PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS VENCEDORES: ARZÍRIO CARDOSO — 1º LUGAR CATEGORIA CRÔNICA
- Casa Brasileira de Livros
- 14 de ago.
- 4 min de leitura
Atualizado: 1 de out.

SOBRE O AUTOR
Autor de 5 livros, 2 de poesia e 3 de crônicas, além de várias participações em coletâneas. Vencedor do Prêmio Literário Cidade de Manaus, com o livro Crônicas de quarentena e outras virulências; vencedor do Prémio Internacional Pena de Ouro, com a crônica Not Poema. Finalista do Prêmio Jabuti, com o livro Conheço duas formas de acabar com a vida que são tiro e queda.
A CRÔNICA VENCEDORA (1º LUGAR)
Not Poema
Dia desses deparei com o anúncio de um produto chamado Not Creme.
Ora, isso dá o que pensar. Tem que dar.
Não é possível ou sequer imaginável um sujeito dar de cara com tal provocadora paisagem e simplesmente passar batido, sem esboçar uma reação, mínima e tímida que seja, sem ao menos fazer menção à símia e, vá lá, humana, coçadinha na cabeça. É inevitável. Tem que ser.
Porque um ser humano, teimosamente acredito, ainda pode ser definido como qualquer coisa que, até mesmo por uma questão de sobrevivência, necessita saber como funciona o mundo que o circunda, sua lógica explícita ou subjacente, seus desníveis traiçoeiramente tridimensionais. Se o que temos logo ali à frente é um precipício, o melhor é não botarem em sua beirinha uma placa escrito não-planície. Como muito bem sabiam nossas nonas e bisas, que nos proibiam de dizer “raio” e “câncer”, a palavra é invocatória, magnética, puxa as coisas. E que eu saiba nenhum de nós tentou bancar o inovador dizendo não-raio e não-câncer, ou não-trovão e não-hemorroida; do mesmo modo, nenhum de nós chega numa roda de conversa gritando: Hey, pessoal, nosso amigo Roberto aqui não frequenta clubes de swing com a esposa.
Se o negócio não é um creme, então é o quê? Alguma coisa que parece creme, mas não é, tipo massa corrida ou pasta de cocaína? E se não é creme, por que não trovões, digo, por que raios leva no nome tal palavra? Se estou à procura de um chapéu, então devo começar a procurar por alguma coisa chamada não boné? Vegetarianos devem procurar não açougues? E se eu quisesse um cachimbo? ...
Desculpem o atropelo, as indagações são tantas assim porque causa espanto encontrar por aí uma marca praticando algo tão contrário aos princípios da propaganda, como a autodepreciação: Não sou um creme, nunca serei um creme, não posso querer ser um creme. O mais comum do dia a dia é vê-las empenhadas na promoção de ações afirmativas, prometendo o céu na Terra a quem as levar pra casa. Quem já assistiu Familia Dinossauro sabe bem: não é como lisonja que o Baby chama seu pai de Não é a mamãe.
A palavra “não”, motor da civilização e do mal-estar nela, é certamente poderosa, mas tente não pensar num elefante verde saltando de um edifício. Deve ser por isso que os mandamentos “não matar”, “não furtar” e “não desejar a mulher do próximo” vêm sendo exemplarmente seguidos por todos, há milênios.
Faz lembrar o Barack Obama, Nobel da Paz que bombardeou a Síria, o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, o Iêmen, a Somália, o Paquistão...
Já pensou se a moda, feito creme no pão, se espalha e passamos a descrever as coisas nos termos daquilo que elas não são? Certamente faltaria espaço no mundo para mencionar tanta ausência, a começar pelos não-metais, da tabela periódica, elementos que compõem o mundo, mas não se sabe se tocam rumba, pagode ou salsa, sendo a única firme certeza a de não curtirem muito heavy metal. O próprio Not Creme seria também um Not Pasta de Amendoim e um Not Geleia; nós, bípedes implumes, seríamos not frangos e not codornas; a Academia Sueca entregaria os 10 milhões de not pesos chilenos ao Prêmio Nobel da Not Guerra; e eu estaria escrevendo não uma crônica, mas uma not carta, um not testamento ou um not poema, bilíngue assim, pra ficar mais elegante e mais com cara de quem está indeciso, sem ainda saber quem é.
Aliás, maracutaias vocabulares seguidoras desse princípio (o da ausência de espírito criativo, porque no fim é isso mesmo), não são bem uma novidade. Já li por aí pretensões do tipo bacalhau vegano, carne de jaca, carne de berinjela e a medonha carne de soja. Holy Cow! É como se um ex-vegetariano, picareta, maquinasse acrobacias do tipo salada de bisteca ou escabeche de alcatra. Jaca não é carne, nunca será. E gente que despreza carne, lá vai pitaco, não deveria considerar glamourosa (menos ainda persuasiva) a palavra carne, mesmo que de acompanhamento ela trouxesse um Not bem grandão ao seu ladinho.
Mas nem tudo são pontos negativos. Como o elemento químico rádio, tudo pode ser usado para o bem e para o mal. Em dia de jogo da seleção na Copa, usar a amarelinha com um Not Patriota nas costas é medida justa e inteligente. Que ninguém confunda um vibrante torcedor da Not Cuba, Not Venezuela e, principalmente, Not Argentina, com um zumbi que canta hino para pneu. E já que lá em cima falamos das queridas bisas e nonas, o que por força da linearidade genealógica nos leva até as mães, estas bem que poderiam aderir ao novo comportamento moderno e passar a escrever Not Sorvete quando se servirem dos potes para neles botar feijão.
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