PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: TIAGO LOTT — CATEGORIA POEMA

SOBRE O AUTOR

Tiago Horácio Lott é pai, professor, psicanalista e doutor em Criação Literária. Preocupado com o que vai deixar para as futuras gerações, aprende e ensina Ficções: histórias nunca reais, mas sempre verdadeiras.

O POEMA SEMIFINALISTA

Santa Bárbara

“Concedei-nos,

Senhor,

a serenidade necessária para aceitar

as coisas que não podemos modificar,

coragem para modificar aquelas que podemos

e sabedoria para distinguir umas das outras”.

Muita coisa mudou desde que nasci, sabe, Horácio:

quando eu era criança,

com certeza chovia mais,

porque a televisão e o Márcio Augusto falavam

(na rádio AM que minha mãe ouvia)

pra gente tomar cuidado com a chuva.

(e logo em seguida entrava uma oração, uma música, rogando à Santa Bárbara;

tenho a impressão de que hoje a chuva causa mais desgraça que antes;

será que falta oração no rádio?

porque na TV até que tem bastante).

Acho que chovia mais também

porque quando algum vidro da janela

(da janela do meu quarto, nosso quarto, único quarto da casa)

se quebrava

(meu pai quebrava, geralmente com um ou mais socos)

a gente improvisava algum tipo de tampa

e ficava ali segurando, onde estava o buraco, até a chuva passar,

mas às vezes demorava a passar,

ventava,

caía até granizo,

e era como se alguém muito ruim quisesse entrar,

e a musiquinha da Santa Bárbara não saía da minha cabeça.

Mas até a água que a gente bebia fazia mal:

era a cólera, anunciava o Márcio Augusto,

alertando que era preciso ferver a água antes de beber.

Você vai rir, Horácio,

mas eu ficava imaginando como deveria ser

tomar aquela água quente.

Quando a gente é criança a gente tem cada ideia;

se bem que muita coisa

a gente não faz ideia,

por exemplo,

que água meu pai bebia que fazia ele quebrar janelas?

talvez fosse água sem ferver,

com Cólera,

porque no outro dia ele passava muito mal,

colocava toda aquela água para fora,

ali no quarto mesmo,

mas ele não aprendia,

passava o dia seguinte tomando água,

muita água mesmo,

e sem ferver.

As coisas mudaram mesmo,

Horácio:

qual foi a última vez que você viu

orvalho?

Quando eu era criança a gente via

aquelas gotinhas d’água

amontoadas na superfície das coisas

quase que todos os dias,

principalmente no inverno.

Às vezes,

a gente precisava passar

a noite fora de casa,

porque meu pai tinha saído,

bebido muito daquela água com Cólera,

(lá vem seu pai alto toda vida, minha mãe dizia, mas eu só fui entender isso quando

muitos anos depois eu aprendi, em inglês, o que era esse high as fuck; ele não tinha

crescido de verdade, em tamanho, talvez só em intensidade ou em angústia)

e ela tinha medo de ficar em casa com ele assim,

mas o problema é que não tínhamos pra onde ir,

então passávamos a noite na rua

em algum terreno baldio,

ali perto mesmo da nossa casa,

numa esquina,

de preferência algum lugar que tivesse marquise,

porque aí ficávamos protegidos do sereno,

embora o frio realmente ficasse cada vez mais intenso

quando a manhã se aproximava,

(e o desamparo nem sempre vem de cima)

e a gente via aquelas gotinhas se acumulando nas folhas,

na superfície das coisas,

o orvalho.

Santa Bárbara é considerada protetora contra relâmpagos e tempestades,

dizem,

mas sabe, Horácio,

a história dela é bastante trágica:

foi morta pelo próprio pai.

Degolada,

dizem.

Parece que o raio mesmo só veio depois, como castigo, pra matar o pai.

Foi deus que mandou,

dizem.

Por que o raio não veio antes?

A Cólera do deus,

diferente daquela que matava a gente quando era criança

(diferente daquela que tinha na água que meu pai bebia)

chegou atrasada.

“A justiça divina tarda,

mas não

falha”,

dizem.