PENA DE OURO 2024 | CONHEÇA OS VENCEDORES: RENATO BRADBURY DE OLIVEIRA — 3º LUGAR CATEGORIA CRÔNICA
- Casa Brasileira de Livros
- 14 de ago.
- 4 min de leitura

SOBRE O AUTOR
Renato Bradbury de Oliveira nasceu em São Paulo – SP no ano de 1990, é mestre e doutorando em Literatura (UFSC, Florianópolis - SC). Obteve Menção Honrosa com o conto “Pedaço de mar” na 12ª Mostra Acadêmica da UNIMEP (Piracicaba - SP).
A CRÔNICA VENCEDORA (3º LUGAR)
Tristes tópicos
Dizem que os smartphones derivam deste ancestral em vias de extinção que é o telefone, que este aparelho multitarefas que carregamos para lá e para cá seria a evolução natural daquele. A semelhança entre um e outro seria suficiente para traçar tal genealogia? A mera função de levar a voz de uma pessoa até o ouvido da outra (e vice-versa) não parece ser o bastante para descartar outras cadeias evolutivas. Do contrário, o cochicho e o telefone-sem-fio (ou copo-com-fio) também estariam presentes como antepassados do smartphone. Por isso, proponho outra árvore genealógica para o “telefone esperto”: eles são descendentes do controle remoto.
Quem viveu o auge da televisão como entretenimento principal da casa não me deixará mentir sobre o assunto: as pessoas chegavam a brigar pelo privilégio de segurar aquele poderoso objeto em suas mãos. Era toda uma diplomacia mais ou menos velada que garantia o convívio harmonioso entre os habitantes das casas com o dito aparelho (e a caixa de vidro que o acompanhava). Bem cedinho, lá pelas sete horas da manhã, o/a trabalhador/a prestes a sair ditava as regras e, quase sempre, deixava o moço contando as notícias todas enquanto tomava seu café. Na ausência desta figura, podia surgir uma disputa entre crianças e donas-de-casa (dono-de-casa parece ser uma figura do folclore, já que a maioria dos brasileiros não aceitam o rótulo e preferem a alcunha “desempregado”), tudo dependia da paciência de uns e da capacidade de choro de outros. Geralmente, ficava estabelecido que o controle remoto deveria ficar sob a guarda do adulto até começar a programação infantil. Dali até o jornal do almoço era território das crianças. Se fosse uma casa de pessoas pobres, desenhos como Tom e Jerry imperavam; já para os mais abastados, o céu era o limite: savana africana, desenhos novos com super-heróis gringos ou mesmo esportes ao vivo. De tarde, ficava estabelecido que o controle remoto e o sofá da sala eram terra de ninguém ou, em resumo, quem chegasse primeiro comandava-os. A noite era reservada às novelas e aos jogos de futebol. De quando em quando crianças intrépidas se aventuravam na programação da madrugada (a despeito das restrições impostas pelos responsáveis).
Toda esta cena se repetia diariamente até a popularização do smartphone. Foi como se tivessem resolvido a delicada diplomacia do controle remoto com uma solução brilhante: e se a tela de vidro fosse colocada no controle remoto? Depois disso, ninguém mais precisou esperar o comandante-temporário se retirar da sala para, enfim, se ver agraciado pelo dom da escolha. Mas, ao mesmo tempo, a sala começou a ficar mais vazia. Era como se levássemos nossa própria sala dentro do bolso, bastava plugar o fone de ouvido e pam! Nosso próprio mundinho com som, vídeo, voz, gestos na tela...só faltou o paladar (mas, tudo bem, logo virá um aparelho que dê conta disso).
Agora, apontamos o smartphone para tudo como se o mundo se convertesse em uma imensa televisão: gatinhos fofos, uma praia, minha cara sorridente, uma frase inspiradora, algumas propagandas que não aceitam não como resposta, um acidente de carro, um nude, um assalto violento, uma catástrofe ambiental... tudo é captado e convertido em escolha, tudo depende de um gesto de meu indicador para existir ou para ser banido para sempre da telinha. Quando dois dedos indicadores deslizam para o mesmo lado da tela de vidro, dizem que “deu match” e, assim, começamos um caso ou namoro: e será assim o princípio das histórias de amor “contadas” pelos futuros velhinhos. Contar vem entre aspas porque, se a coisa continuar como está, as memórias e histórias da vida corriqueira serão contadas nas redes sociais, primeiro para o mundo e depois para os mais próximos. O que mais impressiona é que tudo aquilo que não cabe na tela de vidro retangular de meu controle-remoto-smartphone (que vai sempre refletir a minha imagem, minha visão de mundo), aparece como uma desordem a ser corrigida, uma interferência no sinal de meu mundo-televisão.
Enquanto apontávamos o aparelho para gatinhos fofos e praias, tudo bem, que mal há nisso? Agora, apontamos o mesmo aparelho para outros seres humanos como quem aponta uma arma de fogo ao semelhante: você é diferente e eu não te compreendo, por isso preciso te colocar dentro da minha telinha colorida, para que meus conhecidos possam me dizer o que você é. Foi isso que vi hoje se meus olhos, que enxergam através da telinha de vidro de meus óculos, não tiverem sido enganados por detalhes inverificados. Uma pessoa que não correspondia ao padrão estabelecido sobre os corpos e as roupas adequadas a eles estava, simplesmente, atravessando a rua e tal gesto banal precisou ser captado pelas lentes de uma transeunte que, entre risos, parecia não acreditar que compartilhava do mesmo espaço que a outra pessoa que já ia embora.
Triste genealogia esta que depende de nossos dedos em riste para prosperar.
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