PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS VENCEDORES: RAFAEL BÁN JACOBSEN — 3º LUGAR E SEMIFINALISTA CATEGORIA POEMA
- Casa Brasileira de Livros
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SOBRE O AUTOR
Rafael Bán Jacobsen é escritor, músico, professor e físico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui graduação e mestrado em Física pela UFRGS e bacharelado em Filosofia pela mesma instituição. Participou de centenas de coletâneas e antologias em diferentes gêneros literários, incluindo conto, poesia e ensaio, e é autor dos livros individuais Tempos & Costumes (Prêmio Açorianos de Destaque em Narrativa Longa, 1999), Solenar (Prêmio Açorianos de Literatura 2006) e Uma leve simetria (finalista do Prêmio Açorianos 2009 e também do Prêmio Livro do Ano, da Associação Gaúcha de Escritores, em 2010), além de organizador da obra Por que ler os contemporâneos? Autores que escrevem o século 21 (finalista do Prêmio Açorianos de Literatura 2015, na categoria Ensaio de Literatura e Humanidades). Foi contemplado com a Bolsa Funarte de Criação Literária em 2009 e escolhido pela fundação alemã Lettrétage como um dos vinte e oito novos autores mais representativos da literatura brasileira contemporânea, sendo selecionado para integrar uma antologia publicada pela editora dessa fundação em 2013, ano em que o Brasil foi país homenageado na Feira de Frankfurt. Em 2023, com financiamento da Lei de Incentivo à Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, foi editada sua coletânea de contos Caligrafia do espanto (e outros contos). É o atual presidente do Círculo de Pesquisas Literárias e membro efetivo da Academia Rio-Grandense de Letras, da qual é o mais jovem membro e ocupante da Cadeira 29 desde 2013. No concurso Pena de Ouro 2023, obteve 3º lugar na categoria conto e foi finalista na categoria poesia. No Pena de Ouro 2024, obteve 3º lugar na categoria poesia, além de ter quatro outros trabalhos selecionados entre os semifinalistas.
O POEMA VENCEDOR (3º LUGAR)
o amor eu busquei no fogo
O amor eu busquei no fogo,
nas chamas acesas em pleno bosque
para iluminar os ritos de sabá.
A noite era de grilos e azuis.
Na vereda inerme entre ciência e delírio,
meus pés profanaram
o caminho secreto das bruxas.
Perguntei a cada sombra
onde encontrar as almas enfeitiçadas,
as rainhas heréticas,
suas consteladas pulsações.
Onde estão? Onde erguem seus punhais
e derramam o sangue das maçãs?
Nenhum olmo ou aveleira respondeu,
nenhuma ave noturna revelou –
segui órfão na noite órfã e sem raízes.
Que segredo elemental escondem?
Antes que eu descubra, a escuridão já terá sorvido
até a seiva dos meus ossos.
Cada vez mais fundo, cada vez mais mundo,
o bosque à noite inflamava desatinos.
Nos troncos e nas ramagens,
rostos passados, corpos esmaecidos,
suspiros transformados em língua estranha.
Já foram meus estes fantasmas,
mas agora eu talvez seja apenas um cadáver,
um poema ou corolário.
Não havia escolha senão continuar:
vivo ou morto, liberto ou amaldiçoado,
não existe volta para quem se desnuda
na floresta à noite, sob o manto da neblina.
Aos poucos, um calor intruso,
luz rarefeita infiltrando-se entre as plantas –
e a música sem prumo,
enovelada em cadências e trinados,
fantasiando-se em canto de coruja.
É a canção que sonhei em outro sonho,
é o réquiem que jamais ouvi.
De repente, a clareira – e elas, ao redor do fogo,
rodopiando feito bacantes, eram vórtice que também ardia.
No meio, tambores grotescos, violinos suplicantes
e a morte que dançava, imensa e angulosa,
angulosa e sedenta, batendo os calcanhares afiados,
cortando com a falange cisalhada
a linha de outra vida no fio da indiferença.
A morte é o demônio que adoram,
ao qual se entregam com volúpia
para morrerem quando o sol nascer
e a última brasa sucumbir.
Por mais que ali pisasse,
eu estava ausente do festim:
minha carne palpitava outro enigma,
um sortilégio abissal,
irmão e avesso da morte,
também imenso e sequioso,
mas secreto e manso,
invisível à noite e seus luzeiros,
invisível ao assombro das labaredas.
Não sou cego e posso vê-lo:
por trás dos corpos nus
e do monstro orgiástico da finitude,
está no incendiado coração da lenha,
na salamandra que resiste e espreita.
Ali eu estava para buscá-lo,
erguê-lo das flamas com meus próprios braços,
derreter minha pele em cera para adorar –
as bruxas todas gritaram,
e a morte corcoveou, grotesco esqueleto de dragão,
quando me lancei à fogueira
com desvario de apaixonado necromante.
O amor eu busquei no fogo,
nas chamas acesas em pleno bosque
para iluminar os ritos de sabá.
OS POEMAS SEMIFINALISTAS
renascimento
A noite é um útero imenso envolvendo a cidade,
um cântaro que despeja milagres invisíveis
sobre as cintilações elétricas e sem magia.
O mistério está posto, banquete para talheres cegos,
favo de mel esvaziado – são estas pessoas que nada sabem,
conhecem apenas o caminho de casa, o sinal vermelho,
as migalhas, as imagens, os remédios e o sono.
Não há fogos de artifício para despertá-las,
a prece pequena das sinagogas, mais fugidia que o silêncio,
vai prender-se muito acima do teto das alcovas,
feito pomo astral que balança enquanto os sinos não tocam.
E elas dormem sem saber que é noite de ano novo,
não por decreto ou capricho dos calendários –
é noite de ano novo porque Deus criou um homem.
Moldou-o assim: com muito barro e pouca poesia,
mas nunca é tarde para fazê-lo nascer outra vez.
psicostasia
Meu coração que recebi de minha mãe,
Meu coração de minhas diferentes idades,
não te levantes como testemunha contra mim,
não ofendas nossos segredos
quando enfrentarmos o guardião da balança.
[Separados, ainda somos um no túnel da antecâmara,
teremos por juízes os monstruosos juízes de nós mesmos.]
Se tiveres a leveza daquelas manhãs
quando semeamos orvalho às plantas,
das tardes em que borboletas nos seguiam
pelos campos de juncos,
talvez a noite que nos abraça
peça perdão pelos instantes sem luz.
[A claridade dessas horas, a transparência do vento enfeitiçado
– talvez sejam suficientes para conjurar estrelas e afastar e escuridão.]
Naqueles dias, eu tinha o mesmo coração,
esse coração inundado de prodígios e migalhas,
trespassado de sonhos e veias
– e tudo nele cabia, sem peso, sem medos.
[Qual é o peso da alma?
O que faz do espírito o avesso da carne?]
Avançamos pelo túnel.
Meus passos seguem o coração que flutua à frente,
um estranho planeta, pulsante de vermelho,
guia incerto na noite certa.
[Os astros conhecem o destino,
respondem à harmonia das esferas,
sem hesitar, sem desejos de fuga.]
Ao vê-lo assim, pairando como se fosse alado,
tenho esperança de que seja tão leve
quanto pluma nas mãos de uma deusa.
Acredito no triunfo da pureza,
na força amena da flor que sobrevive em meio às águas.
[A um passo do julgamento, nada resta
senão compartir a fé insana de cada pétala que se abre
para um mundo que desconhece.]
Acredito, meu coração.
Confio no que fomos e no que seremos –
e murmuro encantamentos para sair ao dia.
oração
Quero nascer de olhos abertos e sem chorar,
bendizendo o azul de um céu de maio,
explodir no mundo com a gana do enforcado
que vê romper o laço e foge do cadafalso
para ser, de novo, homem entre homens,
como se fosse a primeira vez.
Quero nutrir minha descrença
com o fatalismo dos átomos
e a injustiça que degrada a matéria,
para ser desmentido de repente,
encontrando Deus, sem querer,
nas letras de um pergaminho,
no som da concha à beira-mar –
conhecer-me em terra santa
sem vagar quarenta anos no deserto.
Quero descobrir que, em mim,
cabem muitas outras vidas,
tantas quantas a alma puder gestar
sem sucumbir a dores que não são minhas
e que, mesmo assim, me fazem torcer os dedos
ao redor da pena, como um crucificado
torce os dedos ao redor dos cravos –
ao fim, a página repleta,
sudário daqueles que me habitam.
Quero viver meu único amor aos estilhaços,
nos braços de um, nos beijos de outro,
desvelando encanto em quem não desconfio,
cuidando de uma criança sem pureza,
rendendo-me à força de um íntimo algoz –
e assim, venerando os fragmentos,
amar sempre por inteiro.
Quero que a morte me encontre assim, de pé,
no mesmo jardim da infância,
onde estão sepultados carrinhos de brinquedo
e o pequeno coração de um cão;
bem ali, onde minhas raízes se enredam
às raízes da amoreira, que devolverá à terra
o meu sangue nas rubras gotas
que docemente se desprendem dos galhos.
Que esta prece jamais seja lida,
mas que ela não seja em vão –
santos e anjos saberão me perdoar
por querer o impossível.
decálogo incompleto
I
É preciso contemplar a bolha que flutua no ar,
solta, liberta do maremoto de espumas;
olhar tão fundo, com olhos de Medusa,
até que a pele de sonhos se cristalize no tempo,
até que a pele deseje ser vidro
e aprisione para sempre o suspiro que a criou.
II
Jamais admitir a imutabilidade dos astros:
quem tem sangue e medos
não pode crer na eterna quintessência.
Nas noites abertas de outono,
estenderá a mão às estrelas, colhendo-as uma a uma,
antes que elas caiam para inventar o inverno.
Feito isso, quando se afastar pelo caminho, dirão os outros:
“Lá vai ele, distraído, levando pirilampos nos bolsos.”
III
Quem obedece às leis da poesia
compreende a rocha como um coração vivo,
filho de derramamentos milenares
que levaram não mais que um segundo:
é preciso imaginar todas as camadas
sobrepondo-se com a rapidez de um relâmpago –
velocidade que rios e vulcões lhes ensinaram.
IV
Eis o supremo desafio: fantasiar a luz em repouso.
De uma ponta a outra do universo,
de um lampejo a outro no pensamento,
não existe o que possa ser mais rápido
e que flerte tão de perto com a eternidade.
O que resta da luz sem movimento?
V
É preciso elevar ao altar das ideias puras
– este altar inexistente –
o que de mais palpável estiver à mão:
esta maçã, por exemplo,
não se confunde com sua matéria,
não se reduz aos pontos indivisíveis
que, congregados, conjuram sua solidez.
É a esfera astral que baila sem corpo,
desprendendo vermelho puro no espaço,
recendendo uma doçura misteriosa,
inacessível a qualquer paladar.
VI
Quem obedece às anti-leis da poesia
não se conforma com o véu que nos separa
do santuário das coisas abstratas:
é dever rasgá-lo de cima a baixo
para revelar que a morte é um cubo negro que flutua
e a saudade é um cristal azul intocado pela sede.
VII
Não se iludir pela armadura pequenina do inseto
quando se pode olhar de dentro de um grão de areia:
o que se vê é o dragão diante de Siegfried,
guardião de imensas cavernas de ouro,
monstruoso em sua solidez de ferro.
VIII
Compreender que a face inteira da Terra
cabe na superfície de uma pérola:
nos laivos coloridos, escondem-se as florestas da África,
os rios turbulentos da Índia,
os esquecidos desertos de sal.
Olhar; olhar de perto
até que a pequena lágrima de nácar seja um mundo.
IX
Pegar o novelo dos dias –
vida que cabe inteira na concha das mãos –
e estender o fio, pouco a pouco,
pelas curvas de um labirinto invisível.
Mas o que Teseu não sabe
é que os corredores se multiplicam
com a voracidade dos fractais;
bifurcam-se para enganar o fio
até que ele se faça eterno.
No subterrâneo do palácio,
o jogo da imortalidade.
X
Haverá mandamento mais absurdo
que agrilhoar o perene
entre os cálices de uma ampulheta?
Quem matar o tempo de Deus,
terá o Seu sangue invisível nas mãos
– mas apenas por um instante.
Irredimível, dilui-se toda cronologia
na acidez acerba do infinito.
Nenhum deus é tão humano quanto eu.