SOBRE O AUTOR
Daniel Seidl de Moura nasceu em 1976 no Rio de Janeiro. É coorganizador e um dos autores de Pula, pula, macacada, que amanhã não tem mais nada (Átame, 2014, crônicas) e autor dos livros de poemas O susto de saber-me deste jeito (2014) e As coisas nunca mais seriam as mesmas (2016), ambos publicados pela editora Oito e Meio. Foi um dos semifinalistas do Pena de Ouro 2023 na categoria poema.
A CRÔNICA FINALISTA
A última do português
Eu estava desiludido com a área editorial, na qual trabalhava fazia uns anos, e decidi tentar a sorte em um concurso público. A despeito de minha longa trajetória diletante, ganhar a vida como enxadrista, infelizmente, não era uma opção viável. Matriculei-me num curso preparatório com aulas diárias, uma disciplina por noite, das 19h às 22h30. Na primeira semana, malgrado a presumível aporrinhação de me ver às voltas com direito constitucional, administrativo, civil e financeiro, as coisas transcorreram bem. Na sexta-feira, havia português, o que me parecia um merecido descanso dos dias anteriores. Eu gostava da matéria e a usava corriqueiramente em meus afazeres relativos à edição de textos. Minha expectativa em relação às aulas resumia-se a rever determinados pontos e a fixar outros, sobretudo por meio de exercícios sistemáticos, voltados para a prova que eu faria.
Pois bem.
Entra o Professor — alto, hirsuto, barbado; as roupas amarfanhadas sobrando-lhe no corpo macilento; o cabelo, na tênue fronteira entre o encardido e o grisalho, levemente comprido, formando torvelinhos atrás do pescoço; os olhos miúdos protegidos por lentes espessas. Um quê de bicho-grilo no Professor, a emanar de sua brejeira nonchalance.
Ele começa a aula (e todo o módulo de português, que se estenderá pelos próximos três meses) já com a diferença entre “Isso é para mim” e “Isso é para eu fazer”. O Professor não perde tempo com sujeito, predicado, filigranas que tais. Ele vai ao ponto. Nem sequer explana acerca de pronomes retos e oblíquos átonos ou tônicos. Ele dá início a exercícios no quadro de giz. “Complete as lacunas com eu, tu e mim”, diz o enunciado que ele vagarosamente redige. O Professor é um tanto lento. Ele parece ter recém-fumado jererê. Suas feições, alheias ao mundo em torno, transmitem simpatia. Ou tão só alheamento.
Uma das questões formuladas por ele é algo como: “Já disse que para ____, estudar é fundamental”. Como quem não quer nada, e não quero mesmo, indago-lhe se não falta uma vírgula depois de que. O Professor aparenta dificuldade para entender minha dúvida, na verdade uma observação; depois, responde:
— Não pode ter vírgula ali, não.
“Como assim?”, penso.
— Como assim? — pergunto.
— O que é conjunção integrante; a norma culta diz que não pode ter vírgula depois de conjunção integrante.
“?”
Meu rosto não é senão um ponto de interrogação; logo, porém, percebo o que ele quer dizer. Não pode haver vírgula depois de conjunção integrante desde que não haja intercalação. Não procede, naturalmente, “Fulano disse que, deseja embriagar-se”. O argumento da intercalação parece-me bom. O Professor compreender-me-á, e tudo não passará de um mal-entendido. É possível até trocarmos tapinhas nas costas.
— Mas só com a vírgula após mim a frase não fica quebrada? Para mim não está intercalado? Não tem de estar isolado entre vírgulas? Ou duas, ou nenhuma?
— ? — Desta vez, é o Professor quem estampa na face o curvilíneo sinal gráfico. Ao menos, é o que deduzo. “Talvez seja o efeito do jererê”, pondero. O argumento da intercalação não surtiu o efeito esperado. Não haverá tapinhas nas costas. Reordeno minha, na excelência do vernáculo acadêmico, colocação.
— Se o período estivesse na ordem direta, linear, não seria “Já disse que estudar é fundamental para mim”? Deslocado, o para mim não demanda duas vírgulas, uma antes e outra depois?
— Não pode ter vírgula ali, não. Depois de conjunção integrante não pode, entendeu? — O Professor segue convicto. Não perde a calma, afinal é um docente, no exercício da profissão, auxiliando um aluno confuso que pagou pelo curso. O Professor é paciente. O Professor é bom. O Professor não admite em hipótese alguma, decerto amparado na norma culta, vírgula depois de conjunção integrante. Para não restar dúvida, arremata: — Esta vírgula depois de mim é uma pausa.
Entrego os pontos. Fosse uma partida de xadrez, o Professor teria levado minha torre.
— Entendeu? Pode perguntar; não tem problema, não. O que não pode é ficar com dúvida.
Faço que sim com a cabeça. Entendi tudo, minha dúvida está sanada. Imagino que eu tenha cumprido uma função pedagógica, pois minha ignorância, devidamente debelada, deve ter levado muitos dos alunos a registrar nos cadernos: “Não há vírgula depois de conjunção integrante”.
A aula prossegue. Aqui e ali, o Professor insere vírgulas entre verbos e complementos, mas, resignado, permaneço mudo. A norma culta decerto justifica sua redação peculiar.
Todavia, ainda no tópico para mim × para eu, a derradeira questão no quadro contém uma vírgula separando sujeito de predicado. “Os problemas existentes entre o diretor e ____, já foram solucionados.” Releio-a numerosas vezes. Não quero fazer, novamente, papel de tolo. Não posso elaborar uma pergunta estúpida ou óbvia. A dúvida, porém, corrói-me. Pode ser que, desta vez, o Professor tenha se equivocado. Quero ajudar meus colegas de sala. Não desejo que eles incorram num possível erro. Preocupo-me com meus colegas de sala — os concorrentes em primeiro lugar.
— Professor, desculpe, não quero voltar a esse assunto, mas a vírgula depois de mim não está separando sujeito de predicado?
O Professor mantém-se sereno. “Esse aluno está com dificuldade. Devo ajudá-lo”, talvez pense. A calma, propiciada pelo jererê ou pelos genes, transborda-lhe dos gestos. Lentos, os gestos. O Professor é zen.
— Não, esta vírgula aqui — aponta — é obrigatória.
“Cacete, como assim?”
— Obrigatória? Ela não está errada por separar o sujeito, os problemas existentes entre o diretor e mim, do predicado, já foram solucionados?
— Não, é que neste caso a vírgula está projetando um verbo.
“??????”
Malgrado a enxúndia gráfica, minha face agora é uma miríade de pontos de interrogação. Um não basta.
— É como se fosse “Os problemas existentes entre o diretor e mim verificados já foram solucionados”. A vírgula está fazendo o papel de verbo, entendeu? Verbo no particípio também pode.
Não consigo dizer nada. O Professor percebe minha aflição.
— Olha só, olha aqui, agora você vai entender. — Escreve na lousa, desapressadamente, o seguinte: “Eu trabalho de manhã. Ela, à noite”. — A vírgula aqui equivale ao verbo trabalha, entendeu? É obrigatória.
Comparo os casos, mas não chego a nenhuma conclusão. As construções — “mensagens”, no dizer algo nebuloso do Professor — não parecem ter o mais remoto grau de similitude. É mais ou menos o que lhe digo.
— Sim, mas não há relação com o caso anterior, no qual você está supondo um verbo, “verificar”, que nem sequer consta na frase. Em “Eu trabalho de manhã. Ela, à noite”, a vírgula retoma o mesmo verbo usado antes, “trabalhar”. Não?
— É a mesma coisa, entendeu? Não entendeu, não? A vírgula ali está projetando o verbo. Um verbo no particípio.
O debate retoma o ponto de origem. Desisto, pela segunda vez — lá se vão um bispo e um cavalo. Alguns alunos, talvez imbuídos da autoconfiança ensejada pelo ensinamento recém-adquirido de que não há vírgula depois de conjunção integrante, questionam o Professor. Mas eles, como eu, estão errados. Não se dão conta, como eu, da função vicária da vírgula na controversa questão. O Professor explica outra vez, mas suas palavras soam longínquas. Ouço apenas fragmentos — “vírgula”, “projeta”, “verbo”, “particípio”.
Debelada mais uma dúvida, a aula continua. O Professor é manso, mas outros assuntos esperam por ser tratados. O Professor é bom, mas não pode gastar uma aula inteira com um único e despreparado aluno.
Ele agora corrige exercícios acerca do uso de porque, porquê, por que e por quê. Já nem estranho a metodologia do Professor, que vai dum assunto a outro como quem zapeia canais de televisão. Não há conexão alguma entre os conteúdos, mas isso não importa.
Tudo transcorre naturalmente, até que se chega a esta questão: “Você está satisfeito ____ foi aprovado no concurso?”. Pergunta à turma qual a forma correta, mas as vozes são dissonantes.
— Pessoal, aqui não tem o sentido de em razão de que? Então é separado e sem acento: por que. Entendeu?
Olho minha reposta: porque. Ao menos concordamos quanto a não haver acento. Ocorre-me indagar ao Professor se não é assim, junto, já que se trata de resposta induzida na interrogação. Mas desisto quando ele complementa:
— É pergunta, pessoal. Por que separado, entendeu?
A esta altura, não duvido de mais nada. Tudo é possível no idiossincrático universo gramatical do Professor. E a aula ainda não terminou. Que surpresas nos aguardam? Quantos peões me restam?
Descubro pouco depois. O Professor exercita a diferença entre a e há. Uma das frases é apenas isto: “Do bairro ____ aquele sítio”. O Professor não falou nada a respeito da crase, mas isso não faz a menor diferença. É um desafio. Ele quer que nos adiantemos. Ele quer que já procedamos à crase. Astuto, o Professor. Extrair o melhor dos alunos, eis seu objetivo. Na correção, ele escreve a na lacuna, do que resulta: “Do bairro a aquele sítio”. E assim fica. Alguém pergunta:
— Professor, aí nesse caso não teria crase? “Do bairro àquele sítio”?
Ele parece confuso. Ou talvez não tenha ouvido a pergunta. Ou apenas pode estar querendo ganhar tempo.
— Aqui você põe o a, tá vendo? Não pode ser há, né? Aqui é o a.
— Mas não tem crase?
O Professor dá uns passos para o lado em busca de uma área vazia no quadro. Daí, rabisca: a + a = à.
— Pode aglutinar, se quiser. Pode sim. Aí tem crase, entendeu?
Perfeitamente. A crase não é um fenômeno autônomo; ela depende de nossa vontade. Está aí para nos obedecer. Simples assim. Por que diabos as pessoas costumam ter dificuldade com crase? Aglutina se quiser, ora. E adeus, rainha.
A aula encaminha-se para o fim. O Professor corrige os últimos exercícios de a × há. A frase é: “Ela reza ____ uma hora”. Há uma aluna cega na sala. O Professor, portanto, fala o que escreve, mas talvez não tenha dito que as opções limitam-se entre há e a. Quando afirma “a com agá” como resposta, a cega intervém:
— Professor, eu pensei outra coisa. Pensei em “uma hora” como horário.
O Professor permanece em silêncio. Olha o quadro e olha a turma. Olha a turma e olha o quadro. Morosamente.
— Aqui é tempo decorrido, entendeu? “Ela reza há existência de uma hora.”
Tem início um burburinho. Vozes vão em auxílio da cega.
— “Uma hora” no relógio, professor. Não poderia ser também? “Ela reza todos os dias à uma hora da tarde.” A frase é ambígua.
O Professor olha o quadro e olha a turma. Olha a turma e olha o quadro. Amiúde murmura algo que não consigo entender. Parece travar contato pela primeira vez com a possibilidade sintática de alguém rezar num horário específico. De alguma forma, aquilo não faz sentido para ele. Talvez seja ateu. Enfim, compreende do que se trata.
— Mas aí, pessoal, se for horário é só…
Aguardo ansioso o desfecho do raciocínio, a respiração suspensa. Exagero. Continuo respirando. Mas a ansiedade é real, quase tangível.
— …tirar o a. “Ela reza uma hora.” Entendeu? Norma culta: é só tirar o a. “Ela reza uma hora”, “Ela reza duas horas.” E por aí vai.
Quase urro “E a preposição?!”, mas não convém. Alguns alunos tentam argumentar que “Ela reza uma hora” também tem ambiguidade, pois dá a entender tratar-se do tempo de duração da reza. Não percebem, no entanto, que já não resta o que fazer. O Professor deu o xeque-mate.
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