PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS VENCEDORES: JESIEL SOARES — 3º LUGAR E SEMIFINALISTA CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros

- 14 de ago.
- 35 min de leitura

SOBRE O AUTOR
Jesiel Soares é doutor em Linguística e professor efetivo no Departamento de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto. Na produção literária, o autor navega entre a prosa e a poesia, com diversos trabalhos publicados. Destaca-se a publicação do romance Clavículas (2021) e da coletânea de contos Odilon Morreu Numa Terça (2025). Sua escrita é sempre intensa, retratando a decadência da moral, dos costumes e a entrega aos prazeres da carne. Temas como morte, luxúria, lascívia e profanação permeiam sua obra. Em 2025, ficou em terceiro lugar no concurso Pena de Ouro, da Casa Brasileira de Livros, com o conto Sarapatel, e também foi semifinalista com Odilon Morreu Numa Terça no mesmo evento.
O CONTO VENCEDOR (3º LUGAR)
Sarapatel
Ao voltar dos sonhos, agredido pelo tilintar malquisto do despertador, Gaspar descambava seus cacoetes matinais. Elegia o pé direito para primeiro tocar o chão e passava o rosto nas mãos. Pensava em nada e pensava na loja. Pensava em Vanusa e olhava para a foto pregada na cabeceira. Beijava a ponta dos dedos e levava os dedos beijados até a foto. Obedecia o cheiro do café coado até a cozinha e bocejava no tamborete:
— Bença mãe, bença pai — balbuciava, enquanto fazia um cafuné na cabeça da irmã. O último gole no café selava o fim da rotina primeira do dia e, se despedindo, seguia para o trabalho.
Como em outros dias, naquela sexta Gaspar fez o de praxe, menos por algo: ele acordou sem um pingo de fome. A mesa do café, já encurralada pelos quatro familiares, oferecia os víveres banais de um desjejum típico em classes sociais mais miúdas, com pãozinho afrancesado daqui mesmo e café coado direto na garrafa. Embora sem fome, Gaspar teimou em ser devoto à rotina e breou manteiga na cara do pão.
— Isso aí é falta de morrer — dizia de banda o pai de Gaspar, encarando a cara do meliante mostrada na televisão. Enquanto assistia às notícias em um desses jornais sensacionalistas que, logo de manhã, vomitam sangue nos ouvidos dos recém-despertos, o pai colhia parcelas de uma lasca de pão que embirrou em morar na fresta do dente. Ao passo que a mãe explicava para a filha que os dinheiro para a blusa nova só seria possível no fim do mês, Gaspar atravessou a conversa dizendo não estar com fome e já atrasado.
— Por isso está tão franzino — disse o pai ainda guerreando contra o pão no dente.
— Leve ao menos uma torrada nessa vasilha, meu filho, aí você come no caminho — a mãe disse com carinho. Tendo permanecido calada até então, a irmã por fim disse, sem desgrudar os olhos da revista de moda:
— Daqui um mês Gaspar vai ter a idade de cristo.
— Mas achei que era vinteoito — ponderou o pai.
— É trinta e quatro, né meu filho? que Deus te abençoe — consumou a mãe. Gaspar, tendo todos errado sua idade, saiu para o trabalho.
Dia após dia, Gaspar caminhava a rua comprida da sua casa até a ponte, todas as ruas do bairro cessavam lá na ponte, ofertando aos andantes duas opções: à esquerda, seguia a rua que levava à Pedra da Encosta, um pedação graúdo de rocha que prendava os moradores com um precipício de toda altura. Abundantes histórias ecoavam sobre aquele lugar, inclusive de que o padre Maciel se jogou de lá pros braços da morte. Foi lá também que Gaspar ofereceu Vanusa para uma flor, ela riu vermelha e se deu para ele em um beijo desajeitado, meio querendo, meio não. À direita da ponte, a rua levava para a parte mais urbana da cidade, onde ficavam os comércios, inclusive a loja de sapatos onde Gaspar trabalhava. Ele virou à direita. Enquanto caminhava em direção à loja, pensou em Vanusa.
Ser presbítero na igreja Selos de Sião era o que o pai de Gaspar mentia para si mesmo ser seu principal orgulho. Ele queria mesmo é ter sido advogado, mas para o direito era preciso ser inteligente, ele não era e, não sendo, foi perfeito para o presbitério. Os critérios de seleção da igreja vinculavam-se à capacidade de gritar ao microfone, cuspindo devaneios proféticos e alucinando em uma língua fingida.
Também discípula da Selos de Sião, a mãe de Gaspar era diaconisa e quando não estava cultuando o redentor nas Tardes da Bênção, trabalhava como diarista. Ela havia se casado meio que sem querer, com Gaspar já na barriga e foram seguindo a vida se ajeitando daqui e dali, sem planejamento. A irmã veio bem depois, era a benquista da família, afinal ela foi quista. Gaspar só nasceu mesmo, sem que ninguém quisesse.
De quando em vez, Gaspar visitava a igreja dos pais, apenas para que a mãe abrandasse os ‘você precisa de Deus, meu filho’ que aumentavam quando diminuíam suas visitas ao templo. Por Vanusa não ser da igreja, para o pai de Gaspar ela era vagabunda. A mãe gostava da moça e dizia ela ter quadris largos, bons para parir, o que favorecia Gaspar nos seus planos de derramar em Vanusa seus sonhos de família.
Naquela sexta Gaspar estava animado, pois era véspera do aniversário de Vanusa e à noite, em celebração à data, haveria na casa dela um daqueles churrascos que tem mais linguiça do que carne. Ele decidiu dar de presente aquele tamanco lá que a moça magrela da novela usava. Vanusa adorava aquela novela e os tamancos que a moça exibia. ‘Que esqueleta’, é o que Gaspar pensava da atriz, mas ‘que mulher bonita’ era o que ele dizia quando Vanusa a apontava na televisão. O tamanco custava quase metade do seu salário, mas o esforço valeria a pena para ver a felicidade dela. Ele estava em segredo juntando dinheiro para dar de entrada em um lote no bairro novo e começar a construir a casa.
Sabe aquela fome que deixa a gente fraco? Sabe aquela outra fome que é só de merendar? Sabe aquela fome de um docinho? Sabe aquela fome de comer espetinho de coração de galinha? Naquela sexta no trabalho, Gaspar não sentiu nenhuma dessas fomes ou quaisquer outras. No almoço, ele abriu o marmitex recém entregue pelo menino da bicicleta. Tinha arroz soltinho, feijão preto bem temperado, uma sobrecoxa frita em óleo repetido, uma salada murcha com alguns tomatinhos, alface picada e um copinho à parte com farofa.
Ele olhou a comida, mas não sentiu fome alguma. Achou estranho. Mesmo sem fome, decidiu segurar a sobrecoxa pelo osso e dar uma boa mordida. Assim que engoliu, sentiu um desconforto e foi ao banheiro, onde vomitou o naco de sobrecoxa. Ficou sentado no vaso se perguntando o que poderia ter acontecido. Estava completamente sem fome, mas não sentia fraqueza. Seria alguma coisa no estômago? Seria preocupação com o aniversário de Vanusa?
Enfadonho como as outras, aquela sexta-feira foi acontecendo na loja. As pessoas perguntando preço, experimentando calçados:
— Estou só dando uma olhada — disse uma mulher despretensiosa .
— Você tem esse nessa cor? — disse outra sem a mínima intenção de comprar.
Durante as vendas, Gaspar olhava o tamanco amarelo lá na vitrine. Que alegria Vanusa sentiria com o presente. Ela falava tanto neste tamanco que até Gaspar, em sua lerdeza, percebeu ser um apelo de súplica pelo regalo.
No decorrer da tarde, Gaspar nada comeu, mas não sentia-se fraco. Como de costume nas tardes da loja, chegou uma menina com a testa suada e com uma caixa de isopor coberta por um pano de prato bordado ‘Jesus é o lírio dos vales’, vendendo bolo-de-pote. Gaspar adorava aquele bolo. Ele achava incrível como uma xícara e meia de leite, uma de óleo, uma de açúcar, uma de chocolate e três ovos, tudo batido no liquidificador, levado ao forno e depois com umas coberturas molhadas se transformava naquela iguaria. Gaspar comprou dois, um para ele e um para Vanusa. Mesmo sem fome alguma, ele deu uma graúda colherada no bolo-de-pote. Imediatamente sentiu-se mal, foi ao banheiro e vomitou tudo novamente. Agora, Gaspar começou a ser consumido por uma profunda inquietação.
Na casa de Vanusa, o churrasco estava animadíssimo, parentes falando alto, música brega tocando, tios mais antigos contando casos absurdos do passado, crianças entediadas nos celulares e os primos mais velhos de Vanusa criticando o Atlético por jogar na retranca. Ao chegar na festa, Gaspar já viu Vanusa, com um penteado lindo feito no salão da Dalva e foi logo dando o presente. Surpresa, ela o beijou, enquanto os convidados proferiam gritos sorridentes:
— Vão pro quarto — urrou um tio gordo.
— Cuidado com essa mão aí hein, Gaspar — bradou um primo magricela.
Gaspar sentiu um tapa forte no seu ombro, era um primo troncudo de Vanusa dizendo com bafo azedo de cerveja:
— Cuida dela direitinho, rapaz, ou você vai se ver comigo.
Todos riram. Gaspar, sem querer, riu.
Vanusa montou um pratinho para Gaspar com pedaços de linguiça, vinagrete, uma coxa de frango assada e um pão-de-alho, tudo coisa que ele adorava. Entretanto, ele não sentia fome alguma. Decidiu testar uma desculpa:
— Não estou com muita fome, pois comi na loja — disse com um olhar carinhoso à Vanusa.
— Ao menos prove, meu amor — replicou Vanusa, já levando uma rodelinha de linguiça até sua boca. Ele comeu e deu um gole na cerveja.
— Vou ao banheiro e já volto, meu bem — disse ele. Ao chegar no banheiro, vomitou tudo. Olhando para o vômito, Gaspar desesperou-se, mas se recompôs e voltou para a festa, pois queria olhar Vanusa, ela estava tão linda. No restante da festa, ele ficou disfarçando comer, elogiava o tempero com exageros, simulava tomar cerveja, limpava a boca, tirava lascas de carne imaginárias do dente. Enquanto, depois da festa, voltava para casa, Gaspar se perguntava se alguém teria notado o fato de ele não ter comido.
— Adoro o gosto de cebola no seu beijo, meu amor — disse Vanusa sentada no colo de Gaspar logo após beijá-lo. Mas ele acordou. Essa cena do beijo de cebola foi a última coisa que ele viu antes de despertar no sábado de manhã e perceber-se novamente sem fome. Como seus pais haviam ido orar gritando na Manhã com Cristo na igreja, Gaspar decidiu aproveitar o silêncio para estudar para o concurso dos correios. Ele não era muito bom em português, mas em matemática ele era horrível. Seu forte mesmo era só a esperança e a vontade, mas isso não caía na prova.
No almoço, teve carne de panela com mandioca cozida. A mãe comprou acém bovino no açougue e a mandioca foi na banquinha do Bené. Picou a cebola roxa, macetou o alho, cortou a carne em cubos, descascou e lavou a mandioca. Quando a cebola já estava dourando na panela de pressão, jogou o alho. O aroma viajava até os narizes de todos.
— Tá cheiroso! — gritou o pai lá da sala assistindo a programação televisiva de sábado. Ela despejou a carne na panela, deixou fritar um pouco, mexeu com a colher de pau, enquanto cantarolava o hino duzentos e quatro da harpa cristã. Em seguida, pôs água até cobrir a carne e tampou.
— Sou peregrino na terra e longe estou do meu lar — ela entoava o hino, enquanto se passava o tempo de cozimento. Abriu a panela, colocou a mandioca e deixou por mais um tempo. Estava pronta a iguaria. Quando o cheiro invadiu seu quarto, Gaspar deu um sorriso imaginando como estaria saboroso. Mas ele não sentia fome. À essa altura, tinha medo de contar o fato à mãe, ela se preocupava demais com tudo. Gritou do quarto que estava meio sem fome e concentrado nos estudos.
— Você vai acabar morrendo, livro não enche barriga — disse o pai já arrastando a chinela em direção ao fogão. A mãe abriu a porta do quarto e deu a Gaspar uma cumbuca cheia de carne com mandioca:
— Come, filho, a mãe fez foi procê — deu um beijo na cabeça dele e saiu. Gaspar olhou a mandioca flutuando no caldo, a carne derretendo clamando para ser mordida. Ele resolveu dar uma colherada generosa. Assim que engoliu, foi ao banheiro vomitar. Tremendo de medo daquilo, Gaspar decidiu ir ao médico na segunda-feira durante o tempo de almoço da loja.
— Cento e sete — uma mulher rechonchuda gritou a senha de Gaspar, que já esperava há quarenta minutos nas cadeiras de plástico do posto de saúde. Depois de ouvir Gaspar, o clínico geral aferiu os sinais vitais e fez as apalpações de praxe. Explicou sem muita convicção poder se tratar de alguma virose e receitou um desinibidor de apetite, completamente desconsiderando o fato de Gaspar ter falado que há quatro dias não havia comido sequer um grão.
A rotina de fingir comer começou a fazer parte dos dias de Gaspar. Ele passou a carregar o café da manhã para o quarto e na hora de sair colocava tudo em uma sacola para jogar no lixo. Evitava almoçar próximo aos colegas da loja, porque perceberiam sua não-comência. Comprava a marmita na vista de todos, fingia comer e depois jogava fora com muito pesar. Mas jogava. Antes do almoço, quando na loja os colegas conversavam sobre o que iriam almoçar, por vezes Gaspar participava:
— Ontem comi uma feijoada maravilhosa e hoje a noite hoje vou fazer rabada — tudo mentira. Nos dias que se seguiram, Gaspar arquitetou um sistema para passar despercebido em sua desalimentação. Sempre estava com alguma comida a tiracolo, comprava bolos-no-pote, às vezes chegava ao trabalho com uma maçã na mão, às vezes chegava em casa com um saquinho de pasteis e coxinhas, às vezes trazia pizza para a família e falava que iria comer no quarto. E punha na sacola. E jogava no lixo.
Um mês se passou desde que Gaspar parou de comer e sentia-se vigoroso como nunca. Quando ia ao bar com Vanusa, sempre dizia estar meio sem fome, daí pegava lasca de boi que vinha na porção de tira-gosto e colocava no bolso, sem que Vanusa percebesse. Às vezes, quando ia ao banheiro, ele jogava alguns pedaços para os cachorrinhos pedintes, porém quando não conseguia disfarçar, ele realmente comia, para em seguida vomitar tudo no banheiro.
Por vezes, Gaspar sonhava com Vanusa dizendo lá do quarto:
— Entra aqui, meu bem — ela nua na cama, usando apenas o tamanco que ele deu, coberta dos pés à cabeça de feijoada. Tinha feijão escorrendo na barriga, pedaços de orelha de porco deslizando pela perna, um caldinho alojado no umbigo. Ela dizia com uma voz mole:
— Vem comer, meu amor — Gaspar ia e comia a feijoada em Vanusa, lambia cada gota de caldinho, mastigava os pedaços de porco. Saciado, deitava-se ao lado dela feliz e, enfeijoados, dormiam.
Com o passar dos dias desapetitosos, Gaspar decidiu procurar o pastor da igreja Selos de Sião, pastor Osvaldo, um homem opulento, sempre suado e a todo instante vestido com paletó e gravata. ‘Ele é cheio do poder de Deus’, dizia dele a mãe. Gaspar imaginou que o ungido de Deus poderia curá-lo daquele mal que o corroía.
— A paz do senhor, meu consagrado, que benção inefável ter-te aqui — disse pastor Osvaldo, embora não sabendo o que significava inefável e usando uma ênclise não pensada. Enquanto Gaspar contava detalhadamente a situação, o pastor Osvaldo ouvia atenciosamente, gesticulando com a cabeça.
— É satanás — disse o pastor imediatamente após Gaspar parar de falar. Depois de explicar as razões pelas quais o demônio estava operando na vida de Gaspar, o pastor chamou a esposa, que trouxe uma bandeja com pães e um copo de suco de uva barato. Ele pediu para Gaspar se levantar.
— Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus — disse o pastor. Em seguida, pegou um pedaço de pão:
— Esse é meu corpo que é partido por vós, fazei isto em memória de mim — e deu a Gaspar que, com medo de vomitar, comeu. Em seguida, o pastor pegou o copo com suco:
— Esse é meu sangue que é tomado por vós, fazei isto em memória de mim — Gaspar, com medo, tomou o suco. O pastor orava, balbuciando em uma língua estranha, orava mais alto, com a mão na cabeça de Gaspar:
— Tu não tens poder sobre este corpo, maligno — gritava cuspindo gotículas de saliva na testa de Gaspar. Passivo a todo o ritual, Gaspar arrotou com gosto de vinho.
Ao deixar a casa do pastor, Gaspar estava maravilhado, podia até sentir a realização do milagre em sua vida. Sentia que o corpo de cristo estava dentro dele. Ao virar a esquina, vomitou. Na calçada, tudo espatifado, ficaram o pão e o suco de uva. Sentado na calçada, vendo o corpo e o sangue de Cristo escorrerem pela calçada, Gaspar chorou copiosamente. Sentia-se completamente à deriva. No ápice da desesperança, sentado ali, ele decidiu contar tudo à Vanusa, sua última esperança.
No dia de seu aniversário, Gaspar pensou ser o melhor dia para contá-la sobre a sua condição, ‘é meu aniversário, ela vai me entender’, pensou em um frágil fio de fé. Para comemorar o aniversário de Gaspar, Vanusa decidiu cozinhar o prato favorito dele. Ela separou os miúdos de porco e o sangue coalhado, depois picou o toucinho em pedacinhos, picou as cebolas, os tomates e os pimentões. Cozinhou os miúdos em fogo médio, escorreu a água e os deixou no canto. Em seguida, juntou todos os temperos com os tomates e misturou com os miúdos. Acrescentou também o sangue e deixou lá para pegar gostinho. Pôs uma panela grande no fogo e jogou o toucinho para fritar na própria gordura e foi jogando cebola, alho, tomate e tudo o que tinha picado. Por fim, adicionou os miúdos e ficou mexendo para apurar os sabores. E assim ficou pronto o prato favorito de Gaspar: Sarapatel.
Quando a viu, Gaspar se emocionou. Estava linda, toda vestida de amarelo e usando o tamanco que ele deu. Ele passou pela cozinha e viu o sarapatel. Um cheiro delicioso. Ele disse a ela que precisavam conversar, então foram para o alpendre da casa. Ele sentou-se de frente para ela, segurou as mãos dela entre as suas, disse o quanto a amava e o quanto estava feliz pelo Sarapatel, por ela estar usando o tamanco e por cuidar tão bem dele. Ela sorriu enrubescida.
Aproveitando a afabilidade do momento, ele contou tudo a ela. Vanusa ficou em silêncio por um instante e em seguida começou a chorar. Antes que ele pudesse continuar, ela disse:
— Por que você está fazendo isso comigo? Você está usando droga? — Ela chorava agora de pé. Gaspar explicava que apenas não sentia fome. Vanusa chorava copiosamente:
— Achei que você me amava.
— Mas eu a amo — Gaspar tentava sussurrar.
— Se amasse você não fazia essas coisas comigo — disse ela saindo e o deixando no alpendre. Os pais dela vieram perguntando o que Gaspar havia feito. Ele não conseguia responder e decidiu sair. Passando pela cozinha, novamente viu o Sarapatel na panela.
Chegou em casa abatido. Ao notá-lo a mãe perguntou o que havia acontecido e ele decidiu então ser aquela a hora mais apropriada para contar à família. Contou-lhes tudo.
— Eu sempre desconfiei que tinha algo errado com esse moleque — disse o pai se levantando e andando pela sala, mesmo sem entender direito o que se passava — onde já se viu não comer? Se fosse na minha época, meu pai me quebrava no pau, nunca existiu isso na nossa família, somos todos sujeito homem — bradava indignado. A mãe com voz carinhosa, dizia:
— Tanta gente passando fome na África, meu filho.
— Isso não é coisa de homem. Eu nunca fiquei um dia sem comer, porque Deus deixou o alimento para nós, isso é um pecado muito grave, rapaz, isso não está certo — ruminava o pai. Gaspar ouvia em silêncio.
— Posso comer sua comida então? — A irmã perguntou.
— Não brinque com isso, minha filha — intermediou a mãe.
— Filho meu não faz esse tipo de coisa não — disse o pai de longe, agora lá na sala.
— Não diz isso — a mãe pediu ao pai.
— O iogurte que a mãe comprou para você é meu então — avisou a irmã. Gaspar sem nada dizer foi para o quarto. O pai resmungou lá da sala que não viveria debaixo do mesmo teto com alguém assim.
Nos dias seguintes, o pai evitou Gaspar. A mãe passou a cozinhar os pratos favoritos do filho como um incentivo para que ele comesse. Fez feijão esturradinho, ele não comeu; fez angu com feijão e couve, ele não comeu; fez bolo de cenoura com chocolate, ele não comeu. Nada despertava sua fome e nada também despertava seu ânimo. Profundamente desalentado com a ausência de Vanusa, Gaspar ia aos poucos inexistindo para o mundo.
Num sábado qualquer pela manhã, Gaspar decidiu sentar-se lá nos fundos do lote, onde batiam uns fiapos de sol por entre as folhas de uma mangueira carregada. Ao esgueirar seus olhos pela copa da árvore, viu um passarinho amarelo se fartando de bicadas em uma manga madura. O pequeno serzinho voador encheu ainda mais Gaspar de tristeza e de inveja, pois o passarinho lambuzava-se, livre na copa da mangueira, podendo dali voar para o mundo. ‘Que bicho feio’, pensou Gaspar em pura birra, e aproveitou também para achar a mangueira feia, árvore inútil que tapava os raios do sol. Sua imersão na rabugice foi interrompida pela voz da mãe ao longe:
— Ligação para você, meu filho.
Para ele, nada podia ser pior do que o chefe da loja ligando, pedindo que chegasse mais cedo na segunda-feira, isso seria a coroação de um embrólio desolador, mas seu chefe costumava ligar aos sábados, planejando a segunda. Gaspar não entendia, aquele homem não tinha vida social? Que aborrecimento.
— Oi, sou eu — disse Vanusa do outro lado da linha.
O mundo parou. Gaspar subiu aos céus num foguete sem freio e explodiu nos céus. A voz dela era uma corda com a força de mil braços que o resgatava de um fosso pavoroso. Ela disse que precisavam conversar e queria encontrá-lo por volta das onze da noite na pracinha, após retornar do colégio. Gaspar renasceu em cada uma daquelas palavras. Com um sorriso aliviado ele olhou para a mangueira, onde o passarinho ainda comia a manga. ‘Meu passarinho da sorte’, pensou Gaspar, vendo no pequeno pássaro um símbolo de boas novas. Saiu às pressas de casa para comprar chocolates e flores amarelas, as favoritas de Vanusa, afinal o reencontro merecia.
Quando chegou a hora, Gaspar vestiu-se com esmero. A camisa azul clara, bem passada, ecoava elogios passados de Vanusa, enquanto a calça preta, simples e confortável era a dele próprio favorita. No espelho, viu um homem confiante, determinado a reaver sua amada.
Gaspar chegou à praça bem antes do combinado, sentou-se no banco e já imaginou Vanusa chegando e o abraçando. Ele gostava do cheiro da nuca dela. Gaspar tinha esperanças de que seu impasse alimentar não seria um empecilho para que a vida seguisse, para que construíssem a casa, o sonho, os filhos. Ele imaginou Vanusa grávida, com uma flor no cabelo, os dois na casinha nova, comendo Sarapatel em uma mesa grande, com cadeirinhas para os filhos.
Seus pensamentos foram interrompidos com um bofetão muito forte na parte de trás da cabeça. Ele levantou-se com o susto. Era o primo bronco de Vanusa, com mais três rapazes:
— Olha aí o estranho doidinho que não come — disse o autor do bofetão, observado pelos outros. Gaspar nada entendeu.
— Tanta gente com fome e ele sendo assim — eles então cercaram Gaspar, que ficou no meio tentando entender o que se passava.
— Do que vocês estão falando? — Gaspar tentou conversar, mas antes de terminar a pergunta, levou um soco no rosto tão forte que ficou momentaneamente tonto, caiu no chão. Doía muito seu nariz, que agora sangrava abundantemente, escorrendo pelo rosto e pelo chão. Ainda deitado, com as vistas turvas, Gaspar viu à distância Vanusa encostada em um carro. Com os olhos emaranhados e o rosto coberto de sangue, ele a olhou nos olhos. Ela calçava o tamanco amarelo que ele deu. Enquanto a olhava, sua visão foi interrompida com um chute no rosto tão intenso, que o apagou por uns segundos. Quando recobrou a consciência, sentiu um acentuado gosto de sangue e percebeu que dois dentes estavam arrancados, boiando no sangue dentro de sua boca. Cuspiu fora. No chão, com o rosto coberto de sangue, Gaspar nada entendia.
Com os olhos turvos, ele procurou Vanusa e a viu ao longe. Tentou chamar por ela, mas no meio da palavra, sentiu um chute seco no estômago, que o fez perder o fôlego.
— Isso é para você aprender a virar homem — Gaspar ouviu as palavras vindo de cima.
— Vanusa não é gente da sua laia — ouviu de outro rapaz.
— Gente esquisita como você nem deveria existir — outro esbravejou. Gaspar tentava rastejar em direção à Vanusa, mas estava muito desnorteado, os rapazes continuavam cercando.
— Traz o pepino — um deles gritou. Então, mesmo completamente aturdido, Gaspar viu Vanusa se aproximando e entregando um pepino para o primo. Gaspar sentiu o cheiro do perfume dela e tentou chamá-la pelo nome, mas foi interrompido com outro chute na parte de trás da cabeça.
— Vou te ensinar como ser homem, seu merda — disse o primo de Vanusa.
Gaspar, quase sem enxergar, percebeu que alguém o segurou pelo cabelo e de repente ele sentiu o pepino entrando bruscamente em sua boca, lubrificado pelo sangue e indo até a garganta. Ele sentiu tanta dor que sua cabeça começou a girar.
— Isso é o que você merece, seu esquisito — o primo de Vanusa começou a dar estocadas com o pepino na boca de Gaspar até a garganta, enquanto o sangue supitava e eles riam.
— Ele está gostando — gargalhavam.
— Você gostou do tamanho do pepino? — riam ainda mais. O primo enfiava o pepino implacavelmente em crueis movimentos.
— Isso é para você aprender a comer — o movimento do pepino machucava a garganta e dilacerava a gengiva já aberta. Não conseguindo aguentar, Gaspar regurgitou, lambuzando seu rosto com vômito, que se misturou ao sangue. Respingos do vômito caíram no braço do primo de Vanusa que, em fúria, espancou o rosto de Gaspar.
— Seu nojento, pervertido!
O que se seguiu foi uma série de chutes e pontapés na cabeça e no corpo de Gaspar. Enquanto ele estava sentindo seu corpo desfalecer, no meio do piseiro e do sangue ele viu Vanusa mais uma vez. Desmaiou. Nos lapsos de consciência que teve entre os desmaios de dor e o sufocamento com sangue e vômito, Gaspar viu uma mulher se aproximar, mas não sabia se era realidade ou devaneio. Ela o ajudou a levantar-se, o abraçou e o levou até um carro.
Gaspar recobrou a consciência dois dias depois, deitado em um sofá em uma casa bem pequena, mas muito acolhedora. Sentia muitas dores. As paredes, pintadas em tons suaves de verde e azul, exibiam quadros com paisagens bucólicas e algumas fotografias. O aroma de café fresco preenchia o ar, vindo da pequena cozinha integrada à sala, onde utensílios de cores vibrantes contrastavam com os armários de madeira clara. Em um canto, uma estante exibia com orgulho pequenos troféus e medalhas, provavelmente conquistados em eventos esportivos ou comunitários. De repente uma voz ecoou da cozinha:
— Acordou, Gaspar? — Assim que a voz se personificou, Gaspar a reconheceu, era Dalva, do salão de cabeleireiro, que trazia consigo uma bandeja com chá e biscoitos — Te bateram muito, Gaspar. Eu te trouxe para cá, para sua mãe não se preocupar. Olha, eu ouvi o que disseram sobre você. Vanusa espalhou lá no salão, mas não fique assim. O povo é muito ignorante — disse Dalva.
Ensaiando se levantar, Gaspar começou a dizer que não sabia do que Dalva estava falando, num daqueles titubeios emblemáticos de quem foi desvendado. Na tentativa de se levantar, fraquejou e caiu de volta no sofá. Aos poucos, ele foi lembrando do ocorrido, mas não conseguia, nem por um instante, definir o sentimento palpitante que o habitava naquele momento. Gaspar era outro. A desesperança e o medo pairavam e o consumiam a ponto de ofuscar seu discernimento.
Enquanto Dalva preparava alguns apetrechos para trocar os curativos no rosto dele, Gaspar apossou-se de um parco equilíbrio e cambaleou até a cozinha, passando a reparar em tudo ao redor. O ambiente, embora acolhedor, carregava um ar de vazio inquietante. Com sede, abriu a geladeira e, para sua surpresa, encontrou apenas uma solitária garrafa com água. Não havia comida. Não havia bolos, verduras, carnes. Nada. Serviu-se de um copo generoso, tentando saciar não apenas a sede, mas também a perplexidade que o invadia. Ao observar com mais atenção, ele notou que as prateleiras estavam vazias, despidas de temperos, de latas, de pacotes, a ausência de víveres ecoava um silêncio desconcertante.
— Sou como você, Gaspar — disse Dalva, que o observava observar — também não como e não sinto fome.
Depois de ajudá-lo a se sentar, ela começou a compartilhar sua história em detalhes, sobre a vida solitária que levava. Explicou que havia muitos anos vivia assim. Descreveu suas artimanhas em fingir comer, tornando-se uma especialista em enganar os sentidos alheios. Quando recebia visitas, comprava comida antes, preenchendo a casa com aromas apetitosos. Mastigava alho para encenar o hálito de quem comeu recentemente, uma técnica apurada ao longo dos anos. Ela contou com uma precisão meticulosa como se integrava à rotina cotidiana da cidade. Ia regularmente à feira, ao supermercado e à padaria, participando de conversas triviais sobre receitas e pratos preferidos, mascarando sua verdadeira condição. Em uma das cidades em que ela morou, um homem descobriu seu segredo e, em um ataque de fúria, tentou espancá-la. Esse evento a forçou a se mudar, buscando um novo começo na cidade de Gaspar.
Dalva revelou o quão árdua fora a mudança, não só pelo trauma que marcara seu corpo, mas também pelo isolamento que se impôs como sombra constante. Distanciara-se de qualquer laço profundo, temendo que seu segredo, novamente, viesse à tona. Contudo, em Gaspar encontrou uma alma igualmente atormentada pela estranha ausência de fome, um quê de esperança em sua jornada solitária.
Gaspar, de ouvidos atentos, absorvia as palavras em uma mescla de incredulidade e espanto. Aos poucos, as barreiras que o resguardavam começaram a ceder e ele se permitiu desvelar a origem de seu tormento, encontrando nas palavras de Dalva reflexos inegáveis daquela fome ausente que os unia. Ela narrava com franqueza desarmada, expondo cada estratégia, cada mentira sutil tecida para resguardar-se. A cada detalhe, entrelaçavam-se mais intimamente, como se suas histórias fossem pedaços de uma mesma trama.
Dalva falava das dificuldades em sustentar as aparências, das ocasiões em que quase fora desmascarada, das suspeitas que pairavam sobre ela, mas que nunca se materializavam em questionamentos diretos. Compartilhava as artimanhas que desenvolvera para se camuflar na normalidade alheia, desde os hábitos meticulosos nas compras até o modo engenhoso com que eliminava alimentos, sem jamais levantar suspeitas.
Enquanto conversavam, Gaspar sentia, pela primeira vez, o alívio raro de ser compreendido em toda a profundidade de sua experiência. Não se tratava apenas da ausência de fome, mas do incessante esforço para se assemelhar aos demais, de carregar um segredo tão vasto que poderia alterar irreversivelmente o olhar do mundo sobre eles. Dalva, em sua bravura, era para ele espelho no qual ele vislumbrava sua própria luta e respingos de sua dor.
No dia seguinte, já firme o suficiente para caminhar, Gaspar expressou sua gratidão a Dalva e decidiu retornar ao lar. Ela fez o convite para que ele passasse uns dias na casa dela até que tudo se resolvesse e, antes que Gaspar pudesse responder, ela separou um molho de chaves, entregou a ele e disse que ele podia ficar o tempo que quisesse.
À medida que Gaspar caminhava lentamente, um turbilhão de pensamentos governava sua mente. A figura de Vanusa surgia incessante, suas feições mescladas entre recordações de ternura e a frieza do abandono. Parte dele, ainda presa às sombras da esperança, buscava justificativas. ‘Foram os primos que envenenaram a mente dela’, repetia em pensamentos, como um mantra que lhe trazia algum alento. Essa parte de Gaspar recusava-se a aceitar que Vanusa poderia ter feito aquilo, contudo, outra parte de si, mais lúcida e dolorosamente consciente, começava a acolher a realidade crua e implacável.
No caminhar sôfrego, seus pensamentos visitavam Dalva, a força daquela mulher que, mesmo calejada com seu próprio fardo, ofereceu-lhe abrigo. Gaspar refletia sobre o que havia aprendido com ela, sobre a capacidade de seguir adiante mesmo quando tudo parecia desmoronar. Dalva, com sua vida cheia de silêncios e disfarces, havia mostrado que a luta pela aceitação era um caminho solitário, mas necessário.
Ao chegar em casa, Gaspar encontrou suas coisas espalhadas na garagem. A mãe, tomada pelo pranto, correu ao seu encontro, indagando, entre soluços, o que acontecera. Antes que ele pudesse responder, ela intensificou o lamento, tocando seus ferimentos com mãos trêmulas, enquanto clamava pela misericórdia divina. Na sala, o pai, em pé, com semblante severo, sentenciou sem hesitação:
— Não te aceito mais sob este teto. Pegue suas coisas e vá embora. Não posso tolerar esse tipo de comportamento nesta casa, somos um lar cristão.
Gaspar ensaiou algumas palavras, tentando explicar que não fazia mal a ninguém, que era algo pessoal, algo que nem ele mesmo conseguia entender. O pai, porém, manteve-se impassível, sem desviar o olhar do chão:
— Eu te criei nos caminhos do Senhor, seguindo a santa doutrina de Jesus, e você me decepciona assim — disse, com voz carregada de desilusão. Gaspar, sem mais palavras, aproximou-se da mãe, beijando sua testa com ternura, antes de se dirigir à porta. Deixou suas coisas na garagem, sem olhar para trás. Enquanto se afastava, os pensamentos se voltaram para Vanusa, e a saudade dela apertava-lhe o peito.
Desceu vagarosamente a rua de sua casa até chegar à ponte. Em uma das mãos as chaves da casa de Dalva, na outra o retrato de Vanusa. Ao olhar para ambos, ponderou sobre todos os episódios que o conduziram até ali. Olhou à direita e viu a cidade recheada com as promessas do casamento, dos filhos, do concurso. Estranhamente não sentiu pesar, as agonias de outrora não mais existiam, dentro dele prevalecia um oco de desalento. Pensou uma vez mais em Vanusa e virou pela última vez à esquerda, rumo à Pedra da Encosta.
O CONTO SEMIFINALISTA
Odilon morreu numa terça
Odilon morreria ao final daquela tarde. Ou como diria o poeta, quando o destino selasse o ocaso do dia, a efêmera chama de Odilon dançaria sua última valsa. Por ele mesmo, fora escolhido o entardecer daquela terça para seu fim. Ao despertar vagaroso de uma noite mal dormida, onde sequer os sonhos ousaram comparecer, Odilon arrastou um tamborete, sentando-se diante do espelho carcomido na parede. Sondando o inverso de si refletido, arregaçou um bocejo que despertou o amargor dos feitos etílicos da noite anterior, agora ressurgindo azedos na boca. Fatigados, os olhos perceberam no espelho sua pele negra encharcada com suores de uma noite inquieta, da qual o descanso esquivou-se. Tais quais incontáveis noites conturbadas, aquela fora de sobremaneira angustiante. Ao menos era a última delas, posto que ao entardecer ele estaria morto.
Olhou para o pingente no peito. A pedra água-marinha resplandecia quando acariciada pelos fechos de sol da janela do quarto. Em volta da pedra circunda, a imagem envelhecida de um peixe-espada e uma flecha aguda compunham a silhueta do amuleto de Logun-Edé. Enaltecido dentre as divindades iorubá desde tenra idade, Logun-Edé evoca a ambiguidade dos seres em sua forma mais sublime. Desde a infância, Odilon era guardião do presente concedido por mãe Inaura que, ao colocá-lo no pescoço dele, sussurrou: “Você é mais que um só, meu filho, vai voar”. Desde então, essas palavras o acompanharam.
Como em outras ocasiões, ao ver-se no espelho, Odilon cismou que o tratamento não estava surtindo efeito. Tivesse ele iniciado os procedimentos quando ainda jovem, talvez os resultados se mostrassem mais eficazes, mas agora aos quarenta anos, o corpo mantinha-se alheio à ação dos fármacos. Quando começou o tratamento, Odilon nutria a crença em um imediato progresso para a sua condição. Entretanto, com o passar dos dias, passaram-se também seus ímpetos de otimismo. Nas vezes em que foi ao hospital, ele ouviu do médico sobre ter paciência, algo que Odilon perdera há tempos. No velho relógio acima do espelho, os segundos marchavam pesados como chumbo, convidando Odilon a adaptar-se à finitude iminente. Ao ponderar ser aquele seu último dia na terra, sentia-se estagnado em uma encruzilhada entre o que foi e o que poderia ter sido. Tal ponderação, entretanto, nem de longe atenuava a convicção fúnebre que residia em sua mente: havia chegado o dia de sua morte.
À maneira de sempre, tão logo despertou, Odilon ligou o rádio. As notícias matinais transitavam entre duas esperanças: a euforia da seleção brasileira na copa do mundo nos Estados Unidos e as expectativas do lançamento do Real, a nova moeda brasileira, pelo presidente Itamar Franco, o que prometia elevar os rumos econômicos do país a outro patamar. Sequer o otimismo monetário ou o esportivo contagiavam Odilon e tampouco afetavam sua convicção fatal.
Desde há alguns dias, quando decidiu morrer, Odilon pôs-se a arquitetar seu fim. Durante o almoço com uma amiga, ela mencionou um conhecido que planejara meticulosamente a própria morte, por intermédio dos serviços de um profissional. Era totalmente desconhecida por Odilon a possibilidade de se contratar alguém para realizar algo dessa magnitude e ele estava convencido de que tal empreitada infringia a lei. A amiga, contudo, assegurava que o profissional era altamente competente e que o serviço era executado com precisão. Tal conversa reacendeu em Odilon um anseio latente de findar sua vida. Desde tempos remotos, ele cogitava tal ação, porém o temor de que algo falhasse o fazia hesitar. Ao saber, porém, da existência de alguém que poderia ajudá-lo a consumar o ato, o desejo retornou com uma força renovada.
Ao arrastar o tamborete para mais perto do espelho, Odilon encarou o rosto riscado pelo tempo, no qual as lembranças do caminho trilhado até ali se desenhavam. Brotou na memória a juventude rebelde, quando preferia ser tudo o que não lhe era permitido, subvertendo os tais dogmas morais. Naquela imagem refletida, não restava sequer vestígios de seu eu mais combativo, apenas um olhar carregado de um ser decaído. Tal sensação intensificava-se ao lembrar-se de que aquele era seu último dia de vida e as memórias o mantinham suspenso entre a vida e o desconhecido. Odilon sabia que sua decisão de morrer possuía um único motivo: Ângela.
O pensamento guiou o olhar de Odilon para o outro lado do quarto, onde estava a penteadeira com o espelho de Ângela. Ela era bem mais jovem que ele, mas ele não se importava, afinal, como dizia Millôr Fernandes, “o homem tem a idade da mulher que está com ele”. Além do mais, a jovialidade de Ângela o rejuvenescia. Podiam, é verdade, ter a mesma penteadeira, mas Odilon preferia que Ângela tivesse um cantinho próprio, que refletisse toda a sua alegria. Com o verniz da borda desgastado, o espelho de Ângela preservava as inúmeras vezes em que ela se preparava à noite para o trabalho. Na bancada gasta, potes de tamanhos diversos exibiam etiquetas com promessas de rejuvenescimento. Um pequeno frasco de perfume reunia memórias, evocando suspiros em Odilon ao recordar as borrifadas delicadas que ela aplicava ao se arrumar. A maquiagem, disposta em um rústico estojo de madeira, oferecia pinceis e batons de cores variadas, destacando-se o vermelho intenso, com o qual Ângela sempre adornava os lábios.
Aquela penteadeira era um altar de intenções, onde Ângela inventava a imagem atraente aos homens na rua Passos Guimarães, onde ela trabalhava vendendo prazer. Tal qual espelho a admirava sem preconceitos, Odilon também não a julgava por converter seu corpo em uma fonte de prazer. Além disso, nos últimos tempos de tratamento, o dinheiro que Ângela obtinha nas ruas sustentava a casa e cobria os custos dos medicamentos, pois Odilon já não tinha forças para trabalhar. Em noites de quinta-feira, na conhecida Rua Passos Guimarães, a beleza de Ângela destacava-se em meio à feiura da rua e seus passos delicados encenavam a sensualidade desejada pelos clientes. Encarnava a feminilidade em sua essência, onde força e vulnerabilidade coexistiam em rara harmonia. Sua voz suave oferecia um consolo terno àqueles que a procuravam e, no emaranhado da noite, Ângela manifestava-se em cada beco da rua como um alento poético entre as sombras.
De volta a si, Odilon decaiu-se sobre o paradoxo em que se via: seu amor por Ângela era o que o mantinha vivo, insistindo no tratamento. Contudo, o desejo de vê-la livre do peso de sua presença era a razão maior pela qual ele decidira morrer naquele dia. Ângela era a razão de sua vida. Ângela era a razão de sua morte. Com o olhar distante, Odilon recordava o longo tempo compartilhado com Ângela, revivendo os primeiros encontros desde a infância. Jamais poderia ter previsto, entretanto, que ela se tornaria parte tão essencial de sua trajetória. No princípio, Ângela era um enigma não decifrável, mas à medida que os anos avançaram, ele começou a compreendê-la e ao mesmo tempo amá-la.
Na memória de Odilon, emergiam lembranças vívidas das diferenças entre ele e Ângela nos dias da juventude. Enquanto ele se mantinha enclausurado em pensamentos introspectivos, Ângela irradiava uma alegria contagiante. Odilon sabia que ela também carregava seus próprios fardos, enfrentando os dilemas de pertencimento no seio familiar e as desavenças causadas por seu desapego às regras sociais. No entanto, ele estava certo de que esses obstáculos não eram capazes de ofuscar o brilho dela.
Na época do segundo grau, Ângela florescia com cada amanhecer, enquanto Odilon trilhava um caminho oposto. O brilho crescente dela contrastava com o declínio da autoestima dele, cada vez mais recluso, reconhecendo-se como um estranho. Contudo, na presença de Ângela, uma nova dimensão da existência se abria diante de Odilon. Ela carregava consigo, não apenas sua própria alegria, mas também a de Odilon. Ângela florescia, e sua presença permitia a Odilon mergulhar nas sombras da vida, em uma simbiose em que ele se nutria do esplendor que ela irradiava. Eles tinham amigos distintos, viviam em universos diferentes, mas estavam sempre juntos. Mesmo com tanta proximidade na juventude, os pais de Odilon nunca chegaram a conhecer Ângela. Havia murmúrios e suspeitas sobre a existência de Ângela em sua vida, mas ele jamais promoveu o encontro.
Enquanto Odilon permanecia imerso em suas reflexões, seu olhar se voltou novamente para a penteadeira de Ângela, onde um vestido azul estava dobrado na cadeira. Imediatamente, uma memória tomou conta de sua mente, levando-o de volta à primeira vez que a viu naquele vestido. Naquela ocasião, ela emanava uma luminosidade única, e aquela noite ficou gravada em sua memória como um momento ímpar. Naquela noite, Odilon e Ângela saíram juntos, mas apenas Ângela existia, atraindo os olhares de todos. Em meio a tudo isso, Odilon encontrava uma alegria genuína dentro de si. As belas lembranças sobre Ângela foram ofuscadas, quando os olhos de Odilon retornaram ao espelho diante dele e uma melancolia profunda dele se apossou.
Embora o médico estivesse otimista e Odilon nutrisse a certeza de que o tratamento era a melhor opção, a vagareza dos efeitos dos remédios assombrava Odilon. Por conta de Ângela, que suplicou a ele por dedicação ao tratamento, Odilon abraçou a jornada terapêutica com afinco. Ainda assim, nos últimos dias, um desconforto avassalador tomou conta dele e o reflexo no espelho parecia revelar mais do que ele desejava confrontar.
Odilon levantou-se e se e foi até a janela do quarto, avistando Dona Sueli que cuidava atentamente das plantas. Ela era proprietária do terreno e morava na casa da frente, enquanto Ângela e Odilon alugavam o pequeno barracão nos fundos. Naquela terça, Dona Sueli trajava um vestido sem cor definida, seus cabelos cobertos por uma sacola, talvez com algum creme. Quando o contrato de aluguel foi negociado, Odilon informou à Dona Sueli que mais alguém moraria no barracão, mas, na urgência de alugar o imóvel, Dona Sueli não fez muitas perguntas.
Desde então, Ângela nunca trocou sequer uma palavra com a vizinha, cuja rotina exclusivamente doméstica era evidente e sua propensão a bisbilhotar e fofocar era conhecida por todos. Havia apenas alguns meses que residiam ali, e o semblante de Sueli assumia uma expressão sempre descontente ao testemunhar Ângela saindo à noite sozinha, vestindo roupas que considerava inadequadas para uma mulher cristã. Odilon, por sua vez, conversou algumas vezes com Dona Sueli sobre assuntos pragmáticos como energia e água, mas nunca mencionou Ângela. Dona Sueli desconhecia a profissão de Ângela, e Odilon preferia assim, pois, se a verdade fosse revelada, isso poderia abalar as estruturas do convívio, quiçá a ponto dela pedir o barracão de volta.
Odilon voltou ao espelho, trinta minutos haviam transcorrido desde o instante em que despertara. Ele elegeu para seu último café matinal a escolha de sempre em momentos de melancolia: uma xícara de café preto, sem açúcar. Depois de tomar duas xícaras de café bem quente, ele retornou à penumbra do quarto. Com o gosto do café ainda na boca, lutando contra os efeitos da ressaca, ele direcionou o olhar ao relógio, observando o movimento constante dos ponteiros, que caminhavam implacáveis em direção à hora de sua morte.
Um pedaço de papel sobre a cabeceira chamou a atenção de Odilon. Nele estava escrito o endereço do local onde sua morte ocorreria. Ao lado do endereço, repousava um envelope, contendo a quantia exigida pelo homem para a execução da incumbência mortal. A lembrança do tal homem emergiu na mente de Odilon acerca do encontro discreto ocorrido em uma lanchonete no centro da cidade. Na ocasião, o homem, gordo, trajava um terno barato e estava adornado por manchas de suor nas axilas, aproximando-se de Odilon. Ele tinha um palito entre os dentes que se movia de forma desagradável entre cada palavra. Naquele encontro, o homem havia detalhado todo o procedimento, precavendo sobre a ilegalidade do serviço, mas garantindo sua eficácia e agilidade. O homem explicou que Odilon faria o pagamento no dia do serviço, e, por motivos óbvios, o dinheiro deveria ser pago imediatamente antes do ato. Apesar das dúvidas, Odilon estava decidido a seguir em frente. Como previamente combinado, o homem requisitou uma fotografia, e Odilon escolheu uma que particularmente apreciava, entregando-a a ele.
Agora, eram quase dez da manhã e Odilon finalmente se afastou do espelho, consciente de que chegara o momento de se aprontar para sua derradeira empreitada. Depois de um banho longo, vestiu uma calça social, uma camisa branca e uma gravata marrom. Em seguida, pegou uma mochila e nela colocou o envelope com o dinheiro e algumas coisas que considerava indispensáveis para o momento. Em seguida, pegou a carteira com alguns papeis e, ao manuseá-los, viu seu documento de identidade. “Odilon Alves de Melo”, dizia o documento. Ao ler seu próprio nome, lembrou-se do quanto odiava aquele nome. Seu pai o escolheu em homenagem ao médico que realizou o parto, mas Odilon nunca gostou de “Odilon”.
O local indicado no endereço era um edifício antigo, situado no coração da cidade. Ao percorrer as ruas centrais, Odilon absorvia o ambiente, capturando a essência final de tudo. Diante do edifício que testemunharia seu desfecho final, Odilon percebeu que a ansiedade o fizera chegar muito cedo. Decidiu então entrar na padaria do outro lado da rua e pediu uma xícara de café preto, sem açúcar, e se sentou próximo à porta. Odilon começou a notar que a vida seguia como que num rio, pessoas novas passavam e depois outras e nunca se repetiam. Os centros têm disso, imaginou ele, as pessoas passam, não ficam, compram, suam, protegem as bolsas e vão embora. Mas os que trabalham na rua, pensou, gritam, esbravejam, oferecem e não se frustram mais com toda a indiferença que os transeuntes demonstram. “Foto três por quatro aqui comigo, bem baratinho”, esbravejava um senhor para ninguém, apenas lançava seu grito ao vento como uma isca na esperança de um andante morder. “Compro ouro” dizia o colete de pano de um outro senhor.
Em um determinado momento, enquanto seus olhos perambulavam sobre os elementos daquela típica rua de uma grande cidade, Odilon se deparou com uma pequena flor, no canto da calçada, próximo ao asfalto. Ela nasceu lá, de dentro do concreto podre e sujo daquela calçada, entre as frestas do cimento. Era uma singela flor amarela, solitária, mas vívida, balançando ao sabor do vento provocado pelos carros que ali passavam.
Uma lata jogada, os pés de alguém, lama vindo do asfalto, um pneu desses carrinhos de ambulantes, qualquer coisa poderia findar sua existência em frações de segundo, mas a delicada flor parecia não se importar com a perecibilidade de sua própria existência e a constante iminência do fim. Subitamente, um transeunte pisou na flor e ela ficou pregada na sola do seu sapato.
Ainda em luto pela pequena flor, Odilon notou, pelo relógio de pulso, que era chegada a hora. Esgotado o último gole da bebida, já fria e sem sabor, encaminhou-se às escadas que levavam ao terceiro andar. Com firmeza no gesto e resolução na mente, apertou a alça da mochila, onde guardava o dinheiro, os documentos e outros itens imprescindíveis para o seu trágico encontro. Ao chegar ao terceiro andar, Odilon atravessou um corredor escuro até a última porta à direita. Seu coração batia acelerado, quase descompassado. Momentos de incerteza o envolveram, e o medo de possíveis complicações ocupou sua mente, mas ele sabia que seu destino estava decidido. Com um pouco de coragem, bateu à porta e ouviu uma voz do outro lado, autorizando sua entrada. Ao entrar, deparou-se com uma sala pequena, repleta de arquivos que quase não deixavam espaço livre. Próxima à entrada, uma mulher estava sentada, indiferente. No fundo da sala, um homem fez um gesto simples, convidando-o a sentar.
O homem pediu que Odilon entregasse o dinheiro à mulher e colocasse os documentos na mesa. Em seguida, perguntou se Odilon tinha certeza do que estava prestes a fazer. Odilon, sem dizer nada, confirmou com um simples aceno. A mulher conferiu a quantia e informou ao homem que estava tudo certo. Ele se levantou e conduziu Odilon até uma pequena porta, que dava acesso a uma sala ainda menor. Ambos se sentaram ao redor de uma nova mesa. O homem pegou a identidade de Odilon e, sob o olhar atento dele, rasgou o documento ao meio e depois em pedaços menores. Odilon começou a suar frio. Agora, não havia mais como voltar atrás.
O homem então abriu uma pequena gaveta e retirou um novo documento de identidade, com a foto que Odilon havia entregue dias antes, e o colocou sobre a mesa. Pediu a Odilon que confirmasse se a pessoa na fotografia era ele. Odilon confirmou. Agora, quase imóvel, uma tensão intensa atravessava seu corpo, e sua respiração estava entrecortada. Em seguida, o homem pediu que Odilon assinasse o documento com letra clara. Lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Odilon enquanto ele pegava o documento.
O homem notou a reação de Odilon e perguntou mais uma vez se ele tinha certeza. Odilon assentiu com a cabeça. Com as mãos trêmulas, ele pegou a caneta e assinou: Ângela Alves de Melo. Nesse simples traço de tinta, uma trajetória de autodescoberta, sofrimento e determinação atingia o seu clímax, uma transição que marcava o término de uma vida vivida sob o peso de não poder ser quem se era. O documento repousava sobre a mesa, sob o olhar enevoado pelas lágrimas. A pequena sala testemunhava o peso desse instante, uma epifania que ecoava nos suspiros contidos de quem ali se despedia de si mesmo.
Com passos decididos, deixou a pequena sala, buscando refúgio em um banheiro próximo. O eco das emoções ainda molhava seu rosto, enquanto o som abafado da água corrente era acompanhado pelas lágrimas que teimavam em cair. Ali, diante do espelho, se despiu das camadas que por tanto tempo foram prisão. Tirou a gravata, a camisa e a calça e foi como se tivesse tirado um fardo. Suas roupas antigas foram dobradas e guardadas em uma sacola e então o vestido azul, escolhido com tanto cuidado, deslizou por seus ombros. Cada movimento de vestir o vestido, permeado pelas lágrimas, testemunhava um renascer genuíno, um despertar para a verdade que sempre existiu, mas até então permanecera oculta.
A maquiagem, aplicada com mãos ainda trêmulas, ressaltava os traços antes escondidos. À frente do espelho, o reflexo que se erguia não era mais o de Odilon, mas sim o de Ângela. O azul que a envolvia destacava o símbolo de sua travessia, uma personificação da coragem que sempre habitou em seu interior, agora finalmente expressa por completo. Os passos de Ângela, inicialmente hesitantes, a conduziram até a porta do banheiro, e, ao atravessá-la, ela entrou em um mundo que agora era seu.
O destino seguinte, a farmácia no centro da cidade, parecia mais que um local de compras, era o cenário do primeiro ato de sua nova vida. Caminhando pelas ruas, Ângela sentia o peso do universo sobre suas costas, mas também a leveza de quem, pela primeira vez, caminhava em direção à sua verdade.
Na farmácia, a mão de Ângela mergulhou na bolsa e de lá emergiu um pequeno papel de caderno, dobrado com o cuidado de quem guarda segredos. Nele, a caligrafia de Ângela descrevia o nome de um medicamento que trazia consigo mais que uma função biológica: a pílula anticoncepcional, símbolo de uma revolução interna,da jornada hormonal tão desejada.
No instante de hesitação, quando o presente se entrelaça com memórias, as palavras de mãe Inaura brotaram do fundo de sua memória, suaves e poderosas, como uma brisa que acaricia e guia: "Você é mais que um só". Um eco de sabedoria que reverberava na alma de Ângela, uma verdade que há tempos aguardava para ser vivida plenamente, sem medos, sem amarras, apenas existência.
Aproximando-se do balcão, entregou o papel dobrado ao farmacêutico. O homem, ao ler o nome do medicamento, ergueu os olhos e pediu o documento de identidade. Era o momento crucial, a encruzilhada entre o passado e o futuro. Ângela retirou a identidade da bolsa e deu uma última olhada antes de entregá-la ao farmacêutico. Ela se viu, feminina, cabelo arrumado, batom. Ela se achou linda. Entregou o documento ao homem que, sem olhar para Ângela, retirou-se para os fundos da farmácia.
Para ela, o universo aguardava o desenrolar do próximo ato e tudo parou. Sentiu as pernas fraquejarem enquanto a vertigem invadia-lhe a mente e o coração martelava no peito. Gotas de suor frio emergiam, era a pele reagindo ao turbilhão emocional. A pausa estendia-se até que o farmacêutico retornou trazendo o medicamento em uma mão e o documento de identidade na outra. "Aqui está, dona Ângela," disse ele, entregando-lhe os itens.
Essas palavras banharam Ângela de alívio e uma realização inédita tomou-lhe a alma. "Dona Ângela" soava como a legitimação do aceite. Pela primeira vez, alguém a tratava com dignidade, sem diminutivos, sem desdém. Não mais "docinho" ou "boneca", mas "Dona Ângela." Naquele instante, completava-se a transformação interna. Ela era, sem dúvidas, Ângela Alves de Melo e Odilon finalmente estava morto.
Lentos eram os passos, mas carregados de nova determinação, enquanto Ângela trilhava o caminho de volta ao lar. Ao chegar à porta da vizinha, seu coração em galope e sua respiração entrecortada conduziam a sinfonia rítmica daquele instante tenso. Um fôlego profundo a encheu de coragem. Seus dedos tocaram as madeiras ásperas da porta. Batidas suaves romperam o silêncio e reverberaram na tarde quieta. Os segundos que se seguiram foram eternidade. A maçaneta girou. Dona Sueli surgiu confusa com a visita inesperada. Ao contemplar a mulher à sua frente, o olhar surpreso de Dona Sueli era inevitável. Ângela sentiu um misto de nervosismo e expectativa, mas, com voz firme, disse:
– Olá, dona Sueli, muito prazer, meu nome é Ângela.




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