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PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS VENCEDORES: PATRÍCIA RAFAEL — 2º LUGAR CATEGORIA CONTO

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SOBRE O AUTOR


Patrícia Ribeiro Rafael é natural de Salvador, vive em Brasília e atua no serviço público. É apaixonada por natureza, música e artes visuais. Escreve um diário desde criança e encontrou na escrita sua melhor voz. “Café”, conto classificado em 2º lugar no 5º Prêmio Internacional Pena de Ouro, compõe seu primeiro livro, A curva que a água faz no meu corpo, lançado em 2024 pela Editora Patuá. A autora também participa da antologia Nós 2 (Selo Off Flip). Para acompanhar seu trabalho com a escrita, acesse o perfil @patriciarafael.escrita no Instagram.



O CONTO VENCEDOR (2º LUGAR)


Café


Quinta-feira.

Saí do trabalho no início da tarde e fui estudar no subsolo do meu café preferido, que tem cara de aconchego e nome de vó. Gosto de mimar os olhos, enfeitar o cotidiano com cenários diversos. 

Em uma das mesas, um balanço de macramê divide o espaço com as cadeiras. Noutra, o sofá retrô faz composição com o abajur de teto em estilo industrial. No canto, uma máquina de escrever. Em seguida, um estreito quintal com plantas e teto vazado traz frescor e luz natural ao porão. 

A dona do café é arquiteta. Como todo artista, periodicamente se inquieta e insere novos elementos na decoração ou altera a disposição das peças já existentes. Quando cheguei nesse dia e percebi a mudança, explorei o ambiente até descobrir onde fora parar o coração florido em bordado e qual era o novo poema extraído da máquina de escrever. 

Por falar nisso, não estou vendo a escultura dos amantes.

Eu estava sozinha no porão. Adoro quando não há ninguém ao redor: posso cantar em voz alta a trilha sonora. Mas também me agrada ver outros clientes: observo o movimento e me sinto parte do planeta. Gosto ainda mais de ver outra mulher sozinha. Me faz crer que podemos sonhar na prática. Esboçamos sorrisos de incentivo uma à outra, uma teia invisível nos conecta. Ver mulheres nutrindo seu universo pessoal me traz satisfação, tanto quanto percebê-las felizes em relações de real parceria. 

Mas, naquele dia, foi um homem sozinho que me chamou atenção. Chegou depois de mim, sentou-se à mesa da frente e abriu o laptop. Uma cena banal, não fosse a bunda bem desenhada na bermuda de ciclista, onde meu olhar acidentalmente parou. O volume da frente também foi esculpido pela roupa colada. Senti vontade de escalar tais relevos. 

Não seja leviana, é apenas um corpo.

Retomei o estudo. Nos minutos seguintes, porém, tive a sensação de estar sendo observada. Uma centelha surgiu. Não me atrevi a olhar de volta. 

O garçom chegou com meu café coado no paninho. Fazia calor, e me arrependi antes mesmo do primeiro gole: já estava suando nas pernas e molhando a cadeira. Não há jardim de porão que dê conta da aridez abafada de setembro no Cerrado. Contudo, o aroma de café sempre me acolhe e acende memórias de afeto.

Meu pai era um garotinho que secava café no sítio da família, lá nos fundos do país. Na época da colheita, a fruta e papai torravam no sol do terreiro. Os irmãos mais velhos já tinham passado por essa fase. Caçula de seis, papai também era incumbido de levar para a lavoura as marmitas dos irmãos e do meu avô, que administravam todo o processo entre colher a fruta e ensacar o grão. 

Minha avó sonhava em ter uma filha. Amava seus meninos, mas sete homens era solidão demais. Por ironia do destino, a única menina nasceu morta. Vovó viveu o luto nas brechas entre a cozinha, o tanque e a faxina. Com o tempo, resignou-se. “Deus sabe o que faz. A menina não quis vir pra esse mundo.”

Meu avô era distante de afeto, mas era bom provedor. Assim como seu pai. E o pai do seu pai. E o pai do pai do seu pai. Vovô cresceu com o apoio da família e dedicou o fruto do trabalho às gerações seguintes. Não esperou a morte para distribuir aos filhos as terras cultivadas com o suor de todos: bem antes, doou aos rapazes tudo o que podia, ficando ele e minha avó com o necessário e suficiente para os dois. 

O café já havia esfriado um pouco quando pus a xícara de porcelana na boca. Ao erguer a vista, fui atravessada pelo olhar do ciclista sarado. Quase me engasguei. Logo, desviamos o olhar, mas meu coração engatou um batuque contra a minha vontade. Não era o tilintar do agogô num fim de tarde à beira-mar: era o Olodum inteiro atropelando meu corpo sob o sol do meio-dia. 

O que tá acontecendo? Não tem cabimento ficar nervosa assim por conta de um desconhecido. Devem ser esses aplicativos de paquera, não sei mais flertar de forma orgânica. Faz tempo que não conheço alguém ao acaso. Mais de ano, na verdade. E de hoje que não transo… uns dez, onze meses? 

A última vez tinha sido com aquela criatura do aplicativo. Conversava sem me olhar nos olhos. Me despiu e já quis meter. “Espera, me esquenta mais”. Passou a mão desinteressada em meu sexo, só para cumprir protocolo, e meteu com força, ignorando o pedido. Meteu num ritmo que não era o meu, quando meu corpo ainda não estava pronto. Me rasgou a alma. Ainda teve a audácia de mandar mensagem depois, dizendo que a noite tinha sido maravilhosa e que gostaria de me ver de novo. Senti culpa e raiva de mim. Por não ter interrompido o ato. Por ter deixado ele começar. “Maravilhosa pra quem?”. “Primeira vez nem sempre encaixa direito, mas a gente se adapta”. “Não tenho nada pra adaptar com quem não me enxerga, não tem tato nem escuta”. “Certeza que posso te dar muito prazer”, insistiu. 

Uma amiga certa vez comentou que a autoestima desses tipos deveria ser encapsulada e vendida nas farmácias. “Três vezes ao dia após as refeições: seria um sucesso”. “Mas quem ia querer uma autoestima delirante?”. “Amiga, muita gente”. 

Me lembro também de um cara que tapava minha boca quando eu gozava, para abafar o som. O orgasmo esmaecia na hora. Fez a primeira vez. Avisei. Fez a segunda. Abri a porta. “Se pique da minha casa, por gentileza”. 

Minha voz era demais para ele. 

Graças às mulheres que vieram antes de mim, posso fazer novas escolhas. No entanto, após uma série de episódios frustrantes, estava dando um tempo. Não queria me relacionar por nenhum meio: nem aplicativo, nem acaso, nem sopro divino. Se um querubim baixasse na terra e sussurrasse “encontrei um cara pra você”, eu diria “me erra, anjo torto”. Tinha decidido viver de forma monástica. Por um tempo, claro. Não tenho vocação para monja. 

Então é isso. Não vou me derreter por um estranho. A beleza do corpo está em se conectar. Se for pra me tratar como recipiente de tesão acumulado, não quero. 

Meu avô tinha aroma de café e cigarro, o pai do meu pai. A vó não tomava café, nem gostava de cigarro. Quando ela exalava esse cheiro, eu sabia que eles haviam copulado: não se tocavam em outras ocasiões. Nos dias de coito, deitavam-se à tarde; depois ela saía do quarto apressada para preparar a janta dele. O vô tinha horário rigoroso para comer. 

Eu era menina, mas sabia como essas coisas funcionavam. Diante das minhas perguntas desconfortáveis, mainha havia me dado um livro que explicava como os bebês eram feitos. Nessa época, vovô e vovó não faziam mais bebês, então fiquei confusa quando os flagrei pelo buraco da fechadura  até uma prima mais velha me contar que aquilo era bom. Aí entendi. Quer dizer, mais ou menos: pela cara da vó, não parecia bom, então continuei confusa. 

Todos chamavam meu avô de Anjo  apelido para Angelino, o nome de batismo. Eu o amava, comigo era carinhoso. Ele me amava e também amava seus cachorros. Beijava, abraçava, brincava com eles. A vó não gostava de cachorro. Ele trouxe cinco para casa. Minha maior alegria ao viajar para lá era correr no quintal com o vô e os cães. A vovó e minha mãe é que limpavam nossa bagunça.

Um dos hábitos do meu avô era trocar de canal nos raros momentos em que a vó parava para ver televisão. Chegava silencioso, pegava o controle e mudava. Acho que nem enxergava que ela estava ali. Afinal, era a casa dele, a TV dele, o controle dele. Já as mulheres da rua, o velho enxergava bem. 

Convivi pouco com o vô, eu estava no final da infância quando ele morreu. Me lembro da última vez que nos falamos ao telefone, antes da cirurgia. Ele chorou. Eu nunca tinha visto meu avô chorar. “Vai dar tudo certo, vovô”. Eu realmente acreditava no que estava dizendo. Ele fez uma longa pausa e pareceu forçar um sorriso do outro lado da linha. “Vai, sim, fia”. 

Hoje, sigo proferindo essa frase, embora não acredite nela. Não desde aquele dia. Somos todos grandes mentirosos. Inclusive, os Anjos. 

Suas córneas foram doadas, acabei escutando numa conversa entre adultos. Me perguntei se quem herdasse as lentes do vovô passaria a reparar em cachorros e rabos de saia por aí. 

Depois que ele morreu, minha avó mudou de casa, doou os cães e passou a cultivar uma horta que virou seu xodó. Encontrou enorme prazer em plantar, colher e comer o que quisesse. Antes, quem escolhia o cardápio era o vovô; e os cachorros destruíam tudo que ela plantasse. 

Tomei mais um gole de café. Ahá, achei a escultura dos amantes! Estava perto do espelho, abaixo do extintor de incêndio. Não havia lugar melhor para acomodar a escultura. De pé, com pescoços inclinados para cima em sinal de êxtase, o casal de papel envernizado entrelaçava pernas e braços. Senti inveja dos amantes. 

Quanto tempo tem que não experimento um incêndio?

Claro que tinha conhecido um ou outro homem bacana ao longo do caminho. Homens que me amaram, ensinaram e aprenderam comigo, até nossa trilha bifurcar. Estes, no entanto, foram gatos pingados em meio a um poço de água limosa cheia de mosquito. Na maioria das vezes, me esbarrava em aparentes incêndios que não passavam de fogo de palha. Caras sem constância na relação, que acreditavam que fazer o mínimo garantiria minha permanência. Eu não sou pombo, mon amour, minha fome se alimenta de segurança. 

Outros se espantavam com minha voracidade, achavam que os tornaria o centro do universo. Logo eu, colocar minha existência nas mãos do outro, deusolivre. As pessoas não estão acostumadas com o sentir. 

Passei também por homens enrolados, evasivos, desses que saem pela tangente e, após um tempo, ressurgem das cinzas  fênix que são  como se nunca tivessem sumido: “Saudade, bora tomar um café?”. A cara nem arde. Minha vontade de me relacionar fica mais murcha que uva-passa no canto do prato. Nada é capaz de fazer minha periquita voltar a bater asas por um homem-fênix. Não há brochada mais potente que a de uma mulher: a gente brocha lá no fundo da alma. 

Mas tudo bem, tenho me dedicado a outras formas de amar. Nesse dia, no café, estava nutrida da minha paz. Não vou permitir que algo me desvie o foco, menti para mim. Foco, essa palavrinha traiçoeira. Eu medito e organizo minha agenda, mas basta uma muriçoca passar, e já me distraio do que estiver fazendo. 

Minha outra avó era distraída, a mãe da minha mãe. Ou melhor, as pessoas a julgavam aluada, mas ela era bem atenta às coisinhas: os passarinhos, o balanço das folhas, o cheiro do pó de café antes mesmo de abrir o pote. Ela sentia tudo. Voinha tocava bandolim e cantava nos saraus da cidade, naquele interior nordestino de línguas grandes e sonhos pequenos. Os rapazes ficavam encantados. Foi assim que conheceu o futuro pai dos seus filhos: ele tocava rabeca nesses mesmos eventos. Depois que se casaram, o bandolim ficou encostado. Da música da minha avó, restou apenas o cantarolar baixinho pelas janelas de casa. Ficava observando as árvores e o entardecer, com uma xícara de café na mão e um jeitinho de quem escondia relíquias na alma. A vi muitas vezes assim, a mansidão em pessoa. Não admitia falar mal de ninguém. Se ela abrisse a boca para criticar um ser vivo, pode crer que aquele era o diabo, porque voinha não esbravejava nem contra as baratas. 

Ela se dizia feliz com meu avô. Largou tudo por ele. Parece que ele também a amava, nos moldes daqueles tempos. Não conheci esse vô, morreu antes do meu nascimento, mas soube que era um dos corações mais generosos da cidade. Deixava as crianças e os pobres entrarem de graça em seu cinema  o único da cidade  e era um grande entusiasta da arte. Menos da arte da minha avó. Mas também, que mulher com dez filhos, casa e marido para cuidar teria tempo para isso? 

Já ele continuou tocando nos saraus.

Mesmo depois de sua morte, os filhos já crescidos, voinha se manteve fiel ao desejo de meu avô: apenas as plantas de casa ouviriam seu canto de musa, e os dedinhos cansados já não aguentavam a dureza das cordas do bandolim, que acusavam com doce melancolia: “tudo tem seu tempo, minha flor”. Quando minha avó se foi, encontrei na gaveta do seu armário um papel encardido com a letra de sua canção preferida escrita à mão. Imaginei quantas vezes ela a teria tocado na época dos saraus. 

Espero que hoje voinha participe de todas as orquestras do céu.

Dela, herdei a introspecção e o bandolim, que decora minha parede com lembranças que não vivi. Tentei aprender o instrumento, mas não consegui me adaptar às cordas. 

Dei o último gole de café. O ciclista estava fazendo um pedido ao garçom. Os dois riram com alguma intimidade. 

Deve ser cliente frequente, como eu. Estranho nunca tê-lo visto aqui. Parece simpático. Ficou até mais bonito. Para, mulher! É só um homem. Volte pro estudo. 

Não deu tempo de voltar. Assim que o garçom entrou para a cozinha, o ciclista me flagrou observando. Desviei o olhar, tímida como não me lembrava de ser. Quando olhei de volta, ele ainda sustentava a mirada — agora com um sorriso do tamanho do mundo. Puta que pariu. A essa altura o coração orbitava ao redor de mim feito satélite. Só consegui sorrir de volta, do tamanho do universo. Alguns metros nos distanciavam, mas dava para sentir nossas respirações se encontrarem no caminho. Eu não aguentava mais aquela agonia: meu coração-lua não parava quieto, a perna escorregava na cadeira de tanto suor, e o sorriso dele ia dissolvendo todo resquício de gelo que havia em mim. 

O garçom voltou com o pedido dele.

Ótima oportunidade pra eu sair do modo abobalhada e fazer o que vim fazer aqui. Encarei meu laptop desanimada. Não adianta… não vou conseguir retomar o fio da meada. Deixa pra lá, mais tarde continuo

Olhei de relance para a mesa do ciclista: agora ele também olhava para o próprio notebook, no entanto, não parecia concentrado. Uma tarde de fracasso para ambos. Fechei o computador. Vou ler um livro. Sempre levo alternativas para um café, alguma coisa há de funcionar. 

— Também gosto dessa música. 

O ciclista estava em pé diante de mim. 

— Hein? — respondi no susto.

— Essa que você tá cantarolando.

Eu tô cantarolando?

— Gostei da sua bun… bermuda. 

— Quer pedir outro café e tomar comigo? Parece que a gente não tá conseguindo render hoje. 

Apontou para o meu notebook fechado e o livro aberto de cabeça para baixo. 

— Tudo bem, mas acho que vou pedir algo gelado pra equilibrar. Tô suando que nem cuscuz. 

— Boa! Vou pedir algo gelado também. Na minha mesa ou na sua?

— Na sua, porque tem o balanço.

Me sentei no balanço de macramê, e ele voltou para a cadeira em que estava. Nosso suco chegou. O garçom, que estava acostumado a nos ver sozinhos no café, deu uma risadinha marota, mas não comentou sobre minha mudança de mesa.

— Cê tava pedalando antes de vir pra cá?

— Tô treinando pra uma competição de mountain bike nesse fim de semana.

— Nossa, já vi uns vídeos com manobras assustadoras. 

— Ah, mas nem sou tão bom assim. Na verdade, sou ruim em várias coisas. Corro, nado e jogo futevôlei.

Descobri que era educador físico e fazia doutorado na área de treinamento de força de atletas. 

— Gosto de dançar forró também. Você dança? 

— Amo forró.

— Pois toda sexta rola forró de rabeca no bar aqui do lado. Amanhã preciso descansar pra competir, mas, se quiser vir comigo na próxima, vou adorar. 

— Que massa! Meu avô tocava rabeca. 

Ele parecia ter alma colorida, diferente de um namorado que tive anos antes. Um homem perturbado, cinza. As cinzas têm sua beleza, fruto da transmutação da vida através do fogo, mas o cinza dele era perene. Não gostava de sorrir, não topava experimentar algo novo, vivia de calundu. Até o sexo, quando ocorria, seguia o mesmo roteiro. Cinzas devem ser espalhadas num lugar especial, ou guardadas num pote cheio de ternura, para a gente se lembrar de quando foi cinza antes de renascer. No dia em que eu virar cinza para sempre, quero dançar com o vento e ser espalhada pelo mar, pelos lagos e pelas cachoeiras. Jamais ficarei acomodada num cinzeiro fedorento. 

Meu avô morreu de câncer de pulmão, o vovô Anjo. O outro morreu de acidente. Acidente não: bebida. Vivia bebendo nos saraus e nos botecos. Às vezes, tocava na cidade vizinha. Certa noite, não voltou. A rabeca foi morar para sempre na ribanceira.

As duas avós morreram de velhice. Tenho a impressão de que mulheres são mais eficientes em não deixar a alma desbotar por vícios. A gente desbota de outra forma, quando emudece os desejos. Mas algumas de nós descobrem suas hortas e as cultivam com paciência. Então as cores ressurgem, mais vivas que outrora. Temos uma insatisfação natural que nos impulsiona para a vida. Carregamos no corpo a ciclicidade da natureza. 

— E você, o que fazia no computador? — o ciclista perguntou. — Estudando também? Trabalhando? 

— Estudando. Reduzi minha jornada de trabalho pra ter mais tempo pro que gosto.

— Tá valendo a pena? 

— Demais, apesar da redução no salário. Só que sinto muita culpa, sabe? Parece que tô cometendo um pecado. Geralmente quem pede redução de carga horária redige uma justificativa minuciosa à chefia, tal como cuidar da saúde debilitada do marido ou do filho especial. São causas nobres. Reduzir porque quero ter mais tempo livre pra fazer o que quiser ainda está fora da compreensão geral. Às vezes, recebo alfinetadas travestidas de perguntas curiosas e acabo me questionando também. Como assim eu escolho ganhar menos e perder prestígio apenas para… viver? 

— Entendo. Sinto que o trabalho e a vida acadêmica ocupam quase todo o meu tempo, mas sou apaixonado pelo que faço. Isso dá sentido pra parte desagradável que existe em qualquer compromisso, mas também pode ser uma armadilha, porque me sobrecarrego, me desgasto e deixo outras coisas igualmente importantes de lado. 

— Eu tava lendo um artigo outro dia sobre o que você falou: pessoas que amam o que fazem também podem sofrer esgotamento mental. Muitas sacrificam tanto a saúde que deixam de amar o que antes era fonte de realização. 

— A gente é um serzinho complicado, né? 

Rimos. De nervoso.

Ele quis saber mais dos meus projetos, e eu, dos dele. Conversamos por mais de uma hora. Meu coração descompassado foi se acalmando e enfim pegou ritmo. No final, eu já estava recostada no balanço, me sentindo em casa. Tão em casa que, de impulso, chamei o ciclista para ir para o lago comigo.

— Vim de biquíni por baixo. Quero tomar banho de lago, não tô aguentando essa quentura. Você anima? Ainda dá tempo de pegar o pôr do sol. 

Pedimos a conta e minha mente levantou um alerta pela atitude impensada.

Vai pro lago com um cara que acabou de conhecer? Mas meu coração estava tranquilo e ficou botando pilha: relaxa, eu tava conversando com o coração dele enquanto vocês dialogavam e só consegui enxergar flores lá dentro. Inclusive, ele tem uma flor de café tatuada no peito, sabia? Quando ele tirar a camisa, você vai ver. Acredite: você vai querer vê-lo sem camisa! Olhei desconfiada para o coração. Você é emocionado demais, porém também não confio na mente, ela já paralisou muito a minha vida. O que faço com vocês, hein? Me deixam maluca! 

Resolvi ir ao banheiro e ligar para uma amiga. 

— Tô indo no parque com um cara que acabei de conhecer no café. Pode ficar atenta ao celular? Vou compartilhar minha localização com você e te dou notícia quando chegar em casa. 

Pronto, mente, satisfeita? Ela me olhou com cara de decepção. O coração estava dando saltinhos.

O parque estava vazio, o lago era só nosso. Fiquei de biquíni, e ele tirou a camisa para entrar na água só com a bermuda de ciclismo. Vi a flor de café no peito. 

Caramba, coração. É linda mesmo. 

Ele abriu a mochila e pegou o protetor solar.  

— Quer?

— Não, valeu. Tenho aqui também.

— Tá com fome? Tenho mix de castanhas e água.

Com fome eu estava. O episódio daquela tarde tinha me deixado tão ansiosa que não havia comido quase nada no café. Aceitei as castanhas. Enquanto comia, observava ele passar protetor; atitude rara nos homens que conheço. Senti um pulsar lá embaixo — nem tanto pela beleza do corpo tonificado, e mais pelo gesto. Percebi que era a saúde dele o que me atraía. 

Que homem prevenido. Darwin ficaria orgulhoso: pouca chance de ter câncer de pele… ou morrer de veia entupida — pelo menos no que depender das castanhas. 

Um tio, irmão do meu pai, morreu de melanoma avançado, de tanto sol que pegou na lavoura. Naquela época, não se falava em filtro solar.

Após refletir, concluí que o tesão absurdo que eu estava sentindo era o instinto de preservação da espécie festejando aquele homem cuidadoso. É o mesmo tesão que sinto por caras que não dirigem após beber. Deve ser a natureza dizendo “esse doido tem menos chance de se matar e te largar sozinha cuidando da casa, da cria e de si”. Não que eu quisesse uma prole com o ciclista gostoso — nunca quis ter filhos, mas a natureza em mim não entende isso. E claro que a gente é capaz de tocar a vida sem um parceiro, porém, se for para viver com alguém, que seja para colaborar, não para dificultar as coisas. 

Portanto, Darwin não disse, mas eu digo: Neutrogena FPS 50 ativa a libido e corrobora com a teoria da seleção natural.

É, mas se lembre que ele ainda pode se estropiar nas manobras de mountain bike, a mente falou.

— Vamos entrar na água? 

As incômodas pedras do raso logo deram lugar a uma lama que massageava os pés. O lago ensina a atravessar algumas pedras para conhecer o conforto, porém não sou obrigada a me machucar toda vez que quiser nadar. Da próxima, vou comprar um daqueles sapatos aquáticos

Fomos até o fundo e mergulhamos. Depois paramos para descansar num ponto em que a água batia na minha cintura. Contemplei a quietude do lago e o ruído dos pássaros. Dali dava para ver o prédio no qual trabalhava. Do outro lado da margem, parecia tão pequeno… pequeno diante da imensidão do mundo, pequeno demais para tirar minhas noites de sono. E percebi que nada daquilo merecia o peso que eu dava. 

Que troca sensacional. Nenhuma gaiola de ouro compra essa paz.

— Quinta-feira é meu dia preferido — o ciclista falou. — Foi o dia em que eu e meus irmãos nascemos. Tenho a palavra tatuada no pulso, olha. 

Eu não tinha reparado. Acompanhei o traço com o dedo. Fiz carinho na quinta-feira dele. 

— Agora tenho mais um motivo pra gostar das quintas. Não é todo dia que me encanto por uma desconhecida num café e venho tomar banho de lago.

— Ah, pra mim isso é rotineiro — brinquei.

Nos beijamos. As línguas quentes incendiaram nossos corpos gelados. Acarinhei a flor em seu peito. Ele me olhou nos olhos e desceu a mão pelo colo ofegante. Quando sentiu que eu estava aberta, seu dedo delineou meu seio sobre o biquíni-cortininha. Estremeci. Então afastou a cortina para o lado e colocou meu seio na boca, alternando entre chupar, dar mordidinhas e brincar com a ponta da língua no mamilo. Quanto mais ele sugava, mais eu me sentia irrigar. Meu coração foi pulsar entre as pernas. 

Aqui no parque tem capivaras, viu, bonitona? E são exímias mergulhadoras. Dia desses, um homem levou quarenta pontos.

Caralho, mente! De onde cê tirou isso? 

Acabei de pesquisar no Google enquanto você taí se pegando com essa escultura de homem. Parecendo adolescente, nunca vi. 

Comentei com o atleta que as capivaras eram boas nadadoras.

— Deixa eu te carregar então. Se uma delas aparecer, vai atacar minhas pernas, e não as suas. 

Me enrosquei em seu tronco feito trepadeira. Minhas pernas abraçaram seu quadril e rocei nele duro. Nossos sexos praticamente se encaixaram nesse movimento, ainda sob a roupa de banho. 

— Não me deixa fazer besteira… — ele suplicou. — Não posso entrar em você agora porque estamos sem camisinha, mas queria tanto… — sussurrou quente em meu ouvido.

Desci e o abracei por trás. Coloquei o pau para fora, delicioso, deslizando em minha mão dentro d’água. Ele gemeu. Eu beijava suas costas e apalpava sua bunda enquanto o masturbava. Continuei até ele gozar.

Fiquei um tempo abraçada em suas costas, e ele voltou a respirar tranquilo. Depois, me puxou e me deitou na água. Com o braço esquerdo, apoiou meu corpo; com o direito, fez música em mim. Após me dedilhar inteira, sua mão entrou no biquíni e me massageou entre as pernas. Meu botão se abriu, e ele me percorreu pétala a pétala. Sentiu o néctar que escorria de mim e desaguava no lago. Nem todo infinito é mar. 

Quando o dedo gelado entrou em meu canal quente e úmido, soltei um gemido.

O céu. 

O céu é a única coisa que vejo enquanto estou boiando em seu braço. Seus dedos me penetram lentamente… um… dois… três… um… dois… três… Meu ouvido submerso escuta apenas o silêncio. O lago não tem som. Nos finais de semana, dá pra ouvir o motor das lanchas, mas não numa quinta-feira. 

Manteve dois dedos lá enquanto massageava o clitóris com o polegar. 

Quem compara sexo com inferno nunca viu o céu. Se visse, saberia: tem fogo no céu também. Fogos de artifício. E explosões de estrelas, dessas que formam novos planetas dentro da gente.   

Gozei com toda a minha vontade. 

— Que delícia te escutar. 

Passamos a semana seguinte nos encontrando nas brechas da rotina — um cafezinho entre o trabalho e o estudo — e, na sexta, fomos para o forró. A banda tocava principalmente baião, mas eu preferia quando vinha um xote para dançar com o ouvido encostado em seu peito. Uma rabeca chameguenta nos embalava.

De lá, a gente foi para a minha casa e se amou. Baixinho. Alto. De olhos abertos. De olhos fechados. Tocou. Lambeu. Chupou. Mordiscou. Riu. Brincou. Beijou. Penetrou. 

Perdi a conta de quantas vezes falei te amo naquela noite. 


Eu te amo quando seus dedos percorreram minhas curvas

Te amo quando beijei a flor de café em seu peito 

Te amo quando ele perguntou “como você gosta?” 

Te amo a cada passo de dança que ele dava dentro de mim.

Eu te amo quando sorrimos de olhos fechados

Te amo quando acariciei seu cabelo entre minhas pernas trêmulas 

Te amo quando me regou com suas águas. 


Eu dizia te amo em silêncio, mas nossos corpos falavam a mesma língua, e ele escutou. Percebi quando me leu e também disse te amo com o olhar. Ele não era do tipo que se assustava. 

Passei o dia seguinte levitando.

Se lascou, tá arriada os quatro pneus, a mente falou comigo. A paixão é uma pegadinha da natureza pra você dar loucamente e perpetuar a espécie. Você fantasia no outro a projeção de suas expectativas. Esse seu estado de abestalhamento pode durar alguns meses ou anos, até você constatar que ele é um ser humano complicado e irritante como qualquer outro, e ele descobrir o mesmo sobre você. Não confie no coração.   

Não importa, mente. Me deixa acreditar na magia das pessoas, só um pouquinho. Depois a gente vê o que fica. Inclusive, essa alteração química no organismo vem do cérebro, o lugar em que você vive. Acha que não sei? Sua casa é uma bagunça, cheia de instruções contraditórias. O coração não tem culpa, é apenas uma criança brincando de mãos dadas com a noradrenalina num pula-pula. Agora dá licença, que preciso me esvaziar de você um pouco.

Ela ficou sem graça e se retirou.

Mais tarde, fui ver filme na casa dele.

— Que tipo de filme você gosta? — me perguntou.

— Drama. E você? 

— Vixe, gosto de comédia. 

— Hum… que acha da gente ver uma comédia dramática? 

— Ótimo! Vou passar um café e preparar o lanche, tá? 

— Deixa eu te ajudar na cozinha.

— Precisa não, valeu. Cê pode escolher o filme enquanto preparo as coisas? 

— Claro! — peguei o controle da TV.

Ele voltou da cozinha com o café e a comida. Eu estava cantando alguma coisa.

— Adoro te ouvir cantar. A gente podia ir num karaokê qualquer dia, que acha? 

Me beijou. 

Olhei pela janela. Duas estrelas se destacavam entre as demais. Piscavam para mim satisfeitas. Estrelinhas que dividem comigo a existência em diferentes atos. Pisquei de volta e agradeci por terem aberto caminhos. E por me darem força para cantar suas vozes. 

Pedi benção a minhas avós. 

Tomei um gole de café.



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