso ao WhatsApp, resolveu ver a galeria de imagens, a qual conseguiu acesso: ela viu dezenas de capturas de telas de mulheres nuas, em vídeo chamadas com ele, todas recentes: ele fazia prints da nudez das mulheres, talvez para depois extorqui-las, ou mesmo como um troféu de suas conquistas.
Como estavam pernoitando num motel, ela aproveitou o sono dele, vestiu-se, agarrou sua bolsa e saiu deslizando como pôde do quarto. Passando pela portaria, ainda pagou a conta, dizendo que o namorado ficaria até a manhã seguinte. Ainda tremendo de raiva e medo, embarcou em seu carro, acelerou e foi embora. Só depois de ganhar a estrada, de volta para casa, teve o cuidado de bloqueá-lo em todos os aplicativos possíveis.
Sentiu medo, muito medo, de fraquejar novamente e voltar àquela situação. Foi então que, no banheiro do estacionamento do posto de gasolina, reconheceu que se o seu corpo estava machucado, parecia que sua alma havia cicatrizado. Ali mesmo, ajoelhou-se, pediu socorro a Deus e agradeceu por ainda estar viva. Entre lágrimas, pediu perdão por todos os seus pecados, especialmente o da carne, que a levou a cometer tantos desatinos nos últimos meses, contra si e contra seus amigos e parentes.
Então levantou-se, lavou o rosto, olhou-se no espelho e percebeu que, apesar de todas as besteiras que fizera, ainda estava viva. Tomou a firme decisão de nunca mais aceitar de ninguém nada menos do que respeito. Decidiu viver um dia de cada vez.
Retomando a estrada, voltou para sua casa. Foi à polícia e prestou queixa contra Marquinhos, decidindo que jamais a retiraria. Pediu medida protetiva contra ele, tirou de sua vida tudo que pudesse acionar qualquer gatilho emocional. Mandou instalar alarmes e câmeras em sua casa. E decidiu viver um dia de cada vez.
Conscientizou-se de que não estava sozinha, e tratou de ir buscar as amizades perdidas, e, principalmente, fez as pazes com Deus. Passou a agradecer por cada dia livre daquele monstro.
A caminhada não foi fácil, até porque Marquinhos usou vários amigos, pessoas que ele manipulava, para irem até Regina expressar o quanto ele estava sofrendo e arrependido com a separação. Regina estudou sobre o assunto, passou a assistir vídeos sobre narcisismo e psicopatia, e entendeu que estivera doente, muito doente, e aderiu ao chamado contato zero com tudo que pudesse acionar qualquer gatilho psicológico em relação a ele.
Era um domingo de manhã, quando ela, depois de uma noite agradável na companhia dos amigos, abriu o jornal e passou a ler as manchetes. Quando chegou à página policial, levou um choque: a foto de Marquinhos estava lá! A manchete dizia “assassinado em briga de bar”. Recuperando-se do choque, ela leu a notícia, parece que ele mexera com uma mulher casada, e o marido, já alcoolizado, desferira-lhe a facada mortal.
Até hoje, Regina atua na conscientização de mulheres contra a violência doméstica.




Comentários